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Ária Popular
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“Opera é um gênero autônomo. Ela não é música com teatro nem teatro que tem música. A ópera segue certos cânones que fazem dela uma arte dramática única” |
Quem tem a imagem dos cantores de ópera como seres inatingíveis e cheios de “não me toques”, como diz a gíria popular, se surpreenderia se conversasse com o tenor Fernando Portari. Simpático, acessível e com um linguajar despojado – bem ao gosto do carioca com 42 anos de praia que é –,?Portari conversou com a reportagem da Revista E por telefone, de sua casa no Rio de Janeiro, como quem encontra um amigo e decide botar o papo em dia. Nome internacional do canto lírico, o tenor já se apresentou em diversos países cuja tradição no gênero é referência no mundo todo – Itália e Alemanha, entre outros –, e sua voz já deu vida aos personagens principais de algumas das óperas mais famosas, como La Bohème, de Puccini, Romeu e Julieta, de Charles Gounod, e Otelo, de Giuseppe Verdi.
Portari iniciou seus estudos como aluno do tenor brasileiro Aldo Baldin – “Uma pessoa com uma carreira internacional importantíssima”, explica –, na renomada Escola Superior de Música de Karlsruhe, na Alemanha, e com o auxílio de uma bolsa de estudos conseguida em um concurso promovido pela instituição alemã na cidade de Cascavel, em Curitiba. Desde então, não parou mais de associar seu nome aos maiores profissionais do teatro e do círculo erudito, como o maestro Jamil Maluf, atual diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo e diretor da Orquestra Experimental de Repertório, e os encenadores José Possi Neto e Jorge Takla.
Durante a conversa, o tenor falou sobre sua infância ao som de música clássica e de Chico Buarque e sobre o lado popular que a ópera pode revelar. A seguir trechos.
Eu venho de uma casa supermusical. Minha mãe é pianista, meu pai é cantor. Desde que eu me conheço por gente, me lembro da música estar antes de qualquer outra coisa – da literatura, do cinema etc. Lembro-me bem dos discos do Caruso [Enrico Caruso, 1873-1921, tenor italiano] que a gente ouvia, me lembro de colocar o disco na vitrola nos almoços de domingo, de ver meu pai cantar, de acompanhá-lo ao piano. Eu e meu irmão Pedro, na verdade. Meu irmão também canta, apesar de ter seguido a medicina. Enfim, para mim a música sempre foi muito natural. A música lírica mesmo, muito natural dentro de casa. Meu pai e minha mãe são pessoas muito inteligentes e nos deram de tudo, compravam para gente também os discos de música pop – Beatles, Chico Buarque e essas coisas. Tivemos uma formação musical muito eclética, gostávamos de tudo, não somente de ópera, mas também música de concerto. Além disso, estudei piano, fui para o conservatório, enfim, segui minha vida sempre com a música lírica sendo algo muito natural.
Apesar disso, nunca imaginei ser cantor de ópera, nunca projetei isso. Para mim, a ópera simplesmente fazia parte da minha vida. Mas aí, aos 17 anos, eu comecei a estudar direito e a trabalhar num escritório e foi ali que eu percebi que, não tendo mais tempo para a música, que era um hobby, um hábito da família, isso se fez muito ausente na minha vida. Fiquei mal e larguei tudo, a faculdade, o emprego, a carreira de advogado, para tentar a carreira na música. Eu nem sabia direito fazendo o que, na verdade. Era difícil a carreira de cantor lírico naquela época, assim como ainda é hoje.
A arte lírica é muito maltratada no Brasil. Poucos conseguem viver do canto lírico aqui. Muitos deles ingressam em coros, no teatro, nas orquestras, que é uma forma digna de exercer a profissão, mas muitos cantores que estão nos coros poderiam, se tivessem uma oportunidade, se tivessem um caminho mais sólido, ter investido numa carreira de solista.
Ópera é ópera
É importante entender que a ópera é um gênero autônomo. Ela não é música com teatro nem teatro que tem música. A ópera segue certos cânones que fazem dela uma arte dramática única. Dentro disso, a dramaturgia da ópera, ou seja, como se conta a história da ópera, usando a música como uma linguagem – a música não é simplesmente um meio para se botar o texto. Por exemplo, se você pegar um libreto – o texto da ópera – e tentar montá-lo seco, como um teatro de prosa, o sentido se perde totalmente.
O texto está intimamente ligado à condução da música. A música da ópera não está se importando em ser bonita ou agradável, ela tem uma função dramática, ela conduz a ação dos personagens. Então ela, em si, junto com a palavra, a mistura das duas coisas, é o que a gente poderia definir como ópera – e digo poderia, porque a ópera é um gênero tão universal e atemporal que chega a se tornar indefinível, é preciso muito cuidado e respeito para fazê-la. Mas em síntese seria isso: a ópera é a música misturada com a palavra, mas uma sem a outra não faz sentido. Logo, uma é feita para a outra. O texto – o libreto, como se fala na ópera – é composto dentro das propostas musicais, do caminho, da ambiência musical. E só ali a palavra ganha a dimensão do que ela deve ser no espetáculo.
Erudito popular
É perigoso a gente tentar simplificar a palavra “popular”. Popular tem vários sentidos. A ópera é um gênero popular, só que dentro de uma linguagem erudita. A ópera nunca vai concorrer com a música, por exemplo, da Ivete Sangalo (risos). E ela nem pretende isso. A Ivete Sangalo é uma cantora ?popular na essência. Na linguagem, na forma da música, tudo diretamente popular. A ópera também é popular, porém, ela tem uma complexidade e usa uma linguagem que estão ligadas aos cânones universais, que são os da música clássica.
Um exemplo que consegue traduzir isso que eu estou dizendo é o Heitor Villa-Lobos. Algumas melodias dele soam populares, elas têm, na raiz da composição, o elemento popular, o povo reconhece a música do Villa-Lobos. Só que a música dele sugere e incita o ouvinte a ter algum tipo de reflexão menos óbvia. Não que o popular seja óbvio, mas a música do Villa-Lobos – que eu estou aqui usando como exemplo – abre outros tipos de reflexão.
A música clássica tende a levar o público ouvinte a refletir sobre muitas coisas: estética, ritmos, histórias. A linguagem dela, por conta de alguma complexidade maior do que tem a conhecida música popular, não pretende tornar-se algo de que todo mundo goste. Existem certas músicas e certos músicos populares que entram direto, fácil, no gosto do público. Têm uma linguagem mais direta, menos reflexiva e mais objetiva. A música clássica tem uma tendência de não necessariamente buscar essa grande massa, mas sim de levar as pessoas que estão ali ouvindo à reflexões que não são necessariamente sobre a música, mas sobre outras coisas da vida. Há artes que são menos complexas e mais diretas. Elas não estão tão preocupadas em carregar de sentidos quanto outras.
Quando você usa uma linguagem mais universal, você tenta se comunicar de uma outra forma, num espectro
mais atemporal. Quando você lida com coisas mais ligadas aos regionalismos, às formas mais populares, você está lidando com a coisa direta, com o público do seu tempo, com um público que está naquele momento, há certas coisas que reúnem parâmetros que as pessoas se reconhecem neles. A música que toca agora na rádio está refletindo mais diretamente a contemporaneidade. Enquanto a música clássica tende a se comunicar com um tempo menos do momento e com outras culturas, outras histórias. Mas veja bem, eu digo tende... Na verdade, para quem gosta de música, o que importa é que ela seja boa, seja ela de um gênero mais popular ou clássico.