Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Ficção Inédita

Mariposa

por Daniela Beccaccia Versiani

Era uma mariposa esquisita. Na forma e na cor. Nem parecia mariposa. Mais parecia borboleta que houvesse esquecido de se vestir. Porque as asas daquela mariposa eram da cor do nada. As asas daquela mariposa eram cor-de-vazio.

A formar aquelas suas asas, uma estranha estrutura. Como os veios de uma folha esquecida por muito, muito tempo, sobre uma pedra castigada pelo perpétuo e implacável calor do sol. Mas, ao contrário de uma folha ressequida, entre os veios das asas daquela mariposa, via-se uma película sobre a qual (não fosse ela uma mariposa esquisita, mas sim borboleta, coisa muito melhor de ser) mil e uma cores poderiam se instalar. Amarelo e vermelho. Laranja. Roxo. Preto e azul. Tão belas cores. Tão simples. Tão esperadas. E, no entanto, inexistiam na finíssima película que encobria a estrutura em veios daquelas asas.

Para piorar sua situação, a mariposa – não satisfeita em ser esquisita – permanecia obstinadamente estagnada, imóvel e inútil sobre a superfície branca esmaltada da lateral do meu fogão.  Foi um susto quando a vi, ou melhor, quando a intuí: nada sobre branco. Imediatamente guardei meus olhos, tentando não ver. Pressentindo aquela esquisitice que, eu bem sei, quando esbarra em mim, me deixa esquisita também. Mas a vontade de ver, a necessidade de ver, de espiar o que não deve ser visto, venceu. E eu sucumbi, dolorida, diante daquela insípida forma de vida. (É que, aqui, a palavra insípida explica muito melhor que a palavra incolor, só aparentemente mais precisa). Falharam-me as pernas, e sentei-me no chão, hipnotizada pela possibilidade de uma vida existir na mais plena inexistência.

Diante daquela inexistência, daquela vida desfrutada na mais completa insipidez, sucumbi. E as lágrimas, incolores também elas, vieram fazer-lhe companhia. Rolaram francas, dedicadas e entregues por bons cinco minutos. E então, passado esse tempo, que, a bem da verdade – é preciso dizer – foi tão curto quanto suficiente, começaram a desconfiar, essas minhas lágrimas. As lágrimas e eu também.
Mariposa esquisita – pensei eu –, arrancou de dentro de mim o que eu tenho de mais parecido com ela. Prendeu minha alma à sua vida sem cor.

Levantei-me sem me distrair dela e dela aproximei meus dedos, delicadamente, que era como tinha de ser. Não por afeto, mas por prudência e medo. Entre meus dedos prendi suas asas. Os dedos, rosados, de súbito perderam a cor. E as asas da mariposa – que continuava inerte e inútil – e as asas da mariposa feriram meus olhos com um rasgo de luz.

– Cor-de-rosa – pensei eu. – Cor-de-rosa é esse rasgo de luz.

Caminhei até a porta da cozinha e saí para o jardim. O céu, lá fora, que até aquele instante brilhara pleno, tão pleno como só é capaz de ser pleno o céu de um meio-dia tropical, perdeu de súbito a cor. Incrédula, ergui os olhos para me certificar. Era verdade: eu testemunhava o lamento do céu despido de cor.

Voltei a olhar para a mariposa. Presa entre meus dedos, ela continuava inerte, inútil, insípida. Presa entre meus dedos continuava silenciosa, impassível e indiferente. E, apesar dessa sua inércia, me atingia agora com outro rasgo de luz.

– Azul – pensei eu. – Azul é esse rasgo de luz.

Dedos trêmulos, avancei pelo jardim. Procurei me abrigar do medo entre as flores e as folhas. Então, como só pelo medo somos capazes de fazer, no meio das flores, fiquei insípida, inútil, inerte, apegada à esperança de me esquecer. E nesse instante, quando eu tentava esquecer a mim mesma para que a mariposa, quem sabe, terminasse por me esquecer, percebi que as flores e as folhas do meu jardim, também elas, se esquivavam, buscando perder-se no esquecimento para se salvar.

Inútil, esse esforço. No instante seguinte, vi-as todas, flores e folhas, uma a uma, empalidecer. Como empalideceram, momentos antes, os meus dedos. Como empalidecera, momentos antes, o céu. Como empalidecera, momentos antes, eu mesma. Insípidos, inúteis, inertes éramos todos agora: meus dedos, o céu, as flores e as folhas.

Silêncio.

Vazio.

E então foi como se a terra houvesse decidido girar em sentido inverso. E a noite e o dia houvessem concordado em trocar de lugar: pois que a mariposa – esquisita mariposa – começava a despertar daquele seu sonho incolor.

Aos poucos, pôs-se a movimentar as asas, abrindo-as e fechando-as lentamente. Por vezes voltava a ficar imóvel, suspensa, como que a estudar a paisagem, para em seguida retomar o hipnótico abre e fecha das asas. Por fim, acelerando o ensaiado movimento, levitou por alguns instantes, e voou.

Agora, leve como bolha de sabão, a mariposa esquisita  – sutil e arguta  – se aventurava em círculos. Primeiro, em torno de si mesma. Depois, em torno de meus dedos, de minhas mãos e de meu corpo. Então, exibindo insolente sua sempiterna liberdade, ampliou seu voo por sobre as flores e folhas do jardim.

A última vez que a vi, descrevia mil círculos contra um céu inacreditavelmente pálido. E só então, observando-a assim, tão livre e tão longe de mim, foi que me dei conta: antes de partir, a mariposa, asas-bolha-de-sabão, fez de refém as flores e as folhas, fez de refém a mim e ao céu, transformando-nos a todos em criaturas inexistentes, insípidos e invisíveis, como a criatura que ela própria um dia fingira ser. Carregou consigo nossas vidas e, com elas, nossas cores. Todas as nossas cores aquela mariposa esquisita carregou consigo. Mariposa ladra. Mariposa furta-cor.

Daniela Beccaccia Versiani é autora, entre outros livros, de A Matemática da Formiga (7 Letras, 2008)