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Intimidade no século 21

Tanto a internet, com seus sites de relacionamento, de postagem de vídeos, e com os blogs, quanto a TV, que agora vive a era dos reality shows, têm causado um curioso impacto no conceito de intimidade nos novos tempos. Teria a vida privada das pessoas se tornado pública, acessível num clique no computador ou no controle remoto da televisão? Quem responde essa pergunta é a doutora em comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha) e professora do mestrado em TV Digital da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Cosette Castro, autora do livro Por que os Reality Shows Seduzem as Audiências? (Paulus, 2006), e a jornalista e autora do livro Blog: Comunicação e Escrita Íntima na Internet (Civilização Brasileira, 2004).
 

Blog: o discurso privado para um público de desconhecidos

por Denise Schittine

 
 
Em fins dos anos de 1990, surgia uma ferramenta que parecia ser mais uma inovação de vida curta na internet: o blog. Ao mesmo tempo, crescia um fenômeno singular do nosso século: o interesse público pela vida privada. No ano de 1998, os arquitetos Arturo Torres e Jorge Cristi desenvolviam, com a subvenção do governo chileno, um projeto artístico, o Nautilus. A ideia era discutir as tensões entre público e privado por meio da construção de uma casa de vidro. Só no início de 2001, o Nautilus foi colocado em prática com a contribuição da atriz Daniela Tobar, que aceitou o desafio de ficar durante dois meses expondo a sua intimidade numa das principais ruas de Santiago do Chile.

Quase dez anos depois, a mesma experiência se repete com a casa de vidro instalada no shopping Via Parque para o programa Big Brother Brasil. O interesse do público não arrefeceu. O mesmo impulso que levou aquelas pessoas a causarem engarrafamento na rua Moneda, no Chile, fez com que elas enchessem o shopping carioca.

Essa curiosidade é a mesma que alimenta os programas de televisão e as revistas de fofoca. Nada escapa desses olhos perscrutadores: a vida dos políticos, o casamento das celebridades e o cotidiano dos vizinhos. O interesse foi migrando aos poucos do ato de observar a vida e os passos de pessoas conhecidas para fazer o mesmo com anônimos.

Os blogs apareceram aí: exatamente nesse meio-termo entre a vida pública e a privada. O mundo assistia ao vivo ao desdobramento do caso de Bill Clinton e da estagiária Monica Lewinsky, mas queria mais, queria algo distinto do que os meios tradicionais de comunicação podiam dar. O público já não estava mais interessado somente no que era possível ser encenado pelas celebridades, mas no que podia ser encenado por pessoas comuns. O blog era a ponta do iceberg deste enorme fenômeno submerso: sob a proteção corriqueira de uma página pessoal na internet, escondia-se o desejo de um escritor opinar sobre os acontecimentos que via sem precisar mostrar a cara. Do outro lado, aparecia um público, crescente, disposto a ler sobre essas opiniões.

Era uma intimidade assustadora, que só era possível porque era mediada pela tela opaca de um computador. O blogueiro colocava o seu texto numa rede infinita e era observado, ao mesmo tempo, por uma série de leitores. O texto não tinha o aval de um editor para ser publicado, mas agora contava com a avaliação direta do leitor. É ele quem vai apontar os erros, as impropriedades e as novas necessidades de leitura. A estrutura privada e individual do texto passa a receber influências exteriores que não são apenas as do próprio autor. Ele pode operar mudando ou não o próprio texto de acordo com as sugestões externas. É a primeira vez (nos blogs que aceitam comentários, claro) que é permitida a escrita coletiva, forjada a quatro, oito ou mais mãos. Avanço que talvez não fosse possível se o computador não gerasse a distância física entre quem escreve e quem lê.
Claro, mais do que isso, a expectativa de vida de um blog cresce em relação ao número de leitores que ele arrebanha. Um blog sem leitura, sem comentários, sem manipulação diária é um blog morto. Para se adequar às necessidades dos leitores, os blogueiros precisam encontrar o seu público-alvo. Nestes dez anos, apareceram cada vez mais blogs sobre os assuntos mais variados, cobrindo vários nichos. Desde aqueles escritos por políticos, para levar a cabo as próprias candidaturas e linhas partidárias, até os jornalísticos, chegando finalmente aos mais literários e poéticos. Cinema, teatro, televisão, cultura ou acontecimentos polêmicos cotidianos são apenas alguns dos segmentos que possuem blogs especializados.

Aos poucos, esse grupo de internautas foi conquistando um lugar antes impensado. Em 2005, Garret Graff foi o primeiro repórter de blog a obter um credenciamento para participar das coletivas diárias de imprensa na Casa Branca. Os principais sites de notícia (CNN, BBC e Fox News) se tornaram tão lentos com o número de acessos no atentado de 11 de setembro, que os blogs fizeram o trabalho complementar de noticiar o que estava acontecendo. Esses “repórteres anônimos” estavam por toda parte, escrevendo textos impressionistas sobre o que viram e que reações tiveram. Os leitores se envolviam, comentavam, participavam de seus blogs e de suas vidas.

Por mais que a maioria dos blogueiros preferisse associar a própria escrita à jornalística, o discurso do blog é híbrido: jornalístico, mas também íntimo; factual, com toques de emocional; imparcial e ao mesmo tempo literário. Essas forças, aparentemente antagônicas, existem no blog exatamente por conta da tensão entre o público e o privado. A tentativa de imparcialidade é suplantada por um desejo enorme de opinião. E o que é a opinião senão uma maneira de falar de si mesmo? Cada vez que um blogueiro escreve suas impressões sobre um tema, seja ele político, econômico ou cultural, ele está falando um pouco de si mesmo, contando uma parte de sua história. É quando, surpreendentemente, a escrita do blog se associa à escrita íntima.

Dessa forma, assim como o e-mail é o novo tipo de troca de correspondência, e os chats, os novos “lugares” para bater papo, o blog aparecia como uma revisão do diário íntimo. A periodicidade (exigência dos posts diários) e o texto personalizado fazem do blog um descendente direto do diário íntimo. Mas a disponibilização do texto na rede e o fato de ter leitores distanciam bastante o blog das noções de intimidade que conhecemos até hoje. O diário, como objeto fechado e escondido, dono de um conteúdo secreto sobre o seu autor, não se parecia em nada com essa ferramenta virtual que possibilitava partilhar opiniões e segredos mais íntimos de um autor com um público de desconhecidos.

A resposta para esse paradoxo estava clara: a internet possibilitava novas formas de negociação da intimidade. Com a tela opaca do computador entre o autor e o leitor, era possível para o primeiro escrever coisas que anteriormente só partilharia consigo mesmo e, para o segundo, mostrar o real interesse por essas coisas. A conexão tão esperada pelo antigo diário íntimo se faz: o texto, guardado, escondido à espera de um leitor que o descubra, se revela a esse leitor. A internet deu os meios e a coragem para esses blogueiros ou “diaristas virtuais” exporem suas intimidades literárias a um público de desconhecidos. E, pasmem, deu certo. Cada blog foi encontrando, ao poucos, os seus leitores pares.

Restavam apenas duas perguntas: por que tantas pessoas estão dispostas a blogar? Por que um outro grupo está interessado em ler esse conteúdo? A principal resposta para um interesse público em um universo de caráter privado é o espelhamento. Quem escreve busca uma maneira de definir-se: a narração e a escrita sempre foram as principais ferramentas que o homem usou a vida inteira para entender a si mesmo. Mas tudo o que é falado ou escrito supõe uma leitura. Buscar o outro, sua análise e suas respostas é fundamental. Mais do que isso, quando encontramos no outro um espelho, alguém que compartilhe as opiniões e os desejos que nós mesmos temos, a busca parece completa. A internet possibilitou, por meio dos blogs, o encontro desse espelho sem a difícil prova do enfrentamento face a face. Uma vez vencida essa etapa no terreno virtual, cabe às duas faces espelhadas decidirem se querem partilhar um encontro real. 

“Cada vez que um blogueiro escreve suas impressões sobre um tema (...), ele está falando um pouco de si mesmo, contando uma parte de sua história. É quando, surpreendentemente, a escrita do blog se associa à escrita íntima”

 

Denise Schittine é jornalista e autora do livro Blog: Comunicação e escrita íntima na internet (Civilização Brasileira, 2004).

 
 

 

 
 
 

Quando a vida privada se torna pública

por Cosette Castro

 
 
Muita gente pensa que a curiosidade pela vida alheia é um

fenômeno recente e que apareceu a partir da televisão e da internet. Mas, ao contrário, essa curiosidade pelos vizinhos e pela vida dos outros acompanha o homem desde os seus primórdios. Quem nunca olhou pela janela ou espiou o(a) vizinho(a) pelo olho mágico da porta que atire a primeira pedra. Esse “gosto pelo alheio, pelo outro” foi batizado pelos franceses de voyerismo, que vem da junção do verbo voir (ver) com o sufixo eur, e quem o pratica é um voyer, termo que pode ser traduzido de maneira literal como observador, mas com caráter pejorativo, ou seja, usado negativamente.

Em sua origem, a expressão estava diretamente ligada ao prazer sexual de olhar o outro preferencialmente sem roupa ou realizando ato sexual sem que essa pessoa soubesse que era observada. Atualmente, o termo extrapola o campo sexual propriamente dito para receber um caráter generalizado sobre o gosto ou hábito de espiar outras pessoas que podem estar fazendo qualquer coisa: dormindo, lendo ou simplesmente assistindo TV.
Os hábitos se modificaram tanto desde que a palavra foi criada, no século 19, até hoje, que atualmente o termo inclui também os observados que, muitas vezes, querem e desejam ser observados. Esse é o caso dos blogs 24 horas na internet ou dos diferentes reality shows oferecidos pelos canais de televisão, abertos ou por assinatura.

Embora o voyerismo e o exibicionismo (gostar de se mostrar) existam há muito tempo, é possível afirmar que a chegada de diferentes tecnologias, como a TV, os computadores com internet e mesmo os celulares, tornou públicas situações antes restritas ao campo privado, aos muros e ao foro doméstico. Isto é, ficava restrito ao olhar desde longe, desde um binóculo, desde a janela atrás das cortinas ou desde o olho mágico atrás de uma porta. Mas foi o cinema, através do diretor inglês Alfred Hicthcock, na década de 1950, que expôs publicamente o gosto de observar os outros, no filme Janela Indiscreta (1954), no qual um fotógrafo com a perna quebrada ganha da namorada um binóculo para “se distrair e passar o tempo” olhando as janelas do edifício em frente ao seu e acaba por se envolver em uma intrigante trama de suspense. Nos anos de 1980, quando o voyerismo recém-engatinhava na televisão, o cineasta norte-americano Brian De Palma abordou o tema no filme Dublê de Corpo (1984), também apostando no suspense para mostrar os “perigos” da curiosidade exacerbada (os dois filmes podem ser encontrados em locadoras para alugar ou vender).

Mas foi por meio da televisão, presente em 98% dos lares em países como Brasil, Portugal ou Espanha, que o estímulo a olhar a vida do outro começou, nos anos de 1980, com programas de auditório em que as pessoas iam contar seus dramas pessoais, até chegar ao ponto de ganhar uma nova categoria televisiva no final dos anos de 1990: os reality shows. Neles, anônimos, que poderiam ser nossos vizinhos ou parentes, não apenas contam suas histórias, como concordam em ficar confinados em ilhas paradisíacas – ou em casas como a do Big Brother Brasil – mostrando seu dia a dia e personalidade na TV aberta ou paga por uma quantia que dificilmente conseguiriam ganhar em um ano de trabalho. De um lado, temos um grupo de pessoas que querem ser vistas e, de outro lado, audiências de diferentes idades, culturas, gênero ou religião que querem olhar o que eles fazem durante o período de duração do programa.

Qual o papel da TV em tudo isso? Ela serve de mediadora, tornando públicas vidas anônimas que querem se tornar famosas e conhecidas, trazendo a vida dos outros para dentro das nossas casas, oferecendo-a e convidando-nos a olhar e comparar nossa vida com a de outras pessoas, grupos ou culturas.

Historicamente, a televisão nos ajuda a manter a ordem no mundo, garantindo a “normalidade” de nossa vida por meio da divulgação de rituais e rotinas de diferentes culturas, mostrando a vida de outros povos em diversos programas, seja em um documentário ou programa de entretenimento, como um reality show. Ao trazer o mundo para dentro do espaço doméstico, para dentro de casa, as redes de TV, sejam elas públicas ou privadas, mostram a sua versão da realidade, recortando, editando produtos culturais, diminuindo as fronteiras entre ficção e realidade e oferecendo formatos novos (ou requentados) a cada temporada. 

Quando um reality show mistura realidade e ficção (edição de imagens, videografismo, fundo musical, final feliz etc.), quando mistura gêneros televisivos já conhecidos – propondo participantes-personagens estereotipados que se apropriam de mitos (como o herói, o anti-herói, a mulher fatal ou a garota má ou ainda o ingênuo) –,  a televisão ativa em todos nós uma memória que o sociólogo Renato Ortiz (1994) chamou de memória internacional popular. Nela, aparece uma mistura da cultura local com a cultura universal, reforçada por meio do discurso televisivo que as sociedades ocidentais nos vêm contando desde os anos de 1950 ou das histórias orais contadas por nossos pais e avós desde que éramos crianças e que passamos às demais gerações.
No caso de um reality show como o BBB, essa memória internacional popular é estimulada constantemente porque:

1º  utiliza e mistura gêneros televisivos já conhecidos que dão a sensação de “novo”, permitindo às audiências reconhecê-los e reconhecerem-se no programa;

2º  reúne todos os participantes em uma casa, em torno de um núcleo que recorda a família, reforçando a ideia de algo conhecido e seguro;

3º  reúne jovens que não se conhecem e que terão de conviver por um tempo determinado (gente comum, sem nenhum “algo a mais”, a não ser a representação de si mesmo, que está em busca de reconhecimento e fama, gente anônima como as pessoas que assistem ao programa, tão “normal” que poderia ser um irmão ou irmã, primo ou vizinho, independentemente de sua origem);

4º  abre as portas do mundo dos sonhos e da imaginação às audiências, oferecendo a esperança imaginária de que o mesmo – o reconhecimento, o êxito – pode ocorrer com quem assiste ao programa;

5º  reúne gente jovem que pode ser o amigo ou a amiga do lado, o vizinho ou vizinha, o noivo, um parente, porque o que os participantes representam é a juventude em geral;

6º  é um espaço onde os participantes representam a si mesmos, possibilitando aos outros (às audiências) olhá-los como “modelos”, embora o que apareça na tela seja uma representação de como eles atuam, sentem e se sociabilizam;

7º  em uma sociedade que valoriza corpos belos, jovens e saudáveis, o BBB reforça a imagem de uma juventude “sarada”, sem gorduras ou quilos extras.

Para seduzir as audiências, o BBB apresenta-se como um formato novo que utiliza “roupas velhas”, isto é, utiliza-se da mistura de diferentes gêneros para tornar-se reconhecível. Os formatos podem aparecer por meio da mistura de vários gêneros que terminam por parecer novidade, mas são nossos velhos conhecidos, como as histórias contadas, como uma novela com sua sequencialidade e pequenas novidades a cada dia, como os jogos com seus desafios e prêmios ou como os programas de auditório com a participação popular.

Vale recordar que os gêneros ficcionais podem ser observados desde a Grécia Antiga, quando os modelos básicos para a literatura eram o épico, o lírico e o dramático. As tradicionais matrizes literárias foram sendo recicladas, constituindo um hibridismo literário que, transportado para o cinema e para a televisão, resultou na formação de outras classificações e permitiu que outros modelos, gêneros e formatos fossem recriados, dando margem para que o espaço público cada vez mais entrasse dentro das casas, das salas e dos quartos de todo o país. Mas, além de entrar nos lares brasileiros pela TV, a intimidade daqueles que participam de reality shows está disponível para quem quiser ver em um movimento que já extrapolou uma única plataforma tecnológica. Saiu dos livros e do teatro para o cinema; deste para a TV e, mais recentemente, para os computadores de mesa ou de mão com acesso à internet e também para os celulares.


“Embora o voyeurismo e o exibicionismo (gostar de se mostrar) existam há muito tempo, é possível afirmar que a chegada de diferentes tecnologias, como a TV, os computadores com internet e mesmo os celulares, tornou públicas situações antes restritas ao campo privado”
 



Cosette Castro é doutora em comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), professora do mestrado em TV Digital da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autora do livro Por que os Reality Shows Seduzem as Audiências? (Paulus, 2006).