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Ficção Inédita

Averrós

por José Luiz Passos

 
Danado, o ar tem um cheiro. Levanto com o barulho que vem de fora. Do muro, para além do gramado, alguém grita para dentro. Grita bem alto.

– Opa, lá vem o Marrom. Ei, Chupeta de Satã!

Ouço isso e salto da cama, espalho meus bonecos de chumbo, largo os cartuchos de bala seca, cascas de 32 e 44 que caem aos montes fazendo um barulho de cascata. Não preciso apurar o ouvido, olho pela janela e lá está o alvoroço. Vejo Fátima e Sebastião parados em frente de casa.

Averrós vem aí. Chegou e já está no portão. Meu coração incha, late comigo de pé querendo sair, pular, ir até lá e cumprir de sentinela. Testo a maçaneta da porta, hoje sem tranca, então sorrio e saio. Corro que corro, salto os degraus da escada e no fim do corredor voo baixo. Quando passo pela sala, vem Bina, a cadela me vê e começa com a perseguição. Sigo a trote largo, mas logo a enxerida, galga magra e estabanada, se mete pelo meio das minhas pernas. Perco o equilíbrio e penso que caio, mas não, ela se entorta burra de alegria, corre de lado girando a língua e o rabo. Deixo a cã doida para trás e novamente disparo esperando dar com Averrós e sua cara de carão, a voz mansa e engraçada querendo de tudo um pouco, assustando a gente com aquele jeito de pedir.

– Me dê um pão. Me dê pinga da boa.

– Tem não, Averrós. Vá trabalhar – é o que lhe dizem. Menos meu pai, meu pai lhe diz que volte mais tarde, lhe dá um bocadinho disso ou daquilo, e o Visita sai contente.

Mas agora, não. Agora é diferente. – Cadê? Quede ele? Seu pai – Averrós me pergunta de longe. – Quero saber dele. Não sou o Que-Diga! Abra, que é só com ele – e grita olhando para cima, para as janelas dos quartos: – Desça aqui, mestre. Só um minuto – ele diz. Fala alto, mas meu pai não pode ouvir.

Dizem que Averrós é perigoso de tão pacato. Pede antes de tomar ou não toma porque sempre lhe dão um pouco, por medo do pior. Verdade que poupa nossa casa e vem só por meu pai, solicita apenas a ele. Agora está solto. Talvez tenha escutado o que já me disseram dele, o que ouvi mais de uma vez.

– Aquilo espuma para dentro. Com pouco pode estourar.

Pessoalmente nunca vi, nem acho que Averrós, o famoso Chupeta de Satã, Lorde Cheiroso, o Grota, Sapinho, Barba de Camarão, o grande Coroa de Frade, tido por Mata-Sete, nosso querido Sem-Comunga vá estourar.

Estou para ver. Averrós tem quantos? 40, 50 anos? Alto assim, vem com tudo para cima do portão, sacode o próprio peso, bate com as mãos cerradas, chacoalha as correntes e o cadeado. Olho aquilo com horror querendo ver no que vai dar, se ele entra ou não, se meu pai já pode aparecer na janela ou alguém vai dizer que chega, que tirem o Boca-Seca dali. Mas não adianta, porque Averrós não ouve. Joga-se no portão de novo pedindo meu pai, que ele repete ainda mais alto, a voz escabrosa pelo tom frouxo e tossido, os olhos saltados para fora e as mãos agarradas com força nas vergas do gradeado, e as pessoas começam a chegar perto querendo saber o que era aquilo, meu Deus.

Averrós é alto, porém lento. Dos que já correram atrás de mim, só ele não me agarrou na vez em que lhe arruinei a pinga, o garrafãozinho ao rés do calçamento. Vi o alvo e pensei, ali tem, vamos embora. Fui e, passando perto na disparada, com Averrós dormido no chão, raspei com o pé, a garrafa deu uma volta no ar e quebrou-se emborcando o mel de tanque, empapando a bunda e uma perna da calça do Afamado. Ele se levantou já pronto, partiu gritando.

– Se eu te pegue, viu! Ah, se eu te pegue.

Eu corria mais do que se um cavalo me puxasse de carrinho a reboque, mais do que se a rua afundasse ladeira abaixo ou eu fosse não só com as minhas, mas também com as pernadas de meu pai atleta, antes do acidente dele.

Agora estou de pé, parado, assistindo à cena que o Roto faz, que ele só falta morder o portão. De longe vem sua fedentina. Averrós é o exemplo que me dão quando já passei do ponto do banho, me imploram para que não cheire como ele, com camisa por cima de camisa, faça chuva ou faça sol, vestido com suas várias camadas de calças, abafado como um cacho de bananas. É Fátima quem me aponta isso.

– Olha o Guarda-Roupa apurando como uma peça de charque – e ela remata para o vigia: – Não deixe entrar, ouviu? Se ele pular dê com o porrete nas costas. Mas dê com tudo, seu Sebastião!

E agora a galga late alvoroçada para esse homem sacudindo o portão, gritando o nome de meu pai, olhando-me de lado como se eu fosse o próprio ladrão da cruz. Passamos um tempo diante de Averrós. Ele gesticula e aperta as rugas em volta da boca e dos olhos, enquanto avalio o volume desse barulho todo. O portão, o Pira e a cadela soando alto. Estou para ver meu pai assistindo a isso e, mesmo assim, nem sombra me aparece na janela, então não aguento.

– Pára, pára! – grito, e ergo os braços para o alto com os pés no chão como se fizesse polichinelo, digo de novo:
– Pára, não ouviu?

Todos ali me olham. Averrós me olha e larga as vergas do portão. Digo a Sebastião que baixe o pau de imbuia, deixe de bater com ele na grade em frente à cara de Averrós, tentando lhe acertar as mãos.

– Pode deixar. Pode deixar. Já falei! – e insisto com o vigia: – Abra esse portão.

O grande Averrós se cala, toma um passo para trás. Agora me olha com os olhos parados, fala mais baixo. – E o seu pai?

– Está lá em cima – digo, e balançando a cabeça, – mas assim você não ajuda.

– Cadê ele?

– Agora não pode. Está lá em cima. Já disse. O que é que você quer?

– Quero ver o seu pai.

– Não. Ninguém mais fala com ele.

– Só queria saber.

– Agora já sabe. Já falei.

Então Averrós repete seu bordão: – Mal, mal, mal. – Penso se lhe digo ou não. Em como dizer ao grande Tintino que ontem meu pai estourou a mandíbula dentro de casa. Sua voz agora é soprada, sai de um funil, e ele, dos olhos para baixo, vai coberto de panos como um Sheik pintado com nódoas vermelhas no véu do rosto. Averrós quer saber. Faz um gesto em redor do queixo, como se ele próprio fosse o lazarento. Aponta o pescoço querendo com isso indicar o do meu pai, o queixo dele, que ouviu dizer. Veio por seu benfeitor, não se contenta comigo.

– Já lhe disse, Averrós. Ele está lá em cima. Não tem jeito. Agora, vá.

Peço que passe para fora do portão. Averrós me ouve e olha para o alto. Estou diante dele com o portão escancarado e, atrás de mim, a mocinha cã Bina, Fátima e Sebastião balançando o porrete, esperando que o Gigante Boleado faça um gesto brusco.

– Solte isso, seu Sebastião – e o vigia baixa o pau.
Averrós me olha de frente, ao alcance de um braço, depois passa para fora.

– Você cuida daí para a rua, Averrós. Cuido eu aqui de dentro – e me viro para Fátima: – Vá lá e traga uma da boa.

Digo isto e ninguém se mexe no tempo da sua pressa para lá e para cá da cozinha. Tanto silêncio é o eco de uma concha enorme. Ela volta com o litro e me entrega essa encomenda sem tirar os olhos de seu futuro dono.

Estendo a mão para Averrós, mas ele não passa para dentro, adiante não quer mais. Então saio eu. Com dois passos estou fora de casa, cruzo o portão e fico só, frente a frente, com o Dito, que logo estira o braço e encosta a mão na oferta. Nada ele puxa de vez, jamais, olha fixo a garrafa sua querida. Estou só, sei que meu pai não me vê, não pode me ver lá de cima, talvez não me veja nunca, mas Averrós me olha como se ele mesmo estivesse aqui de pé, o benfeitor do fiel Moela-Preta que prefere a cândida daqui de casa. Então lhe passo o regalo e faço com a mão que ele pense e tenha mais medida, pois essa cana rega um dia como nenhum outro, hoje o último. Ela cumpre o ofício de uma molhadela realmente benta, por modo de meu pai. E que ele, o Gota, sempre se lembre bem de quem foi meu pai.

– Sei que você sabe o que estou lhe dizendo.

Ele me ouve e puxa as franjas das calças e das camisas que veste, das tantas. Mete a garrafa em um bolsão e bate com a palma naquela carga recém-aportada.

-– Com essa, vou me branquear – Averrós me diz, e quando damos sua visita por encerrada, todos aqui dentro, o portão já abotoado, ele vem e fala aquilo que me atira para o dia de ontem, roda-viva eternamente, de volta à beira do meu poço maior: – Seu pai soubesse o menino que tem, não tinha dado esse tiro na boca – e finalmente sai, caminha devagar um rei na sua rua imensa.
 

José Luiz Passos é autor, entre outros livros, do romance Nosso Grão Mais Fino (Alfaguara, 2009).