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Os lugares do passado

por Aline Vieira de Carvalho

A pesquisadora e arqueóloga Aline Vieira de Carvalho esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 19 de fevereiro de 2009.

Formada em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a arqueóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Aline Vieira de Carvalho afirma sempre ter “trabalhado com arqueologia, em especial arqueologia brasileira” – mesmo antes de seu mestrado em história Cultural e doutorado em ambiente e sociedade. “Já fiz trabalhos de campo na região de Ilhabela, São José dos Campos e Jacareí”, contou no bate papo que teve com o Conselho Editorial da Revista E.

Atualmente, Aline focou seu interesse em arqueologia pública, tema que pesquisa no NEE. “Algo um pouco diferente do trabalho de campo”, explica. “O que eu faço agora é encontrar maneiras de divulgar o trabalho da arqueologia brasileira para o público, em especial para os leigos e para os estudantes de ensino fundamental e médio”. O principal interesse da arqueóloga hoje é mostrar a importância dessa área do conhecimento que, segundo ela, amadurece no Brasil desde final da década de 1980. “A idéia é mostrar as coisas importantes que se faz nessa área por meio da ação educacional, que inclui desde palestras em escolas até a criação de museus”. Durante a conversa, a pesquisadora contou como é o trabalho de um arqueólogo, falou um pouco sobre alguns sítios brasileiros – nome que se dá ao local onde são descobertos vestígios antigos ou recentes da passagem do ser humano – e comentou como seria possível aliar arqueologia e turismo. A seguir trechos.

O que faz um arqueólogo?

Um arqueólogo trabalha com a cultura material, ou seja, tudo aquilo que é produzido ou modificado pelo homem. Essa sala, por exemplo [refere-se ao local onde foi realizado o encontro], é repleta de cultura material, feita e transformada. As culturas materiais têm sempre muitas intencionalidades e autores. Aqui há uma série de cadeiras, uma mesa sobre um tablado etc. Ou seja, se vocês não conhecessem uma sala de aula, poderiam, entrando aqui, analisar qual é o centro da atenção e como se constituem as relações de poder aqui dentro [por meio dos elementos da sala, da cultural material]. O arqueólogo lê essa cultura material e tenta entender as relações de poder que estão estabelecidas ali. Um outro exemplo, mesmo que pareça bobo, é a análise das roupas. Quando você analisa a roupa de alguém dos pés à cabeça, você pode saber se aquela pessoa é um estudante de ensino médio, um executivo, se ela tem uma profissão mais arrojada etc. A arqueologia trabalha de forma científica, com métodos quantitativos e teorias sobre o mundo que o homem constrói. Vamos supor que é encontrado um sítio tupi-guarani na região do litoral sudeste brasileiro. Além de lidar com o que encontra (restos de cerâmica, vestígios de alimentação, ossos de peixe, artefatos religiosos etc...) um arqueólogo pode ler essa materialidade junto a textos que foram escritos sobre aquela aldeia (além da própria leitura da cultura material).

Grandes interesses da arqueologia brasileira

Nós tivemos aqui cerca de 2 a 6 milhões de pessoas antes dos colonizadores, divididas em mais ou menos mil etnias – são números aproximados. A Funai [Fundação Nacional do Índio] divulga que hoje temos apenas 300 mil indígenas, ou seja, o extermínio foi imenso. Das cerca de mil etnias, sobreviveram mais ou menos 220 – novamente números aproximados. Além das pesquisas sobre os antigos habitantes do que hoje chamamos de Brasil, também pesquisamos as pessoas que vieram com os colonizadores europeus ou após a chegada deles.
Então, nossos objetivos são muitos. Alguns estão procurando a origem do homem americano, por exemplo.

Temos algumas pesquisas no Piauí, onde teriam sido encontrados vestígios da ocupação humana datada de 48 mil anos antes do presente. Só como curiosidade: a arqueologia pré-colonial brasileira, assim como a geologia e outras ciências, utiliza o termo “antes do presente” para a marcação do tempo. Trata-se de uma convenção, acordada em 1954, de que a referência da marcação do tempo seria o ano de 1950. É uma escolha arbitrária para lidar com o fato de que o presente é sempre mutável. E o consenso entre os pesquisadores: o presente, nos estudos de objetos datados por radiocarbono, não é 2009, mas sim 1950.

Há pessoas que defendem as pesquisas sobre os 48 mil anos fervorosamente e outras que criticam muito. Uma das maiores críticas à data é que ela pode ter sido concluída a partir da datação do carvão – que simplesmente poderia ter vindo de incêndios naturais naquela região. De qualquer forma, a pesquisa é muito séria. A idéia de 48 mil anos antes do presente traz muitas dificuldades para entender o povoamento do Continente Americano.

Se essa data for comprovada, a idéia de que o homem teria surgido na África e há cerca de 12 mil anos antes do presente e que teria passado pelo Estreito de Bering para chegar à América vai por água abaixo. Outras pesquisas bastante interessantes sobre o povoamento da América são aquelas realizadas na região da Lagoa Santa, em Minas Gerais.

Arqueologia pública

Existem muitos exemplos de boas ações em arqueologia pública no Brasil. Eu poderia citar os trabalhos coordenados pela arqueóloga e professora da UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] Nanci Vieira de Oliveira. Em 2004 foram realizadas escavações na praia de Piraquara, área da Eletronuclear [em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro]. As escavações se originaram de uma parceria entre a Uerj, a Eletronuclear e o NEE da Unicamp. Ali existe um sambaqui [acumulação de moluscos marinhos, fluviais ou terrestres], palavra que, em tupi-guarani, significa “monte de conchas”, e que é um vestígio das populações que viviam no litoral brasileiro no período pré-colonial.  Nos sambaquis encontramos restos de alimentos (e, a partir disso, podemos imaginar o que as pessoas comiam), ferramentas, adornos e até alguns sepultamentos. Só como curiosidade, o nosso maior sambaqui é o de Garopaba do Sul [literal de Santa Catarina], com cerca de 200 metros de comprimento por 30 metros de altura, numa área de 101 mil metros quadrados. É uma área imensa reconhecida como um patrimônio arqueológico.

Mas, voltando aos trabalhos de arqueologia pública, o projeto de exploração do sambaqui na em Piraquara foi financiado por uma iniciativa mista pública e privada: pela Eletronuclear, uma empresa que conta com a participação do Estado, e pela Faperj [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro], com bolsas de estudos dadas a alunos de graduação e que participaram do trabalho. Das escavações, passou-se para os trabalhos de educação patrimonial. Estudantes do ensino médio das escolas públicas de Angra dos Reis e de Paraty foram selecionados para serem treinados para reconhecer o patrimônio arqueológico da região e, principalmente, atuar na preservação desse patrimônio. Entre os adolescentes envolvidos, há jovens vindos de aldeias guaranis da região. O sambaqui faz parte da memória de todo o Brasil, e é importante ser entendido como um “emblema” não apenas de grupos indígenas, mas também dos não indígenas, ou seja, de todos nós. 
 

“Nós tivemos aqui cerca de 2 a 6 milhões de pessoas antes dos colonizadores, divididas em mais ou menos mil etnias (...). A Funai [Fundação Nacional do Índio] divulga que hoje temos apenas 300 mil indígenas, ou seja, o extermínio foi imenso”.