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Machado, o bruxo de Cosme Velho
Pesquisadores esclarecem mistérios sobre a vida e a obra de nosso maior escritor
CECÍLIA PRADA
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O famoso mas bastante controvertido crítico americano Harold Bloom, professor da Universidade de Yale, incluiu Machado de Assis em seu catálogo de cem gênios da literatura universal, lançado em 2003, e a imprensa brasileira costuma transmitir de boca cheia a classificação de Machado como "maior escritor", sem examinar de perto o que ela representa, na realidade. Ora, quando visitou o Brasil logo após o lançamento de seu "mosaico de espíritos criadores" (como consta do título inglês), Bloom limitou-se a dizer em uma entrevista ao jornalista Luís Antônio Giron, da revista Época, que considerava Machado "o maior gênio brasileiro do século 19" – e nem precisava ter vindo de tão longe para pontificar sobre isso. Mas acrescentou: "Machado reúne os pré-requisitos da genialidade. Possui exuberância, concisão e uma visão irônica ímpar do mundo".
Na obra mencionada, o crítico fazia, porém, uma observação baseada em duas inverdades: na sua opinião, Machado seria nosso "maior escritor negro" e "neto de escravos". Bloom incorreu em generalização apressada ao estender um critério racial exclusivo de seu país – onde qualquer pessoa que não conte com 100% de sangue de brancos é considerada "negra" – a nações de mestiços predominantes, como é a nossa. E Machado na realidade tinha somente um quarto de sangue negro (segundo alguns pesquisadores, somente um oitavo, mesmo), por parte de sua avó paterna, que parece ter sido negra, ou parda, mas liberta. Sua obra também não se encaixa de maneira alguma no quadro da militância "negra" – ele nunca se ocupou abertamente dos problemas dos negros brasileiros (no tempo da escravidão), mas sim das características sociais e psicológicas da sociedade branca, elitista, preconceituosa, fechada e conservadora do Segundo Império. Denunciando o "sistema" de forma sutil, irônica e original, deixou, porém, obra muito mais duradoura do que seus congêneres politicamente engajados – tanto que o próprio professor de Yale reviu, em edições posteriores, sua apressada classificação racial, insistindo apenas na genialidade da obra machadiana.
Bloom não é certamente o único crítico estrangeiro a reconhecer a grandeza do nosso escritor – multiplicam-se os estudos sobre sua obra em universidades, aqui e no exterior. Neste ano, que marca o centenário da morte de Machado, é oportuno lembrar que uma verdadeira revolução na crítica machadiana deveu-se a uma americana, a brasilianista Helen Caldwell, que há mais de 50 anos já o traduzia e estudava. Em 1950, ela lançou o livro The Brazilian Old Fellow of Machado de Assis. Em 1960, publicou The Brazilian Othello of Machado de Assis – um estudo sobre Dom Casmurro somente traduzido e publicado no Brasil em 2002, isto é, 42 anos mais tarde, mas que causou impacto no meio intelectual brasileiro. Sua revolucionária tese sobre a "inocência" de Capitu transmitia sua visão de feminista, por certo, mas fez escola entre nós e no exterior. Hoje, tanto no Brasil como na Europa e nos Estados Unidos, os três grandes romances de Machado (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro) continuam a despertar polêmicas apaixonadas – um dos mais importantes tradutores e estudiosos de Machado é o inglês John Gledson, um professor da Universidade de Liverpool que desde 1970 passa temporadas entre nós, lecionando em um bom número de universidades.
Uma lenda romântica
Até a década de 1940 pouco se sabia das circunstâncias em que Machado nascera e fora criado, o que fazia com que seus biógrafos fossem repetindo um histórico pasmo, o do "milagre" de sua literatura, sem atinar como um menino pobre, mulato, doentio, que diziam todos ter nascido na miséria, no morro do Livramento, neto de escravos, filho de um pardo e de uma lavadeira portuguesa, conseguira sozinho abrir uma brecha e ascender verticalmente até posições de prestígio. Sendo assim – perguntavam-se os críticos –, como pudera ele descrever tão bem uma camada social à qual não teria tido acesso?
O primeiro desmentido a essa lenda foi feito por Lúcia Miguel-Pereira, em prefácio à edição de 1944 da biografia de Machado que lançara em 1936, e que continua tendo repetidas reedições – o professor e crítico Alfredo Bosi considera-a mesmo "a melhor biografia de Machado de Assis, até hoje". Lúcia esclarecia que a descoberta da certidão de batismo do escritor e de outros documentos tornara enfim possível esclarecer os dois "mistérios" de Machado de Assis, o familiar e o literário.
Ou seja: ao contrário do que se imaginava, embora tendo nascido sem fortuna, o escritor nunca vivera na miséria. Seus pais viviam confortavelmente em uma casa situada na Chácara do Livramento, onde eram benquistos por todos como agregados. Sua mãe, Maria Leopoldina Machado de Assis – que ele perdeu quando tinha 10 anos e não 2, como antes se acreditava – era uma senhora portuguesa de fino trato, costureira e bordadeira (e não lavadeira), que gozava da amizade da proprietária, dona Maria José Mendonça Barroso, também portuguesa, viúva do general e senador Bento Barroso Pereira, que fora por duas vezes ministro do Império.
O pai do escritor, Francisco José de Assis, era mestiço, mas, segundo fortes indícios, filho do padre Antônio de Azevedo, açoriano, e de uma negra (ou parda) liberta. Era pintor e dourador, pertencente a uma tradicional corporação de artesãos existente no bairro do Livramento, constituída por libertos e mestiços. Não era um ignorante, gostava de ler e sabe-se que assinava o Almanaque Laemmert, publicação oficial da Corte Real no período 1844-1889. Os padrinhos de batizado do futuro escritor, realizado na capela particular da família, foram a própria dona Maria José e Joaquim Alberto de Sousa Silveira, que era um dignitário do Paço Imperial – ambos perpetuados na sua memória, pois haviam dado a ele seus prenomes, Joaquim Maria.
São numerosos os estudos universitários atuais que se ocupam das origens de Machado e que explicam seu precoce desenvolvimento intelectual pelo próprio meio refinado em que foi criado, que lhe teria dado inclusive a sua característica elegância no modo de se vestir e de tratar os outros. A pesquisadora Ana Amélia Chaves Teixeira Adachi, da Universidade Federal de São João del Rei, escrevendo sobre "o papel da família de Machado de Assis", diz: "Quando buscamos as origens de Machado de Assis percebemos que, embora mulato, fora criado no palacete da madrinha, acostumado com pinturas, livros e boas maneiras; tudo isso proporcionado por um capital social dos pais. Machado de Assis colhia os frutos de uma boa rede de relacionamentos derivados do meio social em que estavam inseridos e que muito lhe favoreceu a adoção de disposições culturais. Essas experiências constituíam importantes referências de base para o romancista".
A morte da madrinha em 1845 e a da mãe em 1849 foram certamente traumáticas para o menino. Mas logo, tendo seu pai se casado novamente, a madrasta Maria Inês lhe forneceria uma continuidade de carinho e afeto verdadeiro – interessava-se pela sua educação, procurando até que aprendesse francês, língua indispensável naquele tempo. Quando Francisco faleceu, algum tempo depois, o menino continuou a viver com a madrasta, ajudando-a a ganhar a vida como cozinheira, ao que parece, de um dos mais finos colégios do Rio de Janeiro – onde vendia balas e ao mesmo tempo aproveitava para assistir a algumas aulas. Durante esse breve período – uns quatro anos – chegou a trabalhar também como "auxiliar do culto na Igreja da Lampadosa". O francês que aprendeu na infância deve ter sido muito bem ministrado, pois sabe-se que foi exímio durante toda a vida nessa sua segunda língua.
O que é certo é que a partir de 1855 (aos 16 anos) já se inseria na vida jornalística e literária, freqüentando a roda intelectual da livraria do escritor Francisco de Paula Brito e iniciando, com a publicação de um poema, sua colaboração contínua e efetiva para a revista literária Marmota Fluminense. Nesse período já tomava aulas de latim com um padre – outro imperativo da época. Aos 17 anos consegue o emprego de aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, mas logo seu talento literário é reconhecido pelo diretor daquela instituição, o escritor Manuel Antônio de Almeida, que se torna seu protetor. Dois anos mais tarde já estava completamente inserido no meio das letras, tornando-se amigo também dos já consagrados Gonçalves Dias, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.
Vemos que a "lenda do pobre menino infeliz que lutou para ser reconhecido" deve ser substituída pela do "rapaz sortudo" que cedo conseguiu superar algumas dificuldades e instalar-se, por toda a vida, como merecia – aos 21 anos vamos encontrá-lo, a convite de Quintino Bocaiúva, como redator do Diário do Rio de Janeiro e colaborador de vários outros órgãos de prestígio. Também como crítico teatral, e até mesmo como censor. Como escritor, publicou seu primeiro livro aos 22 anos e nunca teve dificuldade para ser divulgado ou reconhecido. Em sua vida pessoal, Machadinho – como era chamado – também foi sempre cercado, desde a infância, do carinho e da admiração fornecidos por um ambiente de matriarcado, reproduzido em várias de suas obras.
A estabilidade financeira que lhe adveio por volta dos 30 anos, com sua entrada para o funcionalismo público – onde fez carreira –, somou-se à afetiva, que o casamento com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais lhe proporcionou sempre, até a velhice. Muito culta, Carolina representou também a possibilidade de refinamento cultural para o escritor, pois levou-o ao conhecimento do inglês e à leitura sistemática de Shakespeare e dos grandes humoristas Laurence Sterne e Jonathan Swift, que lhe forneceriam a base formal de seus maiores romances. É sabido que Carolina não somente discutia com o marido seus textos, mas às vezes corrigia neles tanto a ortografia como a própria redação.
Ontem e hoje
Quando dizemos que Machado de Assis foi um escritor admirado e reconhecido durante sua vida, temos de levar em consideração que unanimidade não existe. Muitos o criticavam, a começar por Sílvio Romero, por ser "superficial", pela sua "incapacidade de composição", pela "gagueira do seu estilo". E principalmente pelo seu dito "absenteísmo" – um crime inafiançável, pelo fato de Machado não ter feito de sua obra literária um espelho realista dos problemas básicos, sociais, da realidade brasileira.
O romancista Lima Barreto tinha verdadeira aversão a Machado. Dizia que era tíbio em questões de língua e que inventava "tipos sem nenhuma vida", por ser "um homem de sala, amoroso das coisas delicadas, sem uma grande, larga e ativa visão da humanidade e da arte". O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma rezava pela cartilha do que então era chamado de maximalismo – antecessor do marxismo/comunismo declarado, com seu subproduto compulsório, o "realismo socialista". Cartilha de prolongada duração e prestígio, pela qual obrigatoriamente rezaram, e rezam ainda, algumas gerações posteriores – uma visão míope que não consegue desligar-se das características temporárias, circunstanciais, para temática e formalmente empreender a análise em profundidade dos verdadeiros propósitos e realizações de um escritor independente como Machado, que, no dizer de Raimundo Magalhães Junior, "tinha sua maneira pessoal e única de dizer as coisas, e as dizia".
Essa contaminação entre o ideológico e o literário, no entanto, não afeta o juízo de críticos de primeira linha como Antonio Candido e Roberto Schwarz. Pelo contrário – tanto no caso de Machado como no de Guimarães Rosa (que também foi tachado de "alienado" no cotidiano da mediocridade acadêmica) –, Candido fez sempre questão de reconhecer a originalidade e a duradoura grandeza de suas obras, lançando esquemas básicos para sua melhor compreensão. E Roberto Schwarz, reconhecidamente marxista, empreendeu a revisão crítica da obra machadiana, fundamentando a mais importante teoria atual sobre nosso grande escritor.
Com suas marcantes obras, Ao Vencedor as Batatas, de 1977, e Um Mestre na Periferia do Capitalismo, de 1990, ele consegue atingir o cerne da criatividade e analisar os artifícios de estilo empregados pelo "bruxo de Cosme Velho", como era apelidado nosso romancista, para desmascarar as contradições em que se debatia a sociedade brasileira oitocentista. No primeiro livro, Schwarz estuda os romances da fase inicial de Machado, e no segundo, Memórias Póstumas de Brás Cubas – ambos se completam em uma análise original que Schwarz empreendera já a partir de 1964, desenvolvera no período de seu exílio político em Paris, de 1969 a 77, e completara ainda no exterior, como bolsista da Fundação Guggenheim e da Universidade de Princeton, até 1981.
Partindo da asserção de José Veríssimo de que Machado "sendo o único escritor universal era também o mais nacional de nossos autores", Schwarz, que se diz também impregnado pelos livros e pelos pontos de vista do mestre Antonio Candido, toma o escritor como "figura programática" – isto é, que está sempre imbuído de seu tempo e de seu país, mesmo "quando trata de assuntos longínquos". E que desenvolve no conjunto de sua obra um dispositivo criador, uma fórmula narrativa que "consiste em certa alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira". Nos romances publicados até 1880 por Machado – o último deles é Iaiá Garcia – já existe um estudo das "dissonâncias" estruturais presentes na sociedade brasileira: dividida em três partes, senhores, dependentes e escravos, ao importar modelos sociais europeus ela os impunha sobre uma realidade sui generis, marcada por contradições intrínsecas e problemas como corrupção, clientelismo, dependência e imperialismo – que chegam até nossos dias.
Em seu segundo livro, Schwarz demonstra que, valendo-se de recursos literários que foi buscar principalmente em Sterne e Swift, Machado cria o discurso do personagem Brás Cubas para mimetizar à perfeição a própria expressão volúvel, baseada em contradições, sofismas e caprichos, que é a das classes dominantes. Sob uma aparência de "modernidade" e ao som dos hinos patrióticos que apregoavam a "liberdade", o "progresso", o país que se construía após a Independência permanecia ainda essencialmente escravocrata, atrasado e paternalista – uma situação não resolvida após a Lei Áurea, pela inexistência de um mercado livre de trabalho.
Reconhecendo o que deve à tradição – que define como "contraditória" – do pensamento de Georg Lukács, Walter Benjamin, Bertolt Brecht e Theodor Adorno e à "inspiração de Marx", Schwarz, que sempre foi anti-stalinista, não consegue aceitar a "camisa-de-força para a inteligência" da imposição partidária. E dá assim uma abertura ampla à sua crítica, estendendo-a até a análise da confusa e contraditória nação em que continuamos hoje a viver – em meio a um ainda mais caprichoso e corrompido "discurso" que propala a inserção pós-moderna sobre um panorama de corrupção e atraso.
John Gledson, autor de obras fundamentais sobre Machado, como, entre outras, Machado de Assis – Ficção e História, de 1986, e Por um Novo Machado de Assis, de 2006, apresenta um trabalho crítico perfeitamente entrosado com o de Schwarz e o de Helen Caldwell. Ele acrescenta a esses estudos, porém, uma tese sobre o "valor alegórico" de vários livros de Machado. Até mesmo de um romance que foi absolutamente esquecido, como Casa Velha – publicado somente como folhetim em 1885-6, e como livro postumamente, em 1944, por Lúcia Miguel-Pereira. Das intrigas aparentemente mais "românticas" criadas pelo escritor, o crítico consegue extrair o plano consciente e geral de uma grande obra, distribuída pelos romances da maturidade, que revela com ironia e sutileza a intrincada teia político-social do século 19 e da sociedade brasileira. A vasta contribuição crítica de Gledson abrange também o relacionamento dos trabalhos literários de Machado com suas atividades de cronista e jornalista, e uma releitura absolutamente original, também baseada em sua teoria "alegórica", do último romance do nosso escritor, Memorial de Aires.