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Fandango, ao som da viola branca

Dança tradicional sobrevive em festas e encontros culturais caiçaras

JOÃO MAURO ARAUJO


Apresentação dos Jovens da Juréia
Foto: João Mauro Araujo

Alguns chegam a pé, outros de bicicleta. O baile começa todos os sábados à meia-noite. No salão há sempre muitas senhoras de brincos e com os cabelos bem penteados, e os homens, também bastante elegantes, mostram-se dispostos a não deixar nenhuma das damas, que são maioria, voltar para casa sem bailar. São dois ambientes: o bar, na ante-sala, com mesas quadradas, que termina no quintal, e a pista, cercada de bancos de cimento junto às paredes laterais. No pequeno palco, os músicos do grupo Sandália de Prata orquestram os ritmos do fandango, enquanto os pares de "folgazões" rodopiam arrastando os calçados, cujo atrito com o chão produz um chiado de acompanhamento sonoro.

O fandango é uma dança popular, geralmente dividida em três categorias: o rufado ou batido, quando há batidas de pés e palmas; o bailado ou valsado, no qual as duplas ficam em contato; e uma terceira que mescla as duas anteriores. As melodias são chamadas de moda ou marca, e para cada uma existe determinada coreografia. As letras, porém, não são fixas, e por isso os mesmos versos podem ser cantados em qualquer uma delas. Já a cadência principal fica sob a responsabilidade da viola branca, que tem sete cordas e cuja diferença em relação a outros tipos similares está na turina (ou periquita), uma corda fina que se estende até o meio do braço do instrumento. Estão presentes também a rabeca, o cavaquinho, o machete (viola pequena, de cinco cordas), o violão, o bandolim, o pandeiro ou adufe (pandeiro mais antigo, com pele de couro) e a caixa de folia (um tambor). Com exceção da viola branca – obrigatória –, os demais instrumentos podem ou não fazer parte do conjunto.

Em seu livro Danças Dramáticas do Brasil, Mário de Andrade (1893-1945) situa as origens do fandango na Espanha, descrevendo-o como uma dança rápida (caracterizada pela violência da movimentação) de compasso ternário, que "serve para designação genérica de certas coreografias pouco diferenciadas entre si". Segundo ele, o fandango viajou para Portugal, fixando-se especialmente no Alentejo e no Ribatejo, e depois atravessou o Atlântico, onde conservou o sentido que o define: "meter o fandango" significava arrumar confusão, iniciar briga. Esse folguedo é conhecido em diversas regiões do Brasil, mas com variações no estilo de dança: no Rio Grande do Sul, o fandango tem acompanhamento de sanfona e por vezes de castanholas; no nordeste, corresponde a uma dramatização da luta entre cristãos e mouros (também conhecida por "chegança" ou "nau-catarineta"); em São Paulo e no Paraná representa as danças de salão e os sapateados marcados pela viola branca.

De acordo com o pesquisador Alceu Maynard Araújo – em sua obra Cultura Popular Brasileira –, o fandango aportou no Brasil com os açorianos, colonizadores da grande faixa do litoral sul, por volta de 1774. A dança esteve em voga pelos fins do século 18 e animou festas palacianas no início do século 19. Existem, todavia, outras hipóteses sobre as origens do fandango, inclusive sugerindo um fluxo inverso, ou seja, com berço na América e posterior divulgação em solo espanhol.

Museu vivo

A festa semanal organizada por Maria das Neves acontece, desde 1986, no Sandália de Prata (o antigo clube Pau Mole), localizado no centro de Iguape – cidade do litoral sul de São Paulo, distante 200 quilômetros da capital e 260 de Curitiba –, onde se apresenta a banda homônima. O fandango é uma das expressões culturais desse município que atrai visitantes o ano inteiro, por razões históricas, paisagísticas e religiosas. Fundada em 1538, Iguape tem entre seus marcos patrimoniais o edifício que abrigou a primeira casa de fundição de ouro do país. A cidade também recebe a segunda maior romaria do estado, principalmente do final de julho até o dia 6 de agosto, em homenagem ao Senhor Bom Jesus de Iguape. Quanto à ecologia, integra a Área de Proteção Ambiental Cananéia-Iguape-Peruíbe (APA CIP), que, junto com outras unidades de conservação do vale do Ribeira, possui a maior faixa contínua de mata atlântica preservada do país, com áreas de floresta densa, manguezais, restingas, praias, rios, cachoeiras, montanhas, vales e ilhas.

De alguma forma o fandango congrega em sua tradição esses três elementos – história, natureza e religião –, pois está diretamente relacionado à cultura caiçara, característica dos trabalhadores da terra e do mar que vivem na faixa litorânea entre o Rio de Janeiro e o Paraná. Tanto é assim que essa dança com traços comuns no Paraná e em São Paulo foi também batizada de fandango caiçara. Como acontece com qualquer manifestação cultural, o fandango sofreu transformações no decorrer do tempo. A mais visível delas reside no motivo de promover os bailes, pois se antigamente o objetivo era "recompensar" um trabalho comunitário, agora esse tipo de evento depende de ofertas contratuais. Essa mudança foi constatada por muitos pesquisadores que acompanharam a história do fandango: a dança estava minguando e foi reanimada, adquirindo hoje ares profissionais.

Mutirão

Em 1985, os integrantes do grupo de teatro de bonecos Filhos da Lua queriam fazer um espetáculo com elementos da cultura popular paranaense. Eles viajaram durante três meses por Paranaguá, Guaraqueçaba e Morretes, para colher informações sobre o fandango: "Descobri como era a afinação dos instrumentos, fui pegando os ritmos, e os atores aprenderam a sapatear nas coreografias", lembra o músico Luiz Rogério Gulin.

Ele passou a se envolver mais com o fandango e, na pesquisa de campo que acompanhou no início dos anos 1990, fez amizade com a família Pereira, em Rio dos Patos, região costeira de Guaraqueçaba. A partir dessa experiência ele chegou a gravar um CD duplo, Viola Fandangueira, tocando com o conjunto Viola Quebrada num dos discos e, no outro, incluindo o primeiro registro fonográfico da família Pereira. Mais recentemente, há dois anos, Gulin foi convidado a ser diretor musical do Museu Vivo do Fandango, projeto idealizado pela Associação Cultural Caburé, cujo objetivo é divulgar e fortalecer uma rede de instituições, grupos e pessoas ligadas a essa dança. "A casa dos fandangueiros não é um lugar fechado, parado. É onde eles tocam viola, então é um museu vivo", comenta Gulin.

Num período de três meses, ele e a equipe do museu visitaram mais de 300 pessoas no litoral de São Paulo (Iguape e Cananéia) e do Paraná (Paranaguá, Morretes e Guaraqueçaba). Logo foi elaborado um roteiro que inclui locais de pesquisa com material sobre o fandango e a cultura caiçara, endereços de casas de músicos, construtores de instrumentos e clubes onde acontecem os bailes. Além disso, do projeto resultaram um livro com biografias e fotos de fandangueiros, um CD duplo com participação de grupos dos dois estados e a elaboração do site www.museuvivodofandango.com.br, com os dados de toda a pesquisa.

A formação de grupos fechados e as apresentações em palco, com pagamento de cachê, representam a nova fase do fandango caiçara. Antes não existiam bandas nem bailes fora do contexto rural. Sua gênese estava ligada aos mutirões ou ajutórios, que eram formas de solidariedade entre vizinhos para realizar trabalhos. Até a metade do século passado, o caiçara sobrevivia da roça, onde plantava feijão, arroz, milho, abóbora, cana, melancia. "Na verdade, era a atividade agrícola que sustentava a cultura caiçara, não só quanto à alimentação, mas também como modo de vida. As festas que existiam eram todas rurais, camponesas, não tinham nada de marítimo", explica Antonio Carlos Diegues, coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade de São Paulo (Nupaub/USP). A pesca, que era então apenas uma atividade complementar, ganhou mercado e cresceu, mudando as prioridades do caiçara, que passou a lutar por um retorno maior e mais imediato. "Já nos anos 1950, o camarão era muitas vezes trazido de Cananéia para Santos de avião, tal seu valor", lembra Diegues.

Em Cananéia, os relatos sobre o fandango sempre remetem a esses tempos rurais e à prática do mutirão. Quando alguém precisava de ajuda para abrir uma roça e não tinha recursos para pagar funcionários, pedia aos parentes e amigos que o ajudassem. Estes aceitavam na condição de que depois o contratante promovesse um baile de fandango, com comida e bebida à vontade. Era um ritual com diversas fases. As pessoas acordavam cedo, compareciam à casa do vizinho, mas antes de iniciar o trabalho faziam promessa a São Gonçalo, pedindo que ele zelasse pelo bom andamento da roça. Apesar de não ter sido canonizado, Gonçalo do Amarante, padroeiro dos violeiros e fandangueiros, é santo no misticismo popular. "Ele era um rapaz bonito, que oferecia rosas para as prostitutas. Para não sentir atração por elas, colocava talos das flores dentro da bota. Isso foi um dos motivos da sua morte, aos 28 anos, por tétano", conta Amir Oliveira, professor de fandango.

Diz-se também que São Gonçalo, após grandes jornadas de trabalho, pegava a viola e fazia festas. Talvez por isso as promessas fossem direcionadas a ele. No fim da tarde, antes mesmo de voltar para casa, os agricultores faziam a dança-de-são-gonçalo como forma de agradecimento. Ao terminar a reverência, retornavam a seu lar, tomavam banho e vinham de novo à casa do contratante para a refeição. "Naquela época, o jantar era sempre feijão com carne-seca e arroz. Quem podia menos oferecia peixe. Depois de uma dose de pinga, o pessoal ia dançar. A certa hora saía um café para tirar o sono, e pela manhã outro, de saideira, acompanhado de biju, cuscuz com amendoim ou paçoca de carne-seca", lembra Armando Teixeira. Nas semanas seguintes seriam outros mutirões, com novas promessas e mais fandango.

Na parede da sala de Teixeira há uma placa do projeto Museu Vivo com a sua foto, indicando que ali mora um mestre de fandango. Teixeira é famoso por suas composições, como uma sobre pescadores que inclui este trecho: "Eles acordam cedinho sobre o clarear do dia/ abraçam sua família e partem pra pescaria/ jogam sua rede n’água com prazer e alegria/ e na proa dos seus barquinhos rezam sua ave-maria/ pedindo a Deus que não falte com o pão de cada dia".

Na ponta do canivete

Num sítio de Cananéia que ainda não tinha luz elétrica e onde só se podia caminhar à noite com farol de lamparina, João Firmino teve suas primeiras lições de rabeca, ainda criança: "Aprendi com um homem chamado Ângelo Alves, que era companheiro de pesca do meu pai. Quando eles saíam para pescar, eu pegava o arco e começava a ‘lixar’ a rabeca", lembra. Ele diz que demorou três anos para aprender, porque é um instrumento difícil, requer bom ouvido: "A gente vai cantando e soltando o dedo até acertar a posição. Não tem ponto, a gente faz no pensamento". Ao completar 18 anos, Firmino passou da agricultura para a atividade pesqueira, ofício em que se aposentou. Ele conta que trabalhava no "mar manso", o rio, onde colocava o cerco (tipo de armadilha): "Cai mais peixe no cerco quando dá tempestade, aí o peixe se alvoroça e entra. Se o tempo está firme, ele não liga para entrar".

Firmino é fabricante de rabecas; ainda tem a primeira que fez, há 35 anos. Ele diz que leva mais de um mês para completar o serviço, "cortando na ponta do canivete". Até hoje guarda a madeira (canela-preta) de uma canoa que pertenceu a seu pai, usada para moldar parte do corpo das rabecas. No arco ele coloca uma linha de pesca 0,25. Em geral, o que caracteriza o fandango caiçara é a produção artesanal dos instrumentos. A madeira mais utilizada é a caixeta (Tabebuia cassinoides), da qual se fabricam a viola, a rabeca, o aro do adufe, os tamancos, enfim, é uma espécie de matéria-prima símbolo da brincadeira.

Amir Oliveira também é artesão: confecciona instrumentos, brinquedos, enfeites. Orgulha-se de ser caiçara, que para ele é "o ato de conhecer o tempo, os peixes, as madeiras, respirar o cheiro do mangue". Oliveira vive e divulga essa cultura. Em seu quintal há muitas variedades de plantas e árvores, como a caixeta que aproveita em seu trabalho. "Ela é da família do ipê, da mata atlântica, e encontra-se na transição entre o mangue e a restinga", explica. Seu corte segue um plano de manejo: "A gente sempre aprende com os mais velhos. Se fizer a poda na lua certa, a minguante, em vez de maltratá-la, você faz um benefício para ela". Três vezes por semana, Oliveira ensaia com o Grupo de Fandango Batido São Gonçalo, formado em sua maioria por jovens da rede estadual de ensino. Todos têm a oportunidade de aprender os passos da dança e de tocar os instrumentos nas oficinas conduzidas pelos músicos mais experientes.

Outro grupo que faz esse intercâmbio entre gerações é o da Associação de Jovens da Juréia (AJJ), com sede na Barra do Ribeira, em Iguape. Muitos de seus integrantes são ex-moradores ou filhos de pessoas que viviam na Juréia e tiveram de sair após a criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins (EEJI), em 1987. "O pessoal que morava lá dentro foi obrigado a mudar para as cidades vizinhas, e o fandango foi acabando", conta Gilson do Prado Carneiro, vice-presidente da associação.

A criação da estação ecológica ocorreu devido a uma campanha ambientalista contra dois projetos que ameaçariam a mata atlântica: a construção de duas usinas nucleares e de uma "cidade ecológica" (condomínio para 70 mil pessoas). O que era para ser um modelo de unidade de conservação em São Paulo acabou prejudicando a vida de 350 famílias caiçaras que ali habitavam. O professor Antonio Carlos Diegues compara o fenômeno da Juréia com o ocorrido anteriormente na ilha do Cardoso: "Na maioria dos casos não ocorreu a expulsão física, mas houve coisas piores, porque a estratégia do governo foi não deixá-los fazer nada: não podiam ter roça, pescar, reconstruir a casa, caçar, e quem saía por três meses para trabalhar na cidade – o que era comum na cultura caiçara – não podia mais voltar. Essa população sofreu muito com as expulsões e limitações, sobretudo no vale do Ribeira".

Das unidades de conservação descritas na Constituição Federal, as de proteção integral, em que se enquadra o modelo da estação ecológica, são as mais severas, pois impedem o fluxo humano, a não ser que haja autorização para fins científicos. Por isso, foi uma grande vitória da Associação de Moradores da Juréia e de outras entidades conseguir transformar duas partes da estação em reservas de desenvolvimento sustentável (RDS), nas quais podem viver populações tradicionais que se baseiam em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais. "Já é um avanço, porque antes eles [a Secretaria do Meio Ambiente] nunca admitiram fazer as RDS e só concordaram sob pressão, apesar da forte oposição da burguesia paulista", comenta Diegues.

A sede da AJJ, além de acolher os ensaios e oficinas do grupo de fandango, abriga uma marcenaria. Ali são produzidos instrumentos musicais e peças de artesanato, uma atividade que acabou servindo como alternativa de renda para aqueles que saíram da Juréia. Com a mesma obstinação com que tentam aprender uma coreografia nova do fandango, eles pretendem continuar defendendo os interesses da comunidade. "Conseguimos mudar algumas linhas dentro da estação, mas ainda existem vários pontos que queremos alterar e estamos lutando para isso", afirma Carneiro.

  

 

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