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Guerra sem fim ao inimigo invisível
Prevenção de doenças valoriza papel dos laboratórios e incentiva pesquisas
NILZA BELLINI
Instalações do Instituto Butantan
Foto: Divulgação
Falta pouco. Assim que ficar pronto o complexo sistema de ventilação da nova fábrica de vacinas do Instituto Butantan, em São Paulo, com alto nível de biossegurança, o país estará pronto para vencer a gripe aviária. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que, se o vírus H5N1 sofrer mutação e adquirir capacidade de transmissão entre humanos, o mundo vai enfrentar talvez a mais mortal pandemia do século 21. Por enquanto, esse vírus, provavelmente mais fatal que o da gripe espanhola, só contagia pessoas que tenham contato com aves doentes.
O Butantan vem se preparando para essa luta há três anos. O órgão é responsável pela produção de 82% dos outros tipos de vacinas aqui aplicadas. A que combate o vírus influenza, causador da gripe comum, é feita desde 1999, quando foi firmado o contrato com a empresa Sanofi Pasteur para transferência da tecnologia de fabricação desse imunobiológico. Hoje, os cientistas do instituto são capazes de formular três tipos diferentes de vacina contra o vírus da gripe comum, sabem envasá-la e mantêm um eficiente controle de qualidade. O método de produção da vacina contra a gripe aviária será o mesmo, embora um novo potenciador, desenvolvido no próprio Butantan, vá ser usado em substituição ao tradicional hidróxido de alumínio, o que permitirá o fracionamento – uma única dose poderá se transformar em até oito –, sem perda da eficácia. Assim será possível fabricar, em menos de 90 dias, os 180 milhões de doses necessários para imunizar toda a população brasileira. Poucos países têm essa competência.
Armas contra os micróbios
A convivência do ser humano com microorganismos como o vírus H5N1 sempre foi difícil. Desde os primórdios, muitas dessas formas de vida, invisíveis a olho nu, são responsáveis por devastação, medo e morte. Pesquisas arqueológicas mostram que, antes do surgimento do Homo sapiens, as bactérias já contaminavam os hominídeos. Epidemias se sucederam ao longo de milhares de anos, e as primeiras medidas a apresentar resultados na luta contra as doenças infecciosas se relacionaram à implantação do saneamento. A mais eficaz das táticas contra esses minúsculos inimigos, porém, foram as vacinas.
"Esse nome vem de vaccinia, o agente infeccioso da varíola bovina que, quando era injetado no organismo humano, o imunizava", conta Hisako Gondo Higashi, coordenadora executiva da Fundação Butantan e diretora da Divisão Bioindustrial do instituto. "São substâncias como proteínas, toxinas, partes de bactérias ou vírus, atenuados ou mortos, que ao ser introduzidas no organismo provocam uma reação do sistema imunológico, desencadeando a produção de anticorpos", explica.
A primeira vacina a ser inventada, em 1796, pelo médico inglês Edward Jenner, foi contra a varíola. O cientista francês Louis Pasteur, que se correspondia com dom Pedro II e influenciou sanitaristas brasileiros, conseguiu fabricar uma para combater a raiva, além de várias outras. Ele também estimulou a construção em São Paulo, em 1892, do Instituto Vacinogênico, que produzia e distribuía o imunobiológico contra a varíola.
Em 1904, Oswaldo Cruz, um dos discípulos de Pasteur, criou um programa de vacinação obrigatória que resultou na chamada Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, então capital brasileira. A obrigatoriedade foi suspensa diante da reação popular. Por essa ou outras razões, os programas de vacinação no Brasil só ganharam força mais de 60 anos depois, em 1966, com a Campanha de Erradicação da Varíola, imposição da OMS a todos os países subdesenvolvidos.
A doença foi declarada erradicada das Américas em 1973. Nesse mesmo ano, uma nova proposta da OMS para a ampliação das campanhas de vacinação contra outras doenças fez nascer o Programa Nacional de Imunizações (PNI), ainda em vigor. Hoje o domínio da tecnologia de fabricação de vários imunobiológicos e o sistema de proteção à saúde pública implantado desde a década de 1970 com o PNI fazem do Brasil um dos países mais eficientes do mundo na luta contra epidemias.
Programa de sucesso
Professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), o epidemiologista Eliseu Alves Waldman destaca que, apesar do ranço autoritário no início de sua implantação, no auge do regime militar, o PNI é muito importante. "Graças a ele, os quase 180 milhões de cidadãos brasileiros estão razoavelmente protegidos contra doenças contagiosas", diz. "É um dos programas mais bem-sucedidos da história da saúde pública."
O PNI está baseado num tripé: elevada cobertura, equipamentos de acesso e segurança tecnológica. Essa cobertura está expressa nos dados oficiais atualizados pela última vez em 2004: são cerca de 22,9 mil postos públicos de vacinação (108 privados) e 36 Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais. Nas campanhas nacionais funcionam 130 mil postos instalados nos 5.560 municípios brasileiros. As regionais são propostas por técnicos de alta competência, que avaliam necessidades e aplicação.
Para viabilizar essas campanhas, milhares de profissionais são permanentemente capacitados, o que possibilita a incorporação segura de novos produtos e a imunização de públicos específicos, como grávidas ou idosos. A complexidade dessa cobertura envolve, também, a manutenção permanente de grandes depósitos com refrigeração adequada para a preservação de vacinas e soros.
Em meados da década de 1970, na maioria dos casos as vacinas para os brasileiros eram importadas ou produzidas por laboratórios privados. No início dos anos 1980, quando a demanda por vacinas cresceu em conseqüência do PNI, não foi mais possível negar que aquelas feitas no Brasil tinham baixa qualidade. Para agravar esse cenário, os laboratórios privados, descontentes com as novas políticas de saúde pública, interromperam a produção de soros e vacinas. O desabastecimento exigiu medidas estratégicas. Surgiu o Programa de Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), um estímulo à produção nacional.
O governo passou a investir, a partir de então, num conjunto de instituições públicas tradicionais e com experiência na produção de algumas vacinas, como o Bio-Manguinhos/Fiocruz, o Instituto Butantan, o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), a Fundação Ataulpho de Paiva (FAP) e o Instituto Vital Brazil. Os investimentos do governo federal, entre 1986 e 1998, em infra-estrutura, capacitação e qualificação dessas instituições não levaram à auto-suficiência, como muitos desejavam, mas garantiram ao país o lugar de maior produtor de vacinas da América Latina. Bio-Manguinhos/Fiocruz e Instituto Butantan respondem juntos, atualmente, por 89% da produção nacional, incluindo tanto o que é simplesmente envasado aqui como o que é fabricado no Brasil em todas as etapas, até os testes clínicos finais.
Tripla sustentação
A infra-estrutura e a eficiência tecnológica brasileiras têm facilitado acordos entre essas instituições e laboratórios de outros países para a fabricação de novos imunobiológicos. Entre os estudos assim viabilizados está o da vacina tetravalente contra a dengue (capaz de proteger contra os quatro tipos do vírus existentes), decorrente de contrato firmado entre o Butantan e o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês) para a transferência de tecnologia.
A doutora Hisako Higashi conta que já chegaram as cepas testadas pelo NIH em macacos Rhesus e num grupo de americanos que nunca tiveram a doença. Os resultados desses experimentos foram positivos. Agora os testes clínicos serão realizados com pessoas residentes em regiões endêmicas ou epidêmicas no Brasil, diz ela. "Os testes dos americanos foram feitos com pessoas de fora das áreas de risco e precisamos reavaliar, em nosso país, a imunogenicidade (capacidade de produzir anticorpos) e eficácia da vacina", ressalta.
O Butantan espera a anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para dar início à realização dos novos testes e não revela quais os valores envolvidos na parceria. "Temos uma tripla sustentação: pesquisa básica, desenvolvimento e produção. Sem essas três fases, não se chega a um produto", diz a doutora Hisako. Ela garante que até 2010, se tudo der certo, a produção do Butantan será de 30 milhões de doses anuais, suficientes para imunizar grande parte da população das áreas de maior incidência da dengue.
O doutor Paulo Lee Ho, chefe do Laboratório de Desenvolvimento de Processos (Centro de Biotecnologia) daquele instituto, revela que outras vacinas estão em fase adiantada de experimentação, todas produzidas com base em novas tecnologias. A vacina contra hepatite B, por exemplo, que era desenvolvida a partir do plasma de doadores com o vírus B inativado diluído em hidróxido de alumínio, atualmente é de DNA recombinante. Em outras palavras, a identificação e a clonagem molecular do genoma do vírus HBsAg são feitas por meio da engenharia genética.
Entre outras novas vacinas pesquisadas pelo Butantan estão a que combate o pneumococo (bactéria responsável por cerca de 80% das doenças pneumocócicas graves, como pneumonias e septicemias) e a que age contra a esquistossomose. São mais de 200 os sorotipos do pneumococo. O impacto da vacina usada atualmente contra essa bactéria é muito baixo. Ela combate apenas os sorotipos prevalentes na Europa e nos Estados Unidos. A nova vacina do Butantan pretende ser um antídoto comum para todos os sorotipos.
O instituto também estuda a possibilidade de uma nova combinação de vacinas. A tríplice (difteria, coqueluche ou pertússis e tétano) é suporte para a associação com outras. "O ato de vacinar é mais caro que o de preparar a vacina", diz a doutora Hisako. "Quanto mais vacinas estiverem englobadas numa só, maior a economia", explica. Os testes clínicos atuais são os da pentavalente, com todas as frações produzidas no Brasil, e que mistura a vacina tríplice, a da hepatite B e, no momento da aplicação, atua como diluente para a que combate a meningite.
Ellen Jessouroun é gerente do Programa de Desenvolvimento de Vacinas Bacterianas de Bio-Manguinhos, órgão da Fiocruz que realiza pesquisas com vacinas e outros fármacos. Ela comanda atualmente, entre outros, o trabalho com duas importantes e novas vacinas contra as bactérias da meningite meningocócica. O meningococo pode ser classificado em 13 sorogrupos, dos quais os A, B e C são responsáveis pela maioria dos casos. A vacina contra o Haemophilus influenzae tipo B – um dos bacilos transmitidos por secreções do nariz e da garganta de doentes ou portadores assintomáticos, causador de infecção aguda e grave que atinge principalmente crianças de 3 meses a 3 anos –, já é produzida em Cuba e foi importada para combater epidemias no Brasil.
A metodologia agora utilizada no Bio-Manguinhos para sua produção é diferente da cubana. Já foi testada sem reações inesperadas em adultos, na chamada fase 1, que avalia efeitos adversos. Agora, os cientistas da Fiocruz preparam-se para realizar os testes com crianças (fase 2), que servirão para verificar se ela é capaz de produzir anticorpos (imunogenicidade). Sua eficácia, ou seja, a imunização de grupos grandes de pessoas (fase 3) será analisada em seguida. Prevê-se que ficará pronta em 2011. "Estabelecemos no Bio-Manguinhos toda a metodologia para sua produção, o que inclui a cultura para obter um componente da estrutura da bactéria, a produção do antígeno e, finalmente, as formas de controle", ressalta Ellen.
O Bio-Manguinhos está testando, também, um imunobiológico contra o meningococo tipo C, que atinge adolescentes e adultos jovens. Existem várias vacinas do subgrupo C fabricadas por grandes indústrias e que estão disponíveis no mercado. A da Fiocruz segue a metodologia "conjugada", ou seja, é obtida a partir da reação química entre duas matérias-primas: o polissacarídeo do Haemophilus influenzae, produzido pela Fiocruz, e o princípio ativo da vacina contra o tétano, do Butantan, que atua como potencializador. "No passado eram fabricadas vacinas com polissacarídeos como único componente, mas elas não são eficientes em crianças. O que se busca, na conjugação com a proteína, é uma resposta imunológica mais duradoura", explica Ellen. Assim, a aplicação será indicada para recém-nascidos. A produção em larga escala da vacina contra meningite do subgrupo C também está prevista para 2011.
Métodos de controle
O epidemiologista Eliseu Waldman explica que o Ministério da Saúde, preocupado com a segurança das vacinas fabricadas no Brasil e com novos conceitos de imunologia, criou uma série de levantamentos – a que dá o nome de "inquéritos" – no âmbito do PNI que permitem o acompanhamento contínuo da cobertura e segurança vacinal e da incidência e gravidade das doenças que são objeto de variados programas. Waldman comenta que, como todos os outros produtos farmacêuticos, as vacinas não são inteiramente desprovidas de risco. "Um exemplo foi o que pudemos observar durante o recente surto de febre amarela", diz ele. "A estrita indicação da vacina, aplicada em pessoas que não poderiam tomá-la, levou a óbitos", ressalta.
Por isso, o PNI é tão rigoroso no monitoramento da segurança das vacinas. Seu sistema evita o surgimento de doenças aparentemente já controladas. O epidemiologista explica que a vacinação em massa altera o modo de circulação de vírus e bactérias no meio ambiente. Com os microorganismos em menor quantidade, não ocorre a vacinação natural. Um exemplo é a atual epidemia de caxumba, em São Paulo, doença de baixa letalidade. Os primeiros estudos mostram que 65% dos indivíduos que a adquiriram já tinham sido vacinados, mas não foram revacinados de forma natural, pois nunca mais tiveram contato com o vírus que causa a doença.
Os resultados apresentados no último inquérito nacional do PNI, realizado em 2002, podem estar indicando uma lenta mudança no cenário da vacinação no Brasil. Ao contrário do que acontecia antigamente, quando os pobres não vacinavam seus filhos, as menores coberturas têm sido verificadas no estrato mais rico da população. "Parece que o sucesso do PNI volta-se contra ele mesmo", nota Waldman. Ele diz que, na medida em que os programas atingem seus objetivos de controlar doenças, diminui entre a população a percepção de risco em relação a elas e cresce o temor de contra-indicações. "A imunização é um problema complicado. As vacinas são uma intervenção na ecologia de microorganismos capaz de tornar essa relação favorável ao homem. Essas tecnologias médicas são no entanto armas táticas, que servem para o controle de doenças, mas não estratégicas. A erradicação total de vírus e bactérias por meio de campanhas de vacinação é uma utopia."
Vacinas contra o câncer
Um imunobiológico experimental contra três tipos de câncer (de rim, de próstata e melanoma) está sendo desenvolvido, desde o início desta década, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisa é resultado de uma parceria público-privada da instituição de ensino com o Centro de Pesquisa e Tratamento de Câncer (Biocancer), uma das únicas empresas brasileiras completamente capacitadas para o desenvolvimento e a validação de protocolos clínicos dedicados ao diagnóstico, prevenção e tratamento do câncer. Os estudos são coordenados por Alberto Wainstein, cirurgião oncológico, especialista em imunoterapia de tumores.
O cirurgião do aparelho digestivo Bruno Righi, um dos médicos que integra o corpo clínico do Biocancer, explica que as vacinas contra o câncer são terapêuticas. "Elas não evitam a doença, mas podem vir a ser uma eficiente forma de tratamento. Trata-se de uma terapia que estimula o sistema imunológico a lutar contra as células cancerígenas."
Um importante diferencial da proposta de tratamento da UFMG em relação a outras vacinas terapêuticas, testadas em centros de pesquisa de todo o mundo, é o fato de ser elaborada com células do tumor do paciente. Os médicos coletam células tumorais durante a cirurgia a que os pacientes são submetidos e as injetam, depois de manipulação laboratorial, de volta no corpo do doente. A idéia é que o sistema imunológico reconheça e destrua o tumor. Depois de receber a vacina, o paciente tem seu sangue examinado periodicamente para que, com base nesses resultados, os médicos possam otimizar o tratamento e combater os efeitos colaterais.
Esse método vem sendo experimentado, também, nos Estados Unidos, onde Alberto Wainstein estudou. Os primeiros resultados obtidos naquele país ainda são inconclusivos: existem pacientes que responderam bem ao tratamento, alguns medianamente e outros não. "É uma vacina individual, cada corpo reage de uma forma", nota Righi. Os ensaios clínicos em seres humanos feitos na universidade mineira vão se prolongar por alguns anos. "Só depois de um longo tempo de acompanhamento será possível avaliar os resultados", observa Righi, acrescentando que a vacina do Biocancer é sempre o último recurso utilizado em pacientes voluntários que já passaram por cirurgia e sessões de quimioterapia e radioterapia.