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A quem pertencem as praças públicas?
Abandono, reformas infelizes e veículos dominam espaços destinados à população
MARCOS DE SOUSA
Colaborou: Regina Rocha
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Em maio passado, o arquiteto paisagista Sun Alex lançou o livro Projeto da Praça – Convívio e Exclusão no Espaço Público, pela Editora Senac. Resultado de uma tese de doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o trabalho analisa algumas praças paulistanas e procura identificar motivos para o crescente abandono desse lugar feito para o convívio. Ele mostra que algumas praças – bem projetadas – são tão agradáveis que sobrevivem mesmo aos maus-tratos de moradores de rua e ao descaso das autoridades. Para a falência das outras, que se tornaram espaços de exclusão, Alex encontra explicações nas pranchetas dos arquitetos dos anos 1970, quando a cultura do planejamento urbano – movida pelo automóvel – chegava ao Brasil.
Os marcos dessa mudança, segundo Alex, são visíveis em duas praças paulistanas: a Roosevelt, de 1970, e a "nova Sé", concluída no início dos anos 1980, ambas resultantes da influência de modelos americanos. Antes o traçado das praças paulistanas inspirava-se na tradição européia, especialmente a francesa, que produzia praças mais abertas, livres de obstáculos e, principalmente, bem ajustadas à malha urbana da cidade. "Uma praça funciona bem quando é a continuidade das calçadas das ruas próximas, sem barreiras, degraus ou outros artifícios que a separem da rua. Quando estão bem encaixadas no traçado urbano, elas se tornam referências para a população, pontos de encontro", diz Alex.
Uma praça como a Roosevelt, ao contrário, por ter um formato de difícil decifração e uma implantação "desastrada", não seria muito convidativa ao pedestre. "A Roosevelt é cheia de barreiras visuais, o acesso é complicado, não oferece atrativos para um momento de descanso. Está apartada da cidade", explica Alex.
Extensão da igreja
"Logradouro público por excelência, a praça deve sua existência sobretudo aos adros de nossas igrejas [...] A praça como tal, para reunião de gente e para exercício de um sem-número de atividades, surgiu entre nós de maneira marcante e típica, diante de capelas ou igrejas [...] Destacava, aqui e ali, na paisagem urbana, esses estabelecimentos de prestígio social. Realçava os edifícios, acolhia seus freqüentadores." Eduardo Barra, presidente da Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abap), cita esse trecho do livro Cidade Brasileira, do professor Murillo Marx, para destacar a importância da praça pública na vida urbana brasileira. "O brasileiro gosta tanto de praça que, quando não encontra uma, improvisa com o que tem nas mãos: senta em caixotes e se põe a conversar", brinca o arquiteto, em seu escritório, perto do Largo do Machado, no Rio de Janeiro.
Já os americanos não gostam de praças públicas, acredita Sun Alex. Ex-professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, o arquiteto avalia que a maioria das praças nos Estados Unidos tem um caráter mais reservado, quase privado: "Os americanos não apreciam esse convívio aberto da praça, onde você encontra o patrão, o operário, crianças, jovens, enfim, onde se pode ter o inesperado. Eles preferem os ambientes mais previsíveis, como a igreja, a escola ou o shopping". Em sua visão, isso explica os projetos recortados, cheios de barreiras visuais e nichos, que aqui chegaram inspirados nessa tradição.
Se, na origem, como afirma o texto de Murillo Marx, a praça brasileira era um espaço para ver a igreja, logo outros edifícios pagãos vieram juntar-se a ela: a casa de câmara e cadeia, o fórum, o palácio do governo, o teatro e depois a instituição bancária, quase como uma metáfora da estrutura do poder. Quando a praça perde esse simbolismo, e também qualquer relação com a vida formal da cidade, passa a ser um terreno ocupável. Isso está muito ligado à presença crescente do automóvel. "Um exemplo é a Praça XV, uma das mais antigas do Rio de Janeiro, que está diante da Igreja da Sé, e onde o próprio palácio do governo ficava. Mas tudo foi ocupado por grandes avenidas, com muitas pistas, mais um elevado, que praticamente acabaram com as referências do lugar", explica Barra.
Por outro lado, a tradição da praça para contemplação e descanso, que veio da Europa, foi trocada, nos anos 1970, pela idéia da praça de recreação e esporte, como uma reação ao sedentarismo. A partir desse momento, elas ganharam equipamentos de ginástica, quadras e pistas para corrida. Além disso, criaram-se pequenas arenas e palcos para espetáculos ao ar livre. Então, o que era um lugar para "não fazer nada" tornou-se um centro de atividades. Essas inovações nascem exatamente quando as cidades brasileiras implantam suas companhias de planejamento urbano, com arquitetos e urbanistas influenciados pela escola do urbanismo americano. Segundo esse pensamento, cada detalhe da praça deveria ser previsto, como se os arquitetos pudessem "programar" a vida dos futuros usuários. "Nesse período, há uma certa overdose de projeto, que vem da escola californiana de paisagismo", afirma Barra.
"Quadrado cercado de prédios"
Nos novos loteamentos, os projetos de praças seguem um raciocínio que pode ser racional na prancheta, mas não é necessariamente bom para a vida urbana, de acordo com Barra. Esses projetos obedecem ao esquema tradicional do tabuleiro de xadrez; podem tomar como referência um rio, respeitar as matas nativas, mas o resultado é sempre aquela malha. "E a praça é um daqueles quadradinhos que o projetista resolve não edificar", diz ele. Essa forma de conceber a praça faz com que ela se torne uma pequena ilha, confinada por edifícios, ou um espaço para pedestres cercado de ruas com alguma circulação de gente e de veículos. "Se o trânsito é muito intenso, o ruído começa a incomodar, cresce o perigo de acidentes e uma criança já não pode ir à praça sozinha", acrescenta.
Para piorar, à medida que a cidade se desenvolve e os terrenos livres rareiam, surgem idéias de colocar o estacionamento de carros na praça ou margeando-a. Também é aí que se instala o ponto de táxi, o terminal de ônibus, enfim, uma muralha de veículos. "Por pressão, o automóvel acaba ocupando qualquer espaço, embora ninguém vá à praça de automóvel ou de ônibus", lembra Barra. Para ir à praça, aliás, é preciso que ela esteja próxima. "Se estiver longe, inacessível, começa a ser ocupada por pessoas com interesses não-públicos: moradores de rua, comércio ilegal... Então, em qualquer cidade, a cada mil metros deve haver uma praça. É assim em grande parte da Argentina, e lá as praças estão sempre tomadas por gente de todas as idades e classes sociais", ele enfatiza.
Na Europa, a incidência do sol é vista como um fator benigno, que minimiza o frio do inverno. Já num país de clima predominantemente tropical, como o Brasil, é a vegetação que estrutura qualquer espaço paisagístico. Aqui, a arborização é o principal elemento, porque traz sombra, aconchego, proteção. "A praça pode ser reformada, os canteiros podem ser transformados, mas a arborização deve permanecer", afirma Barra. "As grandes árvores plantadas em praças fazem uma cobertura, mas mantêm a transparência necessária a qualquer espaço urbano", diz ele, referindo-se a espécies como o guapuruvu ou o jatobá, a maior árvore da mata atlântica. O presidente da Abap acrescenta, porém, que as praças podem abrigar também árvores frutíferas ou palmeiras, que são fundamentais para a sobrevivência da fauna urbana, como pássaros e morcegos que, por sua vez, combatem as pragas que atacam a arborização das ruas.
Metodologia
Essa utopia verde poderia virar realidade. Em 1968, a arquiteta Rosa Grena Kliass, em colaboração com sua colega Miranda Martinelli Magnoli, elaborou o Plano de Áreas Verdes de Recreação do Município de São Paulo, que criava uma classificação para as áreas verdes da cidade. "Para cada área disponível, verificávamos o entorno e quais as demandas da região. Elaboramos uma metodologia baseada em critérios de distância e tamanho das áreas, e relacionada à demanda e oferta." Esse estudo resultou em 44 projetos de praças, alguns deles realizados, como é o caso da Praça Benedito Calixto, da Praça do Pôr-do-Sol, da Praça Horácio Sabino, entre outras. Eram espaços de recreação, a maioria classificada como parques de vizinhança, ou de bairro, com quadras esportivas e todos os equipamentos necessários ao lazer.
Parques ou praças? Rosa oferece uma aulinha: "As ruas têm função de circulação – de pedestres, de veículos – e de acesso. A praça é um alargamento da rua, mas continua tendo a função de acesso e circulação. A diferença é que ela assume uma função referencial: a praça do mercado, a praça da igreja, a praça do tribunal. E pode assumir proporções com características complementares. Não é um parque, porque este é um espaço aberto, urbano e auto-referente. Quando estou na praça – pense na Praça da Sé, na Praça da República [ambas em São Paulo] –, vejo as ruas, as edificações, a igreja... Quando digo que o parque é auto-referente, quero dizer que é um lugar que, ao ser penetrado, nos faz esquecer a cidade. Pode-se até vê-la ao longe, mas lá fora. Um exemplo conhecido é o Ibirapuera".
Manutenção
Em 2007, um estudo realizado em São Paulo pelo Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) avaliou 183 praças, sorteadas nas várias regiões da capital – uma amostragem de 4% das 4.628 existentes na cidade. "São Paulo tem muitas praças, algumas bonitas e bem cuidadas, mas várias delas parecem terrenos baldios, especialmente nos bairros mais periféricos", conta o arquiteto paisagista Cesar Bergstron, diretor do Sinaenco, que coordenou o trabalho.
Em sua opinião, uma praça esquecida pelas autoridades logo também será abandonada pelos cidadãos, por melhor que tenha sido o projeto original. "Claro que há situações extremas, como a da Praça Roosevelt, que nasceu de um projeto infeliz, mas na maior parte dos casos que analisamos não foi sequer possível enxergar a proposta original, porque os jardins foram desfeitos, não existia mais paisagismo, os brinquedos infantis estavam quebrados, além de haver muito lixo espalhado e bancos destruídos", lembra o arquiteto.
Bergstron explica que a pesquisa foi feita exatamente para estimular o investimento na manutenção das obras públicas, mas os resultados não foram bem recebidos pela prefeitura: "Notamos uma atitude defensiva, quase arrogante, mas logo depois as intervenções começaram a ser feitas exatamente naquelas praças que indicamos como as piores". Um exemplo é a Praça Marechal Deodoro, na região central, que aparecia no ranking negativo do Sinaenco e agora passa por uma completa reestruturação de piso, jardins e iluminação. E a Roosevelt, que tem um projeto de remodelação, com execução prevista já em 2008.
O relatório apresentado pelo Sinaenco mostrava ainda que as praças mais bonitas eram aquelas mantidas por particulares – empresas e moradores. É o caso da Praça Ramos de Azevedo, localizada ao lado do Teatro Municipal, cuja conservação foi assumida em 1998 pelo grupo Votorantim, que ali mantém sua sede. A iniciativa foi do próprio presidente da empresa, Antônio Ermírio de Moraes, que levou vários anos até encontrar o zelador ideal, o jardineiro Shinzo Okuda, que pacientemente trabalhou para recuperar cada espaço do belo jardim. Outros exemplos são as praças Dom José Gaspar e Princesa Isabel, na região central, além da Praça Cinthia, na Vila Guilherme, zona norte, que foi reformada pela prefeitura, mas é conservada pelos moradores locais. Atualmente, 820 áreas verdes, entre praças e canteiros da cidade, são mantidas por termos de cooperação, informa a secretaria.
Problema de raiz
No ano passado, a prefeitura também investiu na renovação da Sé, o centro geográfico de São Paulo. Segundo a Secretaria das Subprefeituras, "a reforma deu mais visibilidade e acessibilidade ao espaço, permitindo a circulação de pessoas que têm mobilidade reduzida", mas não conseguiu evitar atos de vandalismo, apesar do monitoramento realizado 24 horas por dia com câmeras da Guarda Civil Metropolitana. Para resolver problemas como o do comércio ilegal, a Subprefeitura da Sé está reprimindo os camelôs e regulamentando a atividade dos engraxates que atuam no local, além de dar atenção especial aos moradores de rua que ocupam o lugar, com encaminhamento a albergues e a serviços de assistência social. A secretaria promete "punir qualquer abuso e trabalhar para que a praça volte a ser um espaço coletivo".
A maldição da Sé, porém, parece vir de sua raiz, do projeto que criou a "nova praça", em 1979, e uniu a velha Sé à sua vizinha Clóvis Beviláqua. O projeto, concordam todos os arquitetos ouvidos, liquidou duas praças de uma vez só. A arquiteta Rosa Kliass explica: "Esse projeto não tem autor: ele nasceu na Emurb [Empresa Municipal de Urbanização], mas ninguém assume a paternidade. É um grande erro paisagístico, que acabou com a praça. Num olhar do alto, pode-se observar que o espaço não tem esse caráter. Poderia ser um jardim de um prédio de apartamentos ou qualquer outra coisa. Essa praça foi sempre um local de encontro da cidade, para reivindicações, para festejos. E o projeto eliminou isso. Ela não se volta nem para o fórum nem para a catedral. Foi fruto da ditadura militar, com a intenção de acabar com esse espaço de manifestações públicas".
Mesmo assim, no lugar da antiga Sé, entre as fileiras de palmeiras imperiais, bem em frente à catedral, a festa da praça resiste ao tempo e ao discurso dos planejadores. Cantadores nordestinos, pregadores religiosos, turistas com máquinas fotográficas e pedestres apressados parecem prometer um futuro talvez feliz à praça paulistana. Será?
Recuperação modelar
Exemplo de restauro em espaço público, a Praça Coronel Fernando Prestes, no bairro paulistano da Luz, reúne ao seu redor uma série de edifícios referenciais. Estão ali antigas instalações da Escola Politécnica, o quartel do Comando da Polícia Militar, o Instituto Dom Bosco e a estação Tiradentes do metrô. No período 2006/07, a praça passou por uma série de obras para ser reconduzida à condição de local para pedestres, eliminando o estacionamento de veículos do local. A remoção da camada de asfalto revelou o antigo pavimento de blocos de granito, e foram reimplantadas as calçadas de mosaico português, conforme o projeto original, de 1938. As grandes árvores que cobriam a praça puderam ser mantidas, fazendo-se apenas ajustes no paisagismo de menor porte, de forma a preservar o ambiente. O projeto, do arquiteto José Rollemberg de Mello Filho, do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da prefeitura de São Paulo, foi feito com financiamento do Programa Monumenta, cabendo à Emurb o gerenciamento das obras.