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Amianto, a fibra que destrói o pulmão

Abolido em muitos países, o asbesto resiste no Brasil, um dos maiores produtores

MARCELO SANTOS


Mina Canabrava, em Minaçu (GO) 
Foto: Fernanda Giannasi

O advogado Aldo Vicentim trabalhou, 44 anos atrás, na fábrica do Grupo Eternit, em Osasco. Ele tinha orgulho de ter pertencido à "família" – forma carinhosa como os funcionários referiam-se à empresa, onde eram produzidas telhas e caixas-d’água de cimento amianto.

Vicentim morreu em 3 de julho último, nas dependências do Instituto do Coração, em São Paulo, depois de passar por uma cirurgia para retirada do pulmão esquerdo, numa tentativa de combater um mesotelioma – tipo de câncer que, quando diagnosticado, costuma matar em cerca de dez meses –, resultado da exposição às fibras do amianto durante o período de quatro anos em que trabalhou no almoxarifado da fábrica em Osasco.

Nos últimos tempos, ele estava alinhado com cerca de 450 ex-trabalhadores das fábricas da Eternit, em Osasco, da Brasilit, em São Caetano do Sul, e da Avibras, em São José dos Campos, a maioria com algum tipo de enfermidade, na Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea-SP), principal entidade de combate ao uso desse mineral no país. Classificada como cancerígena pela Organização Mundial da Saúde (OMS), essa substância teve seu uso abolido em 49 países, incluindo todos os da União Européia, a Argentina, o Chile e o Uruguai. Mas ainda sobrevive no Brasil, que está entre os cinco maiores produtores mundiais, ladeado por Rússia, China, Cazaquistão e Canadá.

Conhecido também como asbesto (nome de origem grega que significa imortal e indestrutível) e com qualidades como resistência química, térmica e elétrica, o amianto é um minério de baixo custo de extração, utilizado principalmente na construção civil, que consome 91% da produção destinada ao mercado interno. Mas esse material não apresenta só qualidades: a exposição às suas fibras causa uma série de enfermidades, como câncer de pulmão e de laringe, assim como doenças da pleura – membrana que envolve os pulmões – e a asbestose, um acúmulo de fibras no sistema respiratório que o faz empedrar.

Aldo Vicentim tomou conhecimento dos efeitos devastadores da fibra em 1995, ocasião em que se uniu a outros ex-trabalhadores do amianto, e logo se tornou vice-presidente da então recém-criada Abrea. No último mês de maio, porém, descobriu ser portador de mesotelioma.

Pouco antes de morrer, ele pôde comemorar uma das mais importantes decisões jurídicas sobre o uso do asbesto no país. No início de junho passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu a constitucionalidade da lei estadual nº 12.684/07, que determina a proibição imediata do uso do amianto em todo o estado de São Paulo.

A decisão só saiu após um embate jurídico no STF. No fim do ano passado, uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) suspendeu a lei paulista, que entraria em vigor no início deste ano. No entendimento da CNTI, havia um desacordo com a lei federal nº 9.055/95, que permite os negócios com o amianto, desde que observada uma série de controles, entre eles o de que somente o tipo crisotila (variedade menos nociva do mineral) pode ser utilizado, resguardada a necessidade de monitoramento da quantidade de fibras em suspensão no ar, em todas as etapas de produção.

A derrota no STF do pedido de inconstitucionalidade da lei paulista municiou os que estavam do outro lado da trincheira e que defendem o banimento do amianto no país. Foi a vez de a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) contra-atacarem com uma Adin, alegando que a lei federal de 1995, que autoriza o uso do amianto, é inconstitucional. "Nesse momento, o STF considerou que mesmo com um conflito entre norma federal e estadual, a estadual realiza a Constituição na medida em que resguarda a saúde dos trabalhadores. A norma federal, essa, sim, é inconstitucional e não pode permanecer ou suplantar uma norma estadual, que protege mais o cidadão", opinou o advogado Mauro de Azevedo Menezes, da ANPT. Segundo ele, que também é representante da Abrea, a conseqüência clara e inevitável é que o STF proclame a inconstitucionalidade do uso do amianto no Brasil. "É uma decisão histórica e irreversível", comemorou.

Polêmica

Longe dos tribunais de Justiça, o que está em jogo é um mercado bilionário. O Brasil, que exporta mais de 60% de sua produção – os principais compradores são Índia, Tailândia, Indonésia, México, Colômbia e Emirados Árabes –, possui na cidade goiana de Minaçu a terceira maior mina do planeta – a Canabrava –, explorada pela mineradora Sama, do grupo Eternit. Com capacidade de extração para mais meio século, ali são geradas 280 mil toneladas de fibras de amianto por ano, que movimentam um mercado de R$ 2 bilhões. Um osso duro de largar.

"É a melhor alternativa para as famílias carentes. Ou elas usam amianto ou lona preta para cobrir suas residências, uma vez que as telhas de fibras sintéticas são cerca de 40% mais caras", diz o sindicalista Adilson Santana, secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração de Minerais Não Metálicos, da cidade de Minaçu.

Ele explica que cerca de 170 mil trabalhadores em todo o país têm seu meio de sobrevivência ligado à cadeia produtiva do asbesto. "Somente aqui na cidade, 3 mil pessoas trabalham para a mina", calcula Adilson, que também é vice-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Amianto (CNTA), entidade formada por sindicalistas, e critica a ação da ANPT. "É um absurdo entrar com essa Adin sem consultar os trabalhadores, uma vez que a lei federal ajudou a melhorar o ambiente de trabalho."

O sindicalista diz que não se pode comparar a atual situação da indústria do amianto com seu espectro passado, já que, até a década de 1980, não havia leis reguladoras e os trabalhadores conviviam com um alto índice de exposição às fibras do amianto, que enuviavam todo o ambiente das fábricas. "Hoje o nível permitido pela legislação é de duas fibras em suspensão por centímetro cúbico, mas a indústria trabalha com um número bem inferior." Ele reclama também da comparação com o cenário internacional, em que milhares de pessoas, principalmente na Europa, morrem todos os anos de males causados pela exposição ao asbesto. "O amianto não é um problema de saúde pública e sim de saúde ocupacional, e já existem formas de lidar com o mineral sem risco para o trabalhador."

A Abrea discorda e diz que não há maneira segura de lidar com o minério. "É um fato deplorável, todavia verdadeiro: milhares de brasileiros estão com a saúde arruinada devido ao contato com o asbesto. Não há ‘uso controlado do amianto’ no Brasil; a crisotila brasileira não é pura e muito menos inofensiva", adverte seu presidente, Eliezer João de Souza, aposentado por invalidez desde 1997, por causa da existência de "caroços de amianto" em seu pulmão.

Em busca de apoio ao banimento do asbesto, a Abrea tem circulado pelos principais parques da cidade de São Paulo, distribuindo balões e cartilhas com explicações sobre os males causados pelo material. Na opinião de Eliezer, as principais vítimas são os trabalhadores expostos à fibra, dos quais a metade apresenta doenças provocadas por ela. "O amianto é um problema de saúde pública em escala colossal. Em nível mundial, essa é considerada a maior catástrofe sanitária do século 20", diz, em tom de protesto.

A socióloga francesa Annie Thébaud-Mony, diretora de pesquisas do Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (Inserm) e um dos principais nomes na luta global pelo banimento do amianto, defende a criação de um tribunal penal internacional do trabalho para punir empresas transnacionais que, alheias às pesquisas, atuam com o amianto além das fronteiras de seus países. "Embora conhecidos há muito tempo, os riscos não são controlados", diz. Ela explica ainda que, desde o início do século passado, o amianto já vem sendo identificado pela literatura médica como causador de diversos males, entre eles o câncer.

A pesquisadora, também professora da Universidade de Paris, ataca o que chama de "estratégias de duplo padrão social e sanitário", em que empresas multinacionais, para fugir da fiscalização mais rígida dos países ricos, desenvolvem seus empreendimentos em nações onde não há legislações restritivas. "Combatemos ações como a exportação do lixo na França, onde navios contaminados com amianto são mandados para outros países, como a Índia, onde não há leis específicas." Ela estima que, em seu país, cerca de 100 mil pessoas morrerão até 2025 em conseqüência de doenças causadas pela fibra.

Faltam dados confiáveis

No Brasil, números referentes a mortes e doenças provocadas pelo amianto – assim como outros males ocupacionais – não existem ou há subnotificação. Com isso, enquanto algumas entidades falam em milhares de vítimas e defendem o banimento desse mineral, do outro lado os que defendem sua permanência se debruçam sobre dados oficiais para alegar que, ao contrário do que acontece no restante do mundo, aqui são raros os casos de males causados por ele. "Falam em milhares de doentes. Gostaríamos de receber a lista com os nomes, para poder ajudá-los. Mas nunca apresentaram relação nenhuma", afirma Emílio Alves Ferreira Júnior, presidente da CNTA. Segundo ele, o uso do asbesto é seguro e não há casos registrados de doenças profissionais provocadas por esse material desde a década de 1980. "Todo esse debate é uma questão mercadológica. Não podemos adotar os parâmetros europeus. Os países que proibiram o amianto não possuíam mais minas para exploração", diz, completando: "Se formos banir tudo o que pode ser um risco para a vida das pessoas, voltaremos à idade da pedra".

Fernanda Giannasi, auditora fiscal do Ministério do Trabalho e fundadora da Abrea, é a principal articuladora do movimento contra o asbesto no país. Gerente do Projeto Amianto, na Delegacia Regional do Trabalho em São Paulo, ela passa boa parte de seu tempo mobilizando ações contra o uso da fibra mineral. "Não temos o número exato de vítimas devido a uma série de problemas, como a falta de notificação e de emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), além do despreparo dos médicos para identificar as doenças causadas pelo amianto."

Ela cita, no entanto, alguns exemplos. "Temos cerca de 2 mil casos de mesoteliomas no país (de acordo com a FioCruz, são 2.414 entre 1980 e 2003), que são indicadores importantes. E temos também 3,5 mil casos de acordos extrajudiciais firmados com ex-funcionários da Eternit e da Brasilit."

Giannasi explica que o diagnóstico das doenças provocadas pelo asbesto é difícil de ser aferido devido ao período de latência da substância no organismo. Em alguns casos, os sintomas só aparecerão 40 anos após a exposição à fibra. "Podemos ver", diz, apontando um gráfico, "que há uma curva de produção igual à de adoecimentos. Só que elas estão deslocadas no tempo, num período médio de 30 anos. O Brasil intensificou o uso do amianto na década de 1970, então as doenças deverão alcançar seu pico entre 2010 e 2015."

A médica ocupacional Mirian Pedrollo Silvestre, do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Campinas, também revela alguns números referentes a trabalhadores de uma empresa de fibrocimento da região. Após denúncia ao Ministério Público, foi descoberto que 613, dos 1,3 mil funcionários que fizeram acordos extrajudiciais com a empresa, tinham doenças ocupacionais decorrentes da exposição ao asbesto. "Eles ‘monetarizavam’ esses achados. Pagavam indenizações de acordo com o que era encontrado. Quem tinha uma placa pleural sem disfunção respiratória recebia um valor pequeno. Quem tinha mesotelioma recebia um valor maior."

Fibras alternativas

Se varrer a poeira do asbesto do território nacional parece ser um caminho inevitável, resta saber como o Brasil irá lidar com a mudança. Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), que conta com financiamento de duas empresas de cimento amianto – a Infibra e a Imbralit –, estudou o uso de diferentes fibras e resíduos agroindustriais (fibras de malva, banana, coco, sisal e eucalipto), além de resíduos siderúrgicos (escória de alto-forno) na fabricação de fibrocimento vegetal, mas ainda não alcançou um bom resultado. "Não conseguimos viabilizar fibrocimento só com fibras vegetais, que não apresentam durabilidade. Hoje combinamos fibras plásticas de reforço com as de celulose para ajudar o processo industrial", explica o professor Vanderley Moacyr John, do Departamento de Engenharia de Construção Civil da Escola Politécnica da USP.

O pesquisador critica a proibição imediata do uso do amianto em São Paulo e pede tempo para o mercado se adequar. "Um processo de elaboração de legislação minimamente cuidadoso e democrático viabilizaria a substituição do amianto em um espaço de tempo razoável – digamos três anos – sem gerar desemprego, pressionar custos ou assustar usuários do fibrocimento e seus vizinhos."

O presidente da Associação Brasileira das Indústrias e Distribuidores de Produtos de Fibrocimento (Abifibro), João Carlos Duarte Paes, é um dos maiores entusiastas da substituição do amianto por outras fibras. "A Saint-Gobain/Brasilit já usa, exclusivamente, fibras alternativas como as de polipropileno. Quem consultar os sites de empresas como a Infibra, Permatex ou Eternit verá que elas também oferecem produtos sem amianto", diz, argumentando que a mudança não geraria desemprego no setor. "Aposto minhas fichas que a tendência é o mercado substituir, paulatinamente, o amianto. Com produtos sem riscos à saúde, é possível que haja maior geração de empregos no setor."

Seu discurso, é bom frisar, não é o mesmo de 15 anos atrás, quando ele, na função de diretor do grupo Saint-Gobain/Brasilit, era um árduo defensor do amianto no país. Na época, a Brasilit (francesa) e a Eternit (sueca) – hoje rivais – dividiam o controle da mineradora Sama, na exploração do amianto crisotila brasileiro. A mudança de posição ocorreu após a multinacional francesa decidir substituir, em 1999, o uso da fibra mineral por outros materiais, principalmente o polipropileno. Com isso, a extração da mina de Canabrava, feita pela Sama, ficou a cargo apenas da Eternit, que defende até hoje a manutenção do amianto no país.

Antes de Canabrava, a Sama deixou para trás um empoeirado caminho de fibras de asbesto, como na mina desativada de São Félix do Amianto, no município de Poções (BA). "É o maior passivo ambiental da Bahia. São mais de 300 hectares cobertos de pó de amianto, que foram descartados pela Sama. Nossa luta é para que ela volte e recupere aquela área", diz Esmeraldo Santos Teixeira, dirigente da Associação Baiana dos Expostos ao Amianto (Abea), do município de Poções e do vizinho Bom Jesus da Serra.

A mina baiana foi explorada de 1939 a 68, quando a mineradora seguiu para Goiás, após identificar a jazida de Minaçu, deixando para trás uma espécie de vila fantasma que, em tempos áureos, era a locomotiva da região. Lá ficaram também uma grande cratera, de quase 1 quilômetro de diâmetro, e depósitos com retalhos de pedras, que hoje são diversão para as crianças.

Esmeraldo, quando criança, morou na vila operária de Poções com seu pai, trabalhador da mina. Com 8 anos, junto com os irmãos, ele já garimpava a fibra, que era colocada num saco para ser trocada por uma espécie de vale na portaria da companhia. "Depois esse vale era trocado por dinheiro. Todas as crianças faziam isso, exceto as que tinham melhores condições."

Hoje ele mora a 24 quilômetros daquele local e estima que, no entorno da mina desativada, 30 mil pessoas estejam expostas às fibras de asbesto. Em um levantamento com ex-funcionários de Poções, ele identificou 70 casos de pessoas com placas nos pulmões e com asbestose, mas sabe que o número pode ser bem maior. "Meu pai, por exemplo, que trabalhou 22 anos na mina e morreu em 1987, aos 57 anos, tinha sintomas da asbestose. Mas em seu atestado de óbito consta apenas ‘problemas cardiopulmonares’."

Assim como Esmeraldo, o presidente da Abea na cidade de Simões Filho (BA), Belmiro Silva dos Santos, ex-funcionário da fábrica da Eternit naquela localidade, luta para reunir o máximo de pessoas que ficaram doentes em conseqüência da exposição ao minério. "Nossa associação, fundada em 2002, contava com 480 companheiros, dentre os quais 30 morreram nos últimos anos. Em alguns casos, foram diagnosticadas doenças relacionadas ao amianto. Em outros, não houve tempo", lamenta.

A seu ver, além de substituir o amianto por outras substâncias, as empresas devem assumir sua responsabilidade com os sítios e ambientes degradados e com os ex-trabalhadores, tanto uns como outros abandonados. "É preciso uma ação rápida", diz.

 

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