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Futuro promissor para o plástico verde
Além do sucesso como combustível, cresce o uso do álcool como matéria-prima industrial
MIGUEL NÍTOLO
Brinquedos: sustentabilidade é exigência no
mercado internacional / Foto: Arquivo PB
Nunca o etanol brasileiro foi fustigado pela crítica internacional como agora, em virtude da crise de alimentos que grassa solta e, por extensão, da inflação que ganha espaço na economia de basicamente todas as nações. Com unhas afiadas, os questionadores dos biocombustíveis endereçam todo tipo de ataque ao álcool made in Brazil, dizem meias verdades e fazem acusações, algumas vezes com notória má-fé, outras por completa desinformação. Confundem o etanol feito de milho, como nos Estados Unidos, com o obtido da cana-de-açúcar, caso do Brasil, o primeiro, conforme alegam, inflacionário por derivar de um grão que está presente nas mesas na forma de alimento. E sustentam que o álcool dos canaviais promove a devastação da Amazônia, de longe a maior floresta tropical do planeta, tal a avidez com que os usineiros investem na ampliação de seus negócios com vistas a dar atendimento às necessidades da frota de veículos nacional e aos primeiros contratos de exportação. Nesse aspecto talvez guardem alguma razão – talvez –, considerando que a produção de álcool reside no sul, mas estaria ocupando terras da pecuária e, por conta disso, empurrando o gado para regiões de mata intocada. No final de julho, não é demais rememorar, o ministro Carlos Minc, do Meio Ambiente, esteve na Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso, no sudoeste do Pará, e ali aplicou, pessoalmente, uma multa de R$ 10 milhões por desmatamento e criação ilegal de 4 mil cabeças de gado. A despeito das escaramuças, no entanto, o sucesso do etanol – que começou a entrar em cena já em 1975 com a criação do Proálcool e move hoje a maior parte dos carros fabricados no Brasil – é uma realidade que não comporta mais questionamentos.
Se no plano externo a caminhada ainda é cheia de percalços, no interno a história do álcool da cana-de-açúcar é escrita com letras maiúsculas. De acordo com a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), há um nítido aumento no consumo do etanol em todo o país, e em alguns estados esse crescimento é muito expressivo. A produção nacional de álcool, que, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, cravou 22,3 bilhões de litros na safra passada (8,4 bilhões de litros de anidro e 13,9 bilhões de hidratado), continua em franca ascensão, tendo crescido 7,01% em relação ao levantamento anterior. "Até 15 de junho, 61,87% da cana-de-açúcar processada foi utilizada na fabricação de etanol, restando para a produção de açúcar apenas 38,13%." Conforme informações disponibilizadas pela Unica, os números mostram um avanço que tem ido além do esperado, em função, principalmente, da forte expansão das vendas de veículos flex fuel, modelos lançados comercialmente no mercado brasileiro em 2003. Nos primeiros seis meses de 2008, os automóveis bicombustíveis responderam por 83% do total de unidades comercializadas: de 1,41 milhão de autos vendidos no período, 1,17 milhão pertenciam à versão flex.
Certificação
E vêm novidades por aí. Depois do retumbante sucesso como alternativa à gasolina, o etanol começa a dar largas passadas num mercado que, até aqui, reservou ao petróleo a supremacia como insumo: a indústria do plástico. Em 2009, a Petroquímica Braskem irá principiar a construção em Triunfo, nos arredores de Porto Alegre, da primeira fábrica de plástico verde de que se tem notícia e que se dedicará à produção de polietileno de alta densidade (PEAD) a partir do etanol. "Será o primeiro PEAD certificado do mundo feito de material renovável", destaca a empresa. A certificação do novo material veio pelas mãos da Beta Analytic, um importante laboratório americano a quem coube atestar que o produto deriva, de fato, de matéria-prima 100% renovável. O biopolímero gaúcho nasceu no Centro de Tecnologia e Inovação da Braskem no Rio Grande do Sul, em instalações que, segundo seus administradores, reúnem o que há de "mais moderno e bem equipado no setor na América Latina, com ativos tecnológicos de R$ 330 milhões, incluindo oito plantas-piloto". Luiz Nitschke, responsável comercial do Projeto Polietileno Verde da empresa, conta que uma dessas plantas está envolvida até o "pescoço" com a novidade, produzindo eteno (gás incolor, que se liquefaz a -103oC e se solidifica a -169oC) para fabricar resinas a partir do etanol.
Posicionada entre as três maiores companhias industriais privadas de capital nacional, a Braskem ocupa lugar de destaque na oferta de resinas termoplásticas na América Latina. É a maior petroquímica do continente latino-americano e dona de 18 plantas industriais, que, juntas, produzem anualmente mais de 10 milhões de toneladas de resinas termoplásticas e outros produtos petroquímicos. É com esse robusto currículo que a empresa planeja dar uma "sacudidela" no mercado brasileiro de material plástico. Foram dois anos de pesquisas e investimentos de US$ 5 milhões, uma investida que nem bem saiu do papel e já prenuncia a necessidade de ampliação da oferta, dada a aceitação do produto pelas indústrias, especialmente as localizadas fora do Brasil. Alvo, num primeiro momento, da Braskem, essas corporações fabris de países do Primeiro Mundo não escondem sua efetiva preocupação com o meio ambiente. Afinal, garantem os especialistas da companhia, o polietileno feito de etanol da cana-de-açúcar tem as mesmas propriedades da matéria-prima correspondente tirada do petróleo – as duas resinas são quimicamente idênticas –, com a vantagem de agredir pouco a natureza. "Tudo isso nos permite começar a pensar em um segundo projeto", disse à imprensa, meses atrás, José Carlos Grubisich, até recentemente presidente da Braskem e hoje no comando de outra empresa do grupo. Nitschke é mais revelador. Diz que a idéia é partir rapidamente para uma nova unidade, que poderá ser estabelecida no estado de São Paulo. Ele salienta que a planta de Triunfo, que deverá entrar em funcionamento no final de 2009, terá capacidade de produção da ordem de 200 mil toneladas anuais de polietileno e consumirá investimentos superiores a R$ 400 milhões.
Na realidade, a técnica que conduz à fabricação de polietileno com base no etanol já é conhecida do brasileiro. Algumas empresas do ramo químico e petroquímico estiveram envolvidas com a tecnologia décadas atrás, mas foi graças ao aprimoramento do processo e à firme decisão de popularizar comercialmente a resina verde que ela começou, definitivamente, a despertar a atenção do mercado. O polietileno prometido pela Braskem é especialmente recomendado como matéria-prima na moldagem de um sem-número de produtos, com destaque para aqueles utilizados pela indústria automobilística, de embalagens alimentícias, de cosméticos e de artigos de higiene pessoal. "Sabemos que o caminho a ser percorrido neste desenvolvimento é longo e que no âmbito da indústria automotiva ele será feito, inicialmente, através da substituição do plástico convencional nas chamadas peças decorativas, como molduras, tampas, calotas e frisos", salienta José Barboza, especialista em materiais da SAE Brasil – Sociedade de Engenheiros da Mobilidade. Posteriormente, explica ele, será a vez dos itens de maior responsabilidade e, conseqüentemente, de maior conteúdo tecnológico, caso do tanque de combustível, dos reservatórios de fluidos e de alguns elementos de configuração mais simples, como portas e painéis laterais. "Finalmente, mais à frente, o uso do polietileno verde alcançará as peças que ainda hoje não foram totalmente desenvolvidas mesmo para o uso do plástico tradicional, podendo ser citadas as engrenagens, a tampa do cárter e molas", elucida Barboza.
Vantagens
Apesar de os projetos estarem ainda em fase de execução, já há pelo menos um exemplo concreto da aplicação do polietileno do etanol da cana-de-açúcar. A Braskem e a Brinquedos Estrela firmaram uma parceria de longo prazo para o desenvolvimento de produtos com a resina do etanol, e o primeiro resultado prático dessa investida está chegando ao mercado: o Banco Imobiliário Sustentável, versão modernizada e com peças de plástico verde de um dos jogos mais tradicionais da indústria de brinquedos no Brasil e que está no mercado desde 1944. "Nossos clientes internacionais têm cobrado cada vez mais conceitos de sustentabilidade em nossos produtos", fala o presidente da Estrela, Carlos Tilkian. A dinâmica do jogo está ligada a esse tema: em vez de retratar um cenário urbano, as casas do tabuleiro apresentam tesouros naturais como o Pantanal, o rio São Francisco, a chapada dos Veadeiros, a serra da Mantiqueira e locais de produção de cana-de-açúcar como Ribeirão Preto (SP), Três Lagoas (MS) e Teotônio Vilela (AL). Tilkian diz que o plástico verde é importante para a Estrela porque "permite um diferencial em relação aos fabricantes chineses, nossos grandes concorrentes, que utilizam essencialmente o plástico tradicional". Ele também argumenta que é uma grande vantagem dispor de uma matéria-prima inovadora e competitiva como o polietileno de etanol. "Todos os brinquedos têm componentes plásticos", acentua, sugerindo que a Estrela poderá elevar a demanda pelo produto no decorrer do tempo (a empresa oferece mais de 400 diferentes itens). O executivo faz no entanto uma ressalva: será preciso comprovar a competitividade da resina verde em termos de preço em relação à matéria-prima de origem petroquímica. "Só teremos uma idéia mais concreta disso depois de 2010, quando as unidades de produção entrarem em operação." Há um dado aqui que não pode passar em branco, um trunfo que, seguramente, contribuirá para abrir as portas do mercado ao plástico do etanol da cana-de-açúcar: seu emprego pela indústria não exigirá alterações no maquinário ou adaptações na linha de produção. "As fábricas de produtos plásticos deverão beneficiar-se desse importante desenvolvimento sem a necessidade de ter de arcar com investimentos em novos equipamentos" garante Nitschke.
A bem da verdade, a Braskem não é a única companhia do setor petroquímico fincada em território brasileiro a projetar a oferta de resina plástica com a ajuda do etanol. A Dow Química e a Solvay trabalham na mesma direção – a primeira empenhada em fabricar resina de polietileno linear de baixa densidade, especial para a produção de filmes plásticos, e a segunda dedicada a extrair etileno do álcool, insumo que será direcionado para a fabricação de PVC (policloreto de vinila), que tem na Solvay seu maior representante fabril no Brasil.
A investida da Dow no mundo do plástico verde está sendo feita em parceria com a Crystalsev, empresa que, há 11 anos no mercado, está entre as três maiores tradings do país. Ela comercializa, anualmente, mais de 2 milhões de toneladas de açúcar – 8% de toda a produção nacional – e 1,8 bilhão de litros de álcool. Responsável pela logística e comercialização de 17 unidades produtoras localizadas em São Paulo, Minas Gerais e Goiás, também investe em terminais portuários, armazéns e tancagem, além da produção de energia elétrica. "Em 2004, a Dow começou a pesquisar fontes alternativas de matéria-prima objetivando o desenvolvimento de um projeto de fábrica no Brasil que fosse livre da dependência da nafta importada", conta Carlos Roberto Pereira, líder do projeto Dow-Crystalsev. "E a Crystalsev vinha há anos procurando uma maneira de diversificar o uso do etanol na área químico-plástica. Por serem líderes em seus setores, os contatos amadureceram e hoje as empresas têm um relacionamento pioneiro, inovador e compromissado com práticas sustentáveis de negócios."
Pereira recorda que, em julho de 2007, as duas empresas assinaram um memorando de entendimento visando a criação dessa joint venture, iniciativa que acabou dando vida ao primeiro pólo alcoolquímico integrado com escala global. "Essa união de interesses alia a competência da Dow em tecnologia e na produção de polietileno, mercado em que é líder global, ao know-how da Crystalsev na indústria sucroalcooleira." Pereira também esclarece que, desde abril de 2008, a gestão das atividades agrícolas e industriais ligadas à produção de etanol e energia elétrica do projeto de implantação do pólo alcoolquímico foi transferida à paulista Santelisa Vale, que passou a dividir com a Crystalsev o controle acionário de 50% do capital da joint venture. "A entrada do novo parceiro foi uma decisão estrategicamente importante, pois a experiência de cada empresa poderá ser utilizada de forma bastante sinérgica, fortalecendo e assegurando o sucesso do empreendimento", assegura o líder do projeto. A Santelisa Vale é o resultado da fusão da Cia. Energética Santa Elisa e da Cia. Açucareira Vale do Rosário, convergência que fez surgir o segundo maior grupo produtor de açúcar e álcool do país.
Integração
Planejado para entrar em funcionamento em 2011, o investimento coordenado por Pereira terá capacidade de produção de 350 mil toneladas anuais de polietileno de baixa densidade linear, matéria-prima de embalagens flexíveis, apropriadas para acondicionar achocolatados, açúcar, arroz, café, feijão, fraldas e alimentos para animais domésticos, para citar apenas alguns exemplos. "Na verdade, o produto poderá ser adotado por todos os setores que utilizam, atualmente, o polietileno tradicional. Mas não será a Dow quem determinará as demandas do mercado e, sim, os clientes, que buscam um produto de qualidade com um diferencial sustentável."
Pereira comenta que um projeto dessa envergadura requer certo grau de desenvolvimento logístico, incluindo acesso a estradas para escoamento da produção, mão-de-obra e infra-estrutura, entre outros aspectos. Além disso, diz, "é importante que a região disponha de terras capazes de proporcionar boa produtividade no cultivo de cana-de-açúcar". Vale ressaltar que a grande inovação da iniciativa reside na integração das empresas em todo o processo, do plantio da cana até a fabricação e a comercialização do plástico. Ele destaca que a cana-de-açúcar será fornecida em sua totalidade pelas fazendas que circundarão a usina e que operarão em regime de parceria. "São boas as chances de o pólo alcoolquímico atrair os transformadores de plástico para a região", afirma Pereira.
Parte de um ambicioso plano de investimento em curso, orçado em mais de US$ 300 milhões e que contempla a expansão da oferta de vários itens petroquímicos, o projeto da Solvay Indupa, por sua vez, prevê a construção de uma fábrica de etileno à base de etanol com capacidade de produção de 60 mil toneladas anuais em Santo André, na Grande São Paulo. O plano é substituir a nafta obtida do petróleo pela matéria-prima derivada da cana-de-açúcar na produção de PVC, resina termoplástica presente numa lista infindável de aplicações, como "portas e janelas, bonecas e bolas, embalagens de alimentos e um mundo de produtos com possibilidades infinitas de criação e design", explicam os técnicos da empresa. "A tecnologia vai contribuir para reduzir consideravelmente as emissões de gases que colaboram para a degradação da atmosfera através do efeito estufa", observa Augusto Di Donfrancesco, CEO da Solvay Indupa, companhia de capital belga responsável no Brasil pela produção anual de 240 mil toneladas de PVC e 100 mil toneladas de soda cáustica. Ele conta que o projeto em execução está previsto para entrar em operação em 2010 e que o fornecimento de etanol será feito pela Copersucar (Cooperativa de Produtores de Cana-de-Açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo). "Fechamos um contrato válido para um período de dez anos", diz Di Donfrancesco, informando que a Copersucar assumiu o compromisso de entregar à Solvay Indupa, anualmente, 150 milhões de litros de etanol.
O fortalecimento da alcoolquímica no Brasil e a expectativa criada em torno do desenvolvimento das resinas verdes estão aguçando o interesse das companhias que utilizam em larga escala termoplásticos em suas linhas de produção. Merheg Cachum, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), diz que os novos produtos serão bem recebidos pelo mercado. "Mais dia, menos dia, o petróleo vai acabar", comenta ele. Lembrando que a cana-de-açúcar é um produto nosso e que "está sobrando", Cachum frisa ainda que, num contexto em que o mundo corre atrás de novas tecnologias, o Brasil não pode ficar para trás.