Postado em
Ficção Inédita
Calor de chuva
por Daniel Piza
Ricardo Dantas estava cansado, saiu da Bolsa de Valores, almoçou no São Jorge e decidiu caminhar um pouco. Mas poucos metros Líbero Badaró acima, diante da porta dupla de ferro do Martinelli, decidiu entrar no edifício que só conhecia de fama, movido não por esta curiosidade, mas pela vontade de adiar seu retorno à mesa de corretagem e seus gritos e ganhos e perdas. Na parede do hall de entrada, leu um cartazete que anunciava uma leitura literária no último andar; a de hoje seria Angústia, de Graciliano Ramos, de quem se lembrava vagamente de ter lido Vidas Secas na época da escola, sem grande proveito. Dantas, como todo mundo o chama, na família ou no trabalho, é o tipo de pessoa que reavalia o passado de acordo com o que lhe trouxe proveito ou não.
Além de cansado, estava suado, dois estados que normalmente não sente, gabando-se sempre de sua capacidade de trabalhar sem perder a elegância, sem desafrouxar o nó da gravata nem por um segundo. Sua namorada – com a qual não pretendia casar, pois tinha outros planos para si mesmo – volta e meia tentava que ele relaxasse, até uma vez em que tentou despentear seu cabelo por brincadeira e foi obrigada a ouvir um “nunca mais faça isso” cujo tom ríspido não dava margem a dúvida. Dantas começou a sentir mais irritação quando notou que o elevador não ia subir enquanto não ficasse cheio. “Deve ser o último lugar do mundo onde ainda existe ascensorista”, pensou, olhando para a mulher de uniforme cinza que segurava molemente a manivela que trava o elevador.
“Calor de chuva, né?”, disse ela de repente, e num primeiro instante a reação de Dantas foi se incomodar com aquela necessidade de puxar papo, como se precisasse ser entretido ou enrolado enquanto o elevador não se enchia, à maneira dos motoristas de táxi que insistem em quebrar o silêncio para contar de sua vida sexual ou financeira para o passageiro. Antes de expressar esse incômodo, porém, lhe ocorreu que aquela era uma expressão curiosa, quase paradoxal e, quem sabe, tipicamente paulistana. De fato o clima hoje tinha aquele abafamento, aquele mormaço que precede a chuva, capaz de fazer suar e reduzir o fôlego e pôr toda a cidade à espera do caos, dos intermináveis congestionamentos e alagamentos, do inferno molhado que seria a hora do rush – e certamente a chuva escolheria a hora do rush para cair e complicar tudo ainda mais –, e não à espera do refresco que a água traria, aliviando a massa de calor e poluição que baixava lá fora. “É, é mesmo”, murmurou Dantas, respondendo mais a si mesmo do que à ascensorista.
Como fazia sempre nos momentos em que estava esperando alguma coisa, até mesmo parado dentro do carro no trânsito, Dantas enfiou a mão no bolso interno do paletó onde deixava o celular para que não fosse roubado e começou a olhar se tinha recados e a passear pela agenda para ver os compromissos. Decidiu então desligá-lo. Quando tirou os olhos do aparelho, viu que o elevador já tinha as dez pessoas e soltou um suspiro de satisfação. Foi então que seu olhar percorreu uma diagonal em direção ao painel do elevador, para acompanhar a numeração andar a andar com a ansiedade habitual, e cruzou a meio caminho com um obstáculo feito de traços delicados, perfume e charme, uma mulher linda, vestida discretamente na moda – mas em nada parecida com as mulheres que trabalhavam nos bancos ao redor – e com um rosto que Dantas imediatamente classificou como “antigo”, por seu perfil convexo, que tão bem casava com seu corpo longilíneo.
Não, não era a beleza óbvia daquela mulher que o atraía, como atraía os outros homens dentro do elevador, todos felizes por terem entrado primeiro e a terem visto se ajeitar ao lado da ascensorista, de costas para eles. Não, o que o fascinou foi aquela imagem que parecia resistir ao tempo, suspensa como o elevador mas por fios leves e invisíveis, duradoura como um retrato a óleo na parede – uma obra-prima dessas que Dantas vira a passos apressados em um passeio turístico juvenil pela Europa, o qual necessariamente incluía museus como cartões-postais. Talvez em outro dia, menos cansado, e com outro clima, menos cansativo, Dantas nem sequer notasse aquela moça. Foi como se tivesse sido jogado ali, naquele hiato estático entre as horas, pela própria aceleração em que vivia, como o satélite que precisa de muita velocidade para entrar em órbita.
Dantas viu naquela mulher sem maquiagem o que via nas outras mulheres quando maquiadas. Os cílios negros e compridos emolduravam os olhos azuis, as bochechas tinham um rosado natural e apessegado, a boca não precisava ser nem delineada nem umedecida para convencer de sua perfeição, os cabelos brilhavam como se tivessem acabado de nascer da superfície. O nariz não era o modelo pequeno arrebitado que se vende nos clichês de beleza; tampouco era grande, mas era ao mesmo tempo retilíneo e forte, como a simbolizar a personalidade que saía por todos os poros daquela mulher. Mas por mais atraente que fosse, e Dantas jamais vira mulher tão atraente, ela estranhamente lhe parecia distante, etérea, como um camafeu, uma efígie, um broche incrustado de água-marinha como os que ele via sua avó usar. Ela parecia uma mulher de uma época à qual ele não pertencia, não uma mulher que não pertencia a esta época.
Todas essas sensações comprimidas no espaço de um elevador e no tempo de chegar ao 30º andar não deixaram Dantas nem sequer especular aonde ela iria, até porque sabia vagamente que o prédio tinha repartições públicas. Não se perguntou se ela seria arquiteta, por exemplo, ou se teria uns 30 anos; muito menos se deu ao trabalho de olhar se tinha aliança no dedo. Ao contrário das outras mulheres por quem se interessava, não tentou extrair uma ficha de informações a seu respeito apenas com o exame visual. Aquela mulher o havia levado a outros círculos do pensamento, sem deixar em nenhum momento de lhe parecer a mais desejável do mundo. Ficou feliz quando a viu descer no último andar, como ele e mais três pessoas. Ela provavelmente também ia à leitura de Graciliano; seu tipo era muito mais inclinado a esse tipo de evento do que o dele próprio.
Mas ao sair por último do elevador, depois de desejar boa tarde à ascensorista, apertou o passo para segui-la e não a viu mais. Ela havia virado em algum corredor ou entrado em alguma sala, em vez de subir o último lance de escada até o terraço. Dantas ainda a procurou um pouco, mas parecia pressentir que não a encontraria. Subiu os degraus e, esbaforido, encostou na amurada enquanto esperava o início da leitura. Dali do alto a cidade impressionava ainda mais, sobretudo com o enorme bloco de nuvens que pairava como uma ameba negra e mutante. Tanta gente, tanto prédio, tanto carro, e a cidade parecia espelhar aquele céu, como um deserto às vésperas de ser bagunçado por uma tempestade de areia.
Depois da leitura, Dantas desceu, decidido a não ligar o celular e não voltar ao trabalho, e saiu andando pelas ruas com o destino de não ter destino, ao menos uma vez na vida. Era um homem de seu tempo, exceto por esta tarde de fim de ano. Não mais que meia hora depois, a chuva começou a cair, mas não com a força que se previa, e Dantas continuou a caminhar, olhando como nunca antes para os rostos que passavam e tendo a sensação de que dentro de cada coração paulistano caía uma garoa.