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Brincar de esporte

Além de mobilizar multidões, qual outro papel de importância o esporte – por meio de seu caráter lúdico em detrimento do competitivo – poderia desempenhar na sociedade? Segundo pesquisadores da área da educação, a pedagogia tem buscado caminhos para responder a essa pergunta. “Uma prática pedagógica que considere os jogos e as brincadeiras como facilitadores do processo apresenta algumas vantagens”, escreve o professor de educação física e doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Rodrigues Paes. O também professor de educação física e pró-reitor acadêmico da Universidade do Futebol Alcides Scaglia complementa dizendo que o assunto deve ser tratado com cuidado, “pois o esporte não é educativo por natureza”. A seguir, a íntegra dos artigos dos especialistas.


Reflexões preliminares acerca da pedagogia do esporte
por Alcides Scaglia

A Inglaterra, no século 19, foi um dos primeiros países a aceitar e utilizar o esporte como um meio de educação. Com as aulas possibilitava ao estudante desenvolver sua capacidade de liderança e o controle de si, além de saber conciliar uma atitude de liberdade com ordem. Qualidades estas que vinham ao encontro dos ideais de construção de um modelo de homem inglês que, além de forte e possuidor das qualidades acima citadas, deveria adquirir também outras, como: lealdade, cooperação, autodisciplina, iniciativa, tenacidade e espírito esportivo. No somatório se teriam preenchido todas as necessidades da administração do Império Britânico.

Com este exemplo, pode-se perceber que há muito tempo o esporte começou a ser visto não apenas como esforço físico em busca de um rendimento, mas, sim, como um meio de atingir outras competências e habilidades, ou seja, de se educar.

Contudo, hoje, no século 21, acredito que ainda se tenha de perguntar se realmente o esporte educa. Somos tendenciosos em dizer de imediato que sim. Pois sempre escutamos isso, a própria história que relatei acima confirma. Já é uma idéia arraigada em nosso senso comum, logo é banal.

Mas, quando olhamos ao redor, para os exemplos advindos do meio esportivo, somos obrigados a repensar. Ou seja, é necessário desbanalizar o banal, como diria o filósofo da educação Paulo Guiraldelli Jr.

Existem inúmeros péssimos exemplos, que estão longe de ser educativos.  João Batista Freire e o filósofo da motricidade humana, Manuel Sérgio, dizem que as Olimpíadas são o palco para a consagração dos corpos doentes.

Um paradoxo ou uma constatação?

O esporte levado ao extremo deixa de ser saudável, pois sempre traz lesões crônicas ao físico e “atrofias” permanentes aos cérebros daqueles que só têm como lema a busca pela medalha a qualquer preço.
Outro ponto que merece destaque, dando continuidade à reflexão, é, ao contrário da idéia de que o esporte afasta das drogas, dizer que muitas vezes ele leva a elas. Não estou falando das drogas sociais, como a maconha, mas das drogas químicas, dos anabolizantes...

Assim, a ingenuidade e a inocência devem dar espaço ao desenvolvimento do espírito crítico, pois o esporte não é educativo por natureza. Ou melhor, ele não é bom nem mau. Como diria o professor Paulo Cesar Montagner, o esporte será o que nós (professores, treinadores, dirigentes, políticos...) fizermos dele: pedagógico, educativo, performístico, alienador...

Sob a mesma ótica, João Paulo Medina diz que não podemos entender que o esporte, por si só, possa significar saúde, educação e cultura, numa perspectiva de autêntico desenvolvimento humano, se ele estiver descontextualizado de seus aspectos socioculturais ou mesmo sem uma clara noção de suas intenções subjacentes. Sem a visão de atuação o esporte será usado apenas como instrumento de manipulação e alienação das massas, aliado à simples reprodução dos valores vigentes.

Não sendo então o esporte educativo a priori, é preciso fazer dele um meio educacional, e ele só o será quando tiver por finalidade criar ambientes de aprendizagem que permitam aos alunos/jogadores a construção de conhecimentos não só concernentes à técnica e à tática, as questões relativas à dimensão conceitual e atitudinal, como valores culturais, morais e sociais devem incorporar os programas.

Mas o esporte educativo requer profissionais comprometidos com a sua função de educadores, não meros treinadores ou adestradores de gestos técnicos visando ao máximo rendimento esportivo.
Para desenvolver o esporte com características educativas é preciso discutir metodologia e didática de ensino.A esse respeito, lembro-me de uma de minhas pesquisas científicas sobre pedagogia do futebol. Investiguei como nossos ex-jogadores (profissionais de destaque) no passado aprendiam a jogar futebol, para depois comparar como esses mesmos ex-jogadores ensinavam seus alunos a jogar nas escolinhas, já que todos eram proprietários/professores e ministravam aulas para crianças em processo de iniciação.

O resultado foi interessante. Todos os ex-jogadores entrevistados de início eram instigados a contar suas  infâncias.

Com um sorriso no rosto, contavam-me suas travessuras impregnadas pelo lúdico (entendido como liberdade de expressão), repletas de jogos dos mais variados. Logicamente, as brincadeiras pertencentes ao universo dos jogos de bola com os pés ganhavam um destaque especial.

Recordo-me de um dos entrevistados que descrevia como a brincadeira de rebatida lhe permitia desenvolver a habilidade de chutar. Ou mesmo de outro, que dizia ter aprimorado a velocidade e ginga brincando de pique-salva (uma variação de pega-pega).

Contudo, ao aprofundar a entrevista, perguntando como eles haviam aprendido a jogar bem futebol, em nenhum momento foram realçadas as brincadeiras de bola com os pés, realizadas em ambiente de jogo, como fatores decisivos no aprendizado e aperfeiçoamento do futebol.

Paradoxalmente, alguns chegaram a responder  que futebol não se ensina e outros disseram que o máximo que dá para ensinar é a malícia do jogo. Logo, todos atribuíam aos genes e a Deus o fato de jogarem bem futebol. Mesmo aqueles que encontravam qualidades pedagógicas na rebatida e no pique-salva.

Mas o problema continuou, ou até mesmo piorou, pois quando, depois de terminar a entrevista sobre o aprendizado (ou seja, sua infância com a bola nos pés), iniciei perguntas  sobre como eles ensinam hoje os alunos a jogar futebol, todas as respostas, sem exceção, desconsideravam a complexidade da infância, com seus jogos fantásticos. Agora, com uma cara mais fechada, séria, sisuda até, os ex-jogadores responderam que se pautavam, em sua larga experiência, como jogadores profissionais de futebol.

Os treinos tecnicistas da fase adulta, num regime profissional, eram miniaturizados para atender à demanda de alunos que, espelhados nas glórias alcançadas pelos ex-jogadores (hoje professores das escolinhas), corriam a se matricular para realizar o sonho.

Por fim, mesmo depois de destacar qualidades no jogo para o aprendizado, a idéia mitificada e banalizada em nossa sociedade venceu. Jogador não se forma, nasce determinado. Não existe uma correlação entre o futebol (o modo) que se aprende e o futebol que se ensina.

Em contrapartida, pode-se reafirmar a tese de que o estilo do futebol brasileiro advém da rua. De uma pedagogia da rua (com seus jogos/brincadeiras), como diz e escreve o professor João Batista Freire. Portanto, as bases de sustentação da metodologia pautada no jogo estão fixadas.

Cabe aos clubes exigir um profissional com esse perfil e aos cursos de educação física a competência para formar profissionais diferenciados para o século 21 que, ao estudar pedagogia do esporte, sejam preparados para tratá-lo como um meio de educação, privilegiando seu aprendizado  pelo jogo nas dimensões conceituais (saber/compreender), procedimentais (saber fazer/jogar) e atitudinais (saber ser).

 

“(...) há muito tempo o esporte começou a ser visto não apenas como esforço físico em busca de um rendimento, mas, sim, como um meio de atingir outras competências e habilidades, ou seja, de se educar ”


 

Alcides Scaglia é professor de educação física, pró-reitor acadêmico da Universidade do Futebol e vice-presidente da Associação Futebol Arte (AFA)

 

 


Pedagogia do esporte e o jogo: considerações acerca do processo de ensino-vivência-aprendizagem socioesportiva
por Roberto Rodrigues Paes


O esporte em todo o mundo passa por um período importante em seu permanente processo de evolução. Especialmente neste ano, por ser ano olímpico, o esporte contemporâneo torna-se ainda mais o foco das atenções da mídia mundial e, por conseqüência, em alguma medida, mais presente na vida das pessoas.
Agregados a esse contexto, sua linguagem universal e o fascínio que exerce em suas possibilidades de consumo interferem de forma significativa no hábito da prática esportiva. Diante desta constatação, faz-se necessário, também de forma constante, melhor compreendê-lo em seus diferentes significados. Destaco que em qualquer de suas possibilidades cabe às instituições de educação formal e não-formal, bem como aos profissionais, entre os quais professores, técnicos e dirigentes esportivos, dar ênfase à natureza educacional do esporte.  Para tanto, é necessário dar ao esporte, em especial na iniciação esportiva, um tratamento pedagógico. Cabe, portanto, à pedagogia do esporte a organização do ambiente, dos conteúdos desenvolvidos, dos facilitadores e dos  procedimentos a serem adotados, visando tornar o processo de ensino-vivência-aprendizagem esportiva alegre, prazeroso e eficaz, oferecendo ao aluno a oportunidade de conhecer, aprender e vivenciar o esporte utilizando-o como um dos fatores que efetivamente podem contribuir para a melhor qualidade de vida do ser humano.
A iniciação esportiva não pode ser restrita a seqüências de movimento, de forma isolada e descontextualizada do processo educacional. É fundamental ter como eixo de uma iniciação esportiva duas referências: a técnica e a socioeducativa. A referência técnica deve cuidar dos aspectos do desenvolvimento das capacidades físicas, da aquisição de habilidades motoras e da compreensão da tática. A referência socioeducativa deve ser balizada por princípios como: cooperação, convivência, participação, autonomia e co-educação.  Além das referências citadas, é fundamental levarmos em conta, no processo ensino-vivência-aprendizagem esportiva, no contexto educacional, a possibilidade de proporcionar aos alunos o desenvolvimento de suas inteligências, a melhora de sua auto-estima, privilegiando ainda seu convívio social. Em síntese, a iniciação esportiva é mais do que a aprendizagem de gestos técnicos –  é uma aprendizagem social.

Outro aspecto a ser destacado refere-se à importância da diversificação. A diversificação deve ser pensada e adequada a todas as situações no decorrer do processo de ensino-vivência-aprendizagem socioesportiva. Justifico esta afirmação tendo em vista as vantagens no plano inerente aos referenciais técnicos e socioeducacionais, como também no plano motivacional. Diante deste destaque, e ainda pela riqueza de seu caráter lúdico, os jogos e as brincadeiras são importantes facilitadores da iniciação esportiva. Por meio de jogos e das brincadeiras é possível proporcionar aos alunos situações novas, até então desconhecidas. O enfrentamento de tais situações novas implica a ampliação dos limites motor, cognitivo e afetivo-social de nossos alunos. Ainda na perspectiva da utilização do esporte como aliado no processo de formação do cidadão, é preciso levar em conta três aspectos relevantes na tentativa de tornar o ambiente esportivo favorável às transformações desejadas, tanto no plano individual como no coletivo. São eles: imprevisibilidade, complexidade e criatividade. Entre outras razões, as permanentes mudanças de regras tornam o esporte imprevisível, pois suas ações nunca se repetem exatamente da mesma forma. Ao jogar, nossos alunos podem estar sempre diante de ações inusitadas, ou seja, de situações complexas que os fazem identificar os problemas, elaborar soluções e, por conseguinte, tentar resolvê-los. A busca constante de ações visando à resolução de problemas é tanto mais rica quanto mais estimulada for a criatividade no processo de ensino-vivência-aprendizagem socioesportiva. Os aspectos aqui citados justificam a importância do jogo e das brincadeiras no processo pedagógico de ensinar nossos alunos a conviver com o esporte. Uma prática pedagógica simplista preocupa-se somente com repetições de gestos, inibindo a criação de novos movimentos, tornando previsíveis o esporte e o jogo, descaracterizando-os, portanto.

Uma prática pedagógica que considere os jogos e as brincadeiras como facilitadores do processo apresenta algumas vantagens. O caráter lúdico, a diversificação, a cooperação, a inclusão, o retorno à origem do esporte, o compartir, e mesmo o competir, que, tratado de forma adequada, sem valorização exacerbada, pode promover a alegria e o prazer de uma prática que nunca se repete, pois a incerteza presente no fenômeno esporte como uma de suas características pode atuar como agente de motivação, despertando no aluno, cada vez mais, o hábito de sua prática.

A discussão acerca do jogo e do esporte, tendo como principal foco a figura do aluno jogador, certamente deve ocorrer de forma continuada. Seguramente, tanto o esporte como o jogo, organizados com base numa pedagogia que respeita as características do aluno, contribuem com o seu processo de crescimento, desenvolvimento e, sobretudo, de educação. Entretanto, é preciso ter clareza de que estas contribuições só ocorrem quando o esporte é oferecido de maneira planejada, sistematizada e com avaliações permanentes.

O esporte contemporâneo apresenta, como uma de suas principais características, a pluralidade. O que significa que sua prática ocorre em diferentes cenários, como escolas, clubes, praças, centros esportivos etc. Sua disponibilidade pode ser direcionada a diferentes personagens, por exemplo, crianças, adolescentes, idosos, atletas, deficientes etc. Seus objetivos também são variados: atividade profissional, ocupação do tempo livre e conteúdo da educação física no âmbito escolar, entre outros.  A pluralidade do esporte contemporâneo contribui de forma significativa para sua acessibilidade, tratando-se, portanto, de uma característica positiva. No entanto, tal pluralidade pode ser causadora de alguns equívocos verificados na sua promoção. Para darmos ao esporte e ao jogo um tratamento pedagógico faz-se necessário conhecer o cenário (ambiente de trabalho), respeitar as características, necessidades e interesses dos personagens (nossos alunos) e definir com clareza os objetivos (significados) da prática esportiva, compatibilizando-os entre si.

Por fim, ratifico a importância do esporte, dos jogos e das brincadeiras no processo de educação e formação do cidadão. Vivemos neste início de século 21 um momento importante para uma melhor compreensão e melhor convivência com o fenômeno sociocultural e esportivo, no qual o mais importante não é o jogo, mas aquele que joga. E quem joga se movimenta, pensa e tem sentimentos. Cabe à pedagogia do esporte, por intermédio de seus facilitadores, entre outros os jogos e as brincadeiras, articular esses aspectos, contribuindo assim efetivamente para o desenvolvimento integral e harmonioso dos nossos alunos.

“Uma prática pedagógica que considere os jogos e as brincadeiras como facilitadores do processo apresenta algumas vantagens. O caráter lúdico, a diversificação, a cooperação (...), podem atuar como agentes de motivação, despertando no aluno (...) o hábito de sua prática”


Roberto Rodrigues Paes é professor de educação física e doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)