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A atriz Esther Góes defende que o papel da arte é levantar questões fundamentais para o desenvolvimento humano
Gal Oppido/ Divulgação

 

Quando recebeu a reportagem da Revista E em seu apartamento no bairro de Perdizes, Zona Oeste da capital, a atriz Esther Góes mostrava-se um pouco cansada. O motivo? A eterna ponte aérea entre o Rio de Janeiro, onde grava a novela Amor e Intrigas, da Rede Record, e São Paulo, que recebeu a primeira temporada do espetáculo Determinadas Pessoas – Weigel, sobre a atriz e mulher do dramaturgo Bertolt Brecht, Helene Weigel, em cartaz no Sesc Santana até o mês passado. “Às vezes fico algumas horas sem fazer nada e me sinto culpada”, brincou. Mas a convidada da seção Depoimentos deste mês deve estar acostumada à agitação. Tudo começou com ela ainda menina ingressando no grupo de teatro do colégio. Em seguida, foi convidada para fazer parte do núcleo infantil do Teatro de Arena de São Paulo. Na juventude, pensou em ser assistente social, mas terminou mesmo na Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo. Desde a conclusão do curso, em 1969, Esther não parou mais. Em 1973, estreou com Renato Borghi, com quem era casada na época, O Que Mantém um Homem Vivo? No ano seguinte, fundou com Borghi a Companhia Teatro Vivo, que, entre outros espetáculos, encenou Pequenos Burgueses, em 1977. Entre as diversas produções desde então, recentemente Esther protagonizou outro êxito nos palcos: Tarsila, texto de Maria Adelaide Amaral sobre a vida da famosa pintora modernista Tarsila do Amaral, em 2003. Isso sem contar a carreira no cinema e na televisão, participando das novelas que tornaram seu rosto conhecido em todo o país. No bate-papo, Esther falou de Weigel e do papel da televisão e do teatro na sociedade contemporânea. A seguir, trechos.

Outro dia eu perguntei a uma colega: “Qual é a novela que você mais se lembra como especialmente bem escrita?”. Ela pensou e falou: “Gabriela [1975]”. E essa novela foi escrita baseada em um romance de Jorge Amado que conta toda a história de uma sociedade com mil e uma implicações. Essa é uma das hipóteses [sobre a qualidade das novelas de antes]. Quantas outras há? Por que se assistia? Porque depois isso virou “vamos transformar tudo naquela transação do coronel com a prostituta”. Isso é também um gancho que funciona perfeitamente em Jorge Amado, mas não deixa de ser [atualmente] uma mera interação sexual, e se imagina que seja somente isso que a população deseja ver. Mas não acho que é só isso, acho que é muito mais. Acho que, pelo contrário, existem muitos temas a serem mais bem explorados. E, para serem explorados, mesmo na televisão, não pode ser com tanta pressa. Essas coisas têm de merecer cuidados maiores.


É escrito tudo muito “assim” [atropeladamente]. É um gancho, bota outro gancho, bota outro gancho. E é sempre quem matou quem, e tudo é feito muito rapidinho. O que não for isso se transforma nisso. Você quer tratar de outro tema, mas não trata, você faz isso: põe a grande questão de fundo e coloca um triângulo amoroso para preencher o restante. Aí vêm o ciúme, a inveja, o ódio, o assassinato... Normalmente é só isso que a gente vê. [Não existe] a possibilidade de querer entender melhor o que é fundamental. Porque se você fica no triângulo, vai repetir a mesma história eternamente. Então, todas as coisas se parecem, são iguais e são eternas. Jamais mudarão. Só que se você não entender mais profundamente você não muda nada. Essa é a verdade. Você mantém tudo parado. Nós temos essa sensação de impotência e de tudo parado. Esse é o momento que estamos vivendo. 

Teatro e sociedade


Durante as décadas de 1960, 70, 80, enquanto foi possível, o teatro buscava repetir as questões com tendências muito claras. Nós acompanhamos as questões da Guerra Fria, de todo o mundo, e o teatro opinava: era de esquerda, era de direita. Havia aqueles grupos muito significativos, Arena, Oficina, que refletiam tendências postas em cena, questões artísticas, ideológicas etc. Hoje, é claro que com todos esses momentos, com todos esses percursos, essa certa confusão, essa perda de controle, existe o sentimento de impotência humana, porque você é menor, a sua capacidade de ser humano hoje em dia está ligada à capacidade do exercício da tecnologia. Você é capaz de se sentir inferior a qualquer laptop. E isso é utilizado até em termos de definir a importância ou a competência de uma pessoa. É tudo muito aleatório, na verdade, e ao mesmo tempo muito combinado. Quando a gente diz que o discurso do teatro está “meio enfraquecido”, quer dizer meio ausente, meio sem conseguir colocar as questões. Acho que qualquer obra de arte se fortalece à medida que consegue expor as questões. Não está lá só para dar uma risadinha, está lá para colocar questões, independentemente do riso ou do choro, do drama, da tragédia, da comédia, do que for. Se pegar o Molière [dramaturgo, ator e encenador francês] e outros, eles colocavam questões o tempo inteiro. Eu acho que cabe esse papel ao artista. As pessoas não estão conseguindo isso porque elas tentam permanecer dentro de determinados formatos nos quais as questões não cabem mais.

 

“(...) existe o sentimento de impotência humana (...) a sua capacidade de ser humano hoje em dia está ligada à capacidade do exercício da tecnologia. Você é capaz de se sentir inferior a qualquer laptop”

 

Por que Weigel?


Porque o que me interessa aí, em primeiro lugar, é a mulher. Depois porque o papel desta mulher é muito maior do que se sabe. Eu me dedico muito a essas criaturas – e aí eu incluo a Tarsila [do Amaral] também [papel que interpretou na peça homônima de 2003] – que desempenharam papéis articuladores de grandes movimentos, papéis importantíssimos, esforços imensos, foram co-autoras de uma série de coisas e são citadas como coadjuvantes. Como se fossem menores. Tarsila foi assim e a Weigel também. Como se existisse um feminino semi-oculto, sobre o qual você fala: “Está ali, mas nunca é”. Só que quando você puxa aparece uma coisa nova e você, de repente, percebe que tudo aquilo foi negado [pela posteridade]. Weigel tinha, inclusive, uma capacidade impressionante de conseguir separar o joio do trigo permanentemente [refere-se ao lado autor de Brecht, que Weigel admirava e ajudava, e ao homem, que a traía compulsivamente]. Ela preservou o que achava importante, e isso sei até pelas pesquisas que fiz, isso é real, não é só uma aparência, foi o que aconteceu. Ela sempre procurou preservar tudo de legítimo, de forte e aquilo que os unia. A relação dos dois começa como uma coisa muito erótica, que nem estava ligada exatamente à arte. Ele não gostava do teatro que ela fazia no começo. Durante muito tempo eles foram só mulher e homem. Weigel foi uma das grandes paixões de Brecht. Durante muitos anos ela foi “exclusiva”, coisa que era muito rara de acontecer no caso dele. Tanto que ela leva um baque muito grande quando começam a aparecer outras mulheres. Ele podia ter coisas ocasionais, mas ela era, realmente, a preferida. De repente, ele começa a mudar e ela quase se separa. Mas, de alguma forma, ele jamais quis se separar. E o casamento começa a ter essa característica de um casamento aberto. Mas com prerrogativas muito mais dele do que dela, porque ela, na verdade, tentava proteger os filhos em meio a isso tudo. Era a prioridade dela, que renuncia a uma série de coisas pessoais. Mas com o passar do tempo o casamento artístico e de idéias permanece e se fortalece cada vez mais. Mas no casamento [propriamente dito] a mulher permanece, sim. Eles nunca deixaram de ter essa relação, eles sempre moraram juntos, ele nunca abriu mão disso, mas esse não é o casamento mais importante.



A atriz Esther Góes, que acabou de encerrar temporada no Sesc Santana com Determinadas Pessoas – Weigel, sobre a atriz Helene Weigel, mulher do dramaturgo alemão Bertolt Brecht