Postado em
PS
História e Memória

Disse o historiador Paul Veyne, em sua aula inaugural no Collège de France, que "[...] a História existe apenas em relação às questões que nós lhe formulamos. Materialmente, a História é escrita com fatos; formalmente, com uma problemática e conceitos" (Veyne, Paul, O Inventário das Diferenças: História e Sociologia, São Paulo, Editora Brasiliense, 1983, p. 6).
O fato que registro nesta página é a descrição de parte dos arredores de minha casa. Ao fazê-lo, com olhos de quem busca algo além da localização geográfica de cada edifício, acabei por (re)descobrir fragmentos da história da cidade de São Paulo, até então adormecidos em suas ruas, praças, construções e destruições. Busquei dialogar com as recordações de antigos moradores que deixaram registrados suas memórias sobre o centro da cidade, pois muito de seu testemunho material desapareceu, restando apenas poucas lembranças. Ouço ao longe o sino da Igreja da Consolação marcando o tempo com suas badaladas, junto às buzinas e ao coro dos transeuntes. Ao sair, deparo-me com a avenida São Luís, uma avenida construída no início do século às custas da demolição do Antigo Pavilhão do Jardim de Infância: "[...] uma construção sextavada ou oitavada, onde as crianças subiam por rampas, com gradis de ferro [...] Debaixo das magnólias o chão era de areia onde as crianças brincavam [...]" ("Recordações de D. Brites", in Bosi, Ecléa, Memória e Sociedade, Lembranças de Velhos, São Paulo, T. A. Queiroz/Edusp, 1987, p. 249), um anexo da Escola Normal Caetano de Campos na Praça da República, praça essa que já se prestou ao cenário de cavaleiros, cocheiros e ponto de reunião das famílias dos Campos Elíseos, Vila Buarque e Higienópolis: "[...] no fim da tarde José Venâncio (um toureiro português) ficaria tremendamente irritado ao saber que o Largo dos Curros, aquele tradicional campo de treinamento de cavalos e cocheiros, seria brevemente ajardinado e rebatizado de Praça da República" (Modernell, Renato, Sonata da Última Cidade, o Romance de São Paulo, São Paulo, Best Seller, 1988, p. 33). "Ali por volta de 1902, a Praça da República foi cercada de arame farpado. Vieram carroças, removeu-se terra para ali, fizeram o largo, plantaram árvores, gramaram canteiros [...]" (Americano, Jorge, São Paulo Naquele Tempo, São Paulo, Saraiva, 1957, p. 128). Em direção à rua Barão de Itapetininga, "[...] Basta o nome - barão - para justificar, baseado no provérbio antigo: De barão a figurão / É um tiro de canhão" (Moura, Paulo Cursino de, São Paulo de Outr'Ora, Evocações da Metrópole, Belo Horizonte/Itatiaia, São Paulo/Edusp, 1980, p. 156), rua que já abrigou Monteiro Lobato, chego à Praça Ramos de Azevedo e ao Teatro Municipal. "Em 1928, fui convidado para ser garçom-gerente do bar e restaurante do Teatro Municipal, um salão grande com música, onde servi artistas como Beniamino Gigli, Tito Schipa, o barítono Tito Ruffo. [...] Os homens iam de casaca e as mulheres com vestuários lindos; por causa das roupas é que nunca pude trazer a mamãe para ver os espetáculos [...]" ("Recordações do Sr. Ariosto", in Bosi, Ecléa, Memória e Sociedade, Lembranças de Velhos, São Paulo, T. A. Queiroz/Edusp, 1987, p. 116). Avisto o Vale do Anhangabau e caminho pelo Viaduto do Chá que, ao ser inaugurado, em 1892, ligou a cidade velha à nova, em piso de tábuas de pinho do Paraná. "Antes de pertencer ao Governo, pagava-se para atravessá-lo: 3 vinténs ou 60 réis era a cota para os pedestres, as carruagens pagavam mais. Em cada extremo do viaduto ficava um guarda com o relógio registrador, marcando o número de pessoas que passavam pela roda giratória [...]" (Mota, Cassio, Cesário Motta e Seu Tempo, São Paulo, s/ed., 1947, p. 22). Menos de cinqüenta anos após sua inauguração, as tábuas de madeira deram lugar ao cimento armado. As plantações de chá foram substituídas por pomares e hoje o vale abriga um jardim às duras penas conservado, mas que não mais leva famílias ao passeio tranqüilo nos finais de tarde. Subo pela rua Coronel Xavier de Toledo e passo pelo Largo da Memória. Sujo, pichado, o largo deve guardar a memória de uma cidade mais humana, cujo respeito ao bem público não tenha por limite as grades, mas seja uma prática permanente do cidadão que se utiliza da rua e que aprecia seu caminho diário de casa para o trabalho como um espaço de convívio social harmônico. Paro na Biblioteca Municipal Mário de Andrade: guardiã de documentos e imagens, busco curiosamente mais informações sobre o caminho percorrido. Vou descobrindo que, diariamente, percorro muitos séculos de respostas a espera de perguntas. E que não é preciso esperar 500 anos para se perguntar o que e como temos feito nossa História, pois há o hoje e outros 500 a serem construídos.
Marta Colabone é formada em História e técnica do Sesc São Paulo