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História de Todos

Estabelecer uma definição precisa do que é História implica trabalhar com fatores atrelados a inúmeras variantes. As tentativas transitam de acordo com os humores de quem as assevera, influenciadas pelo contexto social, cronológico, além da formação de cada um. Desde Heródoto, que na Grécia antiga foi considerado o pai da História, os conceitos rígidos mostram-se insuficientes para formular uma tese emblemática.
No entanto, essa indefinição original não pretende ser desanimadora. Ao contrário. Em vez de buscar um apanágio perfeito, torna-se muito mais empolgante explicar por que a ciência da História é tão importante e tão sedutora aos olhos do homem.
Se não possui um conceito lapidar, traz, intrinsecamente, um objeto claro: o passado (seja o remotíssimo, seja o anteontem). Mas ao historiador não cabe simplesmente resgatar o elo perdido de maneira impune. O resultado da análise de um tempo ido, cujas reminiscências encontram-se disfarçadas sob as mais variadas formas, não emerge encapsulado. Todo e qualquer fato passado, quando confrontado com o presente, interfere no curso atual. Isso porque a História não é a mera reconstrução de um cenário morto. Ela existe (e se modifica) de acordo com os elementos únicos em cada momento cronológico e seu desvelamento influencia, sim, o desenrolar do presente. Nesse sentido, quando o pesquisador brasileiro do final do século 20 procura estudar, por exemplo, o descobrimento do Brasil e suas conseqüências, ele não o faz apenas para relatar um episódio, por um capricho pessoal, mas, por trás da pesquisa, existe a necessidade de entender uma outra época com o objetivo de analisar como as heranças daqueles eventos interferem no cenário que as realidades atuais compõem.
Para executar essa faina intrincada, o profissional utiliza os instrumentos disponíveis conforme o estágio e a concepção da ciência. Até há algumas décadas, o passado era resgatado a partir dos grandes feitos, das datas mais importantes e das personalidades principais, enfim, de um modelo superior que explicava as dinâmicas econômicas, sociais e políticas. Fiando-se somente nos atos graúdos, o desbravador perpetuava uma versão discriminatória ante a esmagadora maioria das pessoas.
Com o tempo (mais precisamente em meados do século, sob a influência da escola francesa), a historiografia começou a observar os interstícios da sociedade, dando voz e vez aos personagens secundários. A partir da inter-relação com outras disciplinas das Ciências Humanas, como a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia etc., a História amplificou suas fontes de estudo. Surgiram, em decorrência, outras concepções que complementaram a produção tradicional, calcada no grande feito, atinada a fontes oficiais. Passou-se a realçar a importância da história do corriqueiro, das mentalidades, da mulher, da sexualidade, dos pequenos atos, do prosaísmo, do dia-a-dia, enfim. O homem deixou de ser apreciado como um sujeito meramente social, vinculado a uma classe ou instituição. Sua subjetividade e individualidade foram alçadas ao papel principal. Essa nova História, em última análise, culminou no interesse maior que a disciplina exerce no leigo. Não se constitui na única causa, porém essa nova disciplina cativa o leitor comum e desvenda, por outros viéses, os eventos pretéritos que urdiram nosso presente.
História das miudezas
Sob os auspícios das temáticas modernas, as mitificações e os dogmas construídos a partir de interpretações totalitárias cederam lugar à compreensão mais justa. Em vez de vislumbrar a ciência presa em um sistema fixo, que explicaria qualquer período por meio de uma única fórmula, passou-se a priorizar as especificidades de cada momento. Resultado: credita-se a fenômenos aparentemente simples, que pareciam existir em dualidade rígida - bom ou ruim, certo ou errado, sim ou não - uma outra relação de complexidade.
É o caso da participação feminina na História. Caso um observador a filtrasse com os olhos tradicionais, seria induzido a concluir que os fatos se desenrolaram unicamente por mãos masculinas. Talvez, se considerarmos estritamente as deliberações oficiais, essa suspeita proceda. Todavia, como visto, os meandros sociais anônimos certamente contaram com a atuação das mulheres.
Para fazer transparecer, por entre as brechas dos preconceitos reinantes, a importância que as moças detiveram na sociedade colonial brasileira, as historiadoras Míriam Lifchitz Moreira Leite e Maria Lúcia Mott buscaram evidências nas entrelinhas de documentos lavrados por homens. A partir de registros legados por estrangeiros que visitaram o país, fizeram um levantamento rigoroso sobre o que eles pensavam da mulher brasileira, depois compilaram as informações num índice que aponta o autor e o local exato da citação. Através dos relatos, confrontados com outras fontes, levantaram alternativas que desmentem valores já arraigados. "Avaliamos diários, relatórios, correspondências de 150 viajantes do século 19", explica a professora Míriam. "Nesses documentos, eles deixaram as impressões sobre a mulher brasileira de acordo com a comparação que fizeram com a realidade do país de origem. Normalmente, emitiram uma opinião distorcida por conceitos preestabelecidos. Ou seja, a imagem que nos deixaram era alterada por sua visão parcial da sociedade."
Para se ter uma idéia dessa fragilidade, um dos autores era cego e o outro nunca sujou as botas com a terra brasileira. Portanto, empecilhos como esses impelem os pesquisadores a extrair vestígios dos elementos teoricamente secundários, como, nesse caso, prefácios e dedicatórias. "Os viajantes reclamavam do comportamento das mulheres: afirmavam que eram arredias. A constatação é natural, pois numa época em que os meios de comunicação eram tão parcos, havia receio de se aproximar intimamente de pessoas estranhas. Mas, caso o estrangeiro trouxesse uma carta de apresentação, as mulheres, claro, tornavam-se muito sociáveis e até seduzidas", informa Míriam.
Ao trabalhar com o passado, o historiador sempre corre o risco de se deparar com novidades imprevistas no início da prospecção. No caso da pesquisa de Míriam e Maria Lúcia, os documentos que continham subsídios sobre as mulheres revelaram, conforme informa o diário de um naturalista de passagem pelo país, que entre a elite da época existiam criadores de escravos, cuja atividade visava a reprodução dos negros cativos como se fossem animais, numa alternativa ao tráfico externo. Não é o caso de dizer que o viajante tenha revelado a prática desabonadora, mas suas observações auxiliaram a corroborar a tese.
Ponte para o passado
O percurso até se atinar uma conclusão depende da leitura e da interpretação dos instrumentos que carregam os resquícios dos eventos. Esses instrumentos, no jargão científico, chamam-se fontes. Durante longo período, as únicas fontes válidas eram provenientes dos documentos oficiais, ou seja, atas, relatórios, cartas e decretos subscritos por autoridade competente. Na historiografia tradicional só detinham autenticidade os termos oriundos do poder público ou religioso. No Brasil, era a elite (e apenas uma pequena parte) que perpetuava os relatos do presente. Os fatos e comportamentos alheios à vontade do dignitário de plantão desapareciam no ralo do tempo. Ao manter observância cega a esse preceito, muitas vezes, a História servia como espelho sectário e tendencioso, pois refletia o passado de acordo com os desígnios de poucos.
O cotidiano de milhões de pessoas que orbitavam às margens do poder estava fadado à sina do esquecimento. Imaginemos, então, as imensas falhas de um trabalho de pesquisa apoiado somente naquilo que a elite quer eternizar.
A nova concepção da História derruba em parte esse conceito tradicional. Traz à tona uma variedade de fontes que respondem por diferentes estratos sociais. "Assim, a imprensa, a literatura, a crônica, a iconografia (fotos, desenhos e ilustrações), os receituários, a memória, o imaginário e os depoimentos orais têm importância fundamental na historiografia", explica Ana Luiza Martins, historiadora do CONDEPHAAT e autora de Império do Café. A Grande Lavoura do Brasil. Ela prossegue: "A partir de uma foto, é possível reconstruir o contexto social. A posição das pessoas no retrato, a roupa e o esgar traduzem para nós elementos importantes. Cabe ao historiador realizar uma análise crítica do documento com o qual ele trabalha. Esse instrumental ilumina o passado e abre outras perspectivas. Um exemplo específico pode ser retirado dos fazendeiros de café do século passado. Por meio da arqueologia histórica, que analisa, por exemplo, os restos de uma cerâmica utilitária, uma simples xícara, pode-se dizer que os cafeicultores fluminenses eram mais sofisticados do que seus colegas paulistas".
Ana Luiza lançou mão de diversas fontes alternativas para compor sua tese de mestrado. Na ocasião, a professora dissertou sobre os Gabinetes de Leitura, isto é, as primeiras bibliotecas populares mantidas no século passado pela camada média emergente em algumas cidades do interior paulista. Por trás desse singelo e inofensivo aparelho, desvendaram-se propósitos muito mais ambiciosos. "Com os Gabinetes, desejava-se disseminar um pensamento liberal republicano e abolicionista. Era uma iniciativa, ligada à maçonaria, de ilustrar toda uma população desprovida de instrução, uma tentativa de construir o cidadão preconizado pela República." Passados mais de cem anos, a maioria dos gabinetes se perdeu em acervos públicos, apagando-se, inclusive, na memória das cidades. Para resgatá-los, a pesquisadora remexeu arquivos municipais, acervos de antigas bibliotecas do país, antigos jornais guardados por colecionadores e até mesmo registros de lojas maçônicas.
A análise de fontes alternativas ao documento escrito demanda domínio apurado de uma técnica que permita decodificar, dentro de um instrumento maleável, a informação prestimosa. Cada vez mais, as fontes alternativas, ou seja, aquelas que não são oficiais, ganham importância no cenário historiográfico. Assim, atesta a pesquisadora: "A história oral, por exemplo, trabalha com o imaginário do depoente. Quando o especialista utiliza essa fonte, é preciso cotejá-la com os outros recursos disponíveis. No fim, extrai-se a síntese dessa confluência. A importância do depoimento falado está num certo descomprometimento do sujeito comum com possíveis interesses que cercam o evento. A espontaneidade favorece a veracidade".
No mesmo sentido, Nicolau Sevcenko, professor do departamento de História da USP, autor do livro Orfeu Extático na Metrópole, convalida a tese da colega: "A partir da década de 1980, há um reencontro do historiador com as vozes relegadas, com os excluídos do debate político e os alijados do meio social. O documento não-escrito abre as portas para o ingresso dos iletrados no curso da História. O senso comum conceitua a História como um saber que se institui a partir do desenvolvimento da cultura escrita. Esse valor está equivocado. Do ponto de vista político, deve-se levar em consideração que a grande parte da população brasileira não produz cultura escrita. Desprezar essa característica e perpetrar apenas a metodologia calcada no espírito europeu significa desrespeitar a dimensão de povos baseados em outras fontes culturais. Portanto, no caso brasileiro, os pesquisadores precisam se sofisticar no aperfeiçoamento de métodos que respeitem nossa singularidade cultural".
Nicolau exemplifica com os estudos sobre a escravidão, quando quase a totalidade dos documentos vem das mãos dos próprios senhores de escravos. "Sobre a herança dos negros, é preciso lançar mão de fontes alternativas, como a etnomusicologia, por exemplo, que recobra elementos da tradição sagrada africana por meio de símbolos, adereços, música, danças e rituais", enfatiza.
Dentro do seu campo de pesquisa principal, o historiador estuda como as metrópoles modernas destroem os laços comunitários que são a fonte de identidade dos migrantes expulsos das áreas. "O modo como as metrópoles desencadeiam efeitos de aceleração, fragmentação e atomização oprime o imigrante, que se sente inferior, desprezado e com vergonha da sua condição inadequada e ridicularizada." Sendo assim segregados, esses indivíduos tornam-se presas de formas altamente padronizadas de inserção social, especialmente aquelas mediatizadas pela cultura de massa e pelo populismo político.
Segundo Nicolau, a propagação desse sistema encontra nas forças públicas o motor propulsor, pois existe um desejo, constante durante a história brasileira, de homogeneizar as discrepantes culturas que constituem o país, num desrespeito flagrante à individualidade e à singularidade dos grupos sociais. "As autoridades, ao recorrer à mentalidade técnico-científica européia, não percebem que nossa formação é completamente diferente. Essa escolha equivocada enseja um processo endocolonizador, pois quem pratica as propostas inadequadas que não atentam para as diferenças culturais brasileiras é o poder público." O professor prossegue o raciocínio: "Essa situação implica um compromisso de abrir-se para as fontes de cultura popular, de buscar formas de conexão com a base da sociedade, afim de reverberar os múltiplos ecos das vozes que representam as fontes genuínas de uma sociedade e de uma cultura ao mesmo tempo singulares e diversificadas".
Contudo, quando se contempla essa nova História vibrante, sempre arejada e repleta de frescor, torna-se imperioso ponderar um pouco. Embora no discurso teórico a ampliação das fontes permita a busca por novos caminhos e temáticas, a interdisciplinariedade inerente ao processo inovador demanda um grau de conhecimento muito mais abrangente por parte do pesquisador, sob pena de a leveza sedutora presente na Nova História transformar-se em leviandade e desrespeito. Nesse sentido, observa Nachman Falbel, professor de História Medieval do departamento de História da USP e autor de Os Espirituais Franciscanos, entre outros: "Ao tratar com o intercâmbio disciplinar, o cientista precisa ter em mente a necessidade de um esforço muito maior do que se fosse cuidar apenas da metodologia tradicional. Como ele trabalha com áreas de conhecimento e instrumental alheios à sua formação, seu preparo deve ser rigoroso". Graduado em História e Filosofia pela Faculdade Bar-Ilan, em Israel, o professor Nachman travou contato com as escolas inglesa e alemã (em Israel) e francesa (em São Paulo). Balizado nos 40 anos de profissão, o medievalista complementa: "Não adiante o especialista seguir uma proposta multívia, se não houver responsabilidade e honestidade com o seu trabalho. É inegável que a frente aberta pela Nova História implica outras alternativas de enxergar o fato, mas seja qual for a linha metodológica prevalecente, ao historiador cabe se cercar de lastro e seriedade. Ele precisa, a todo momento, guardar consciência das próprias limitações".
Diante de qualquer fonte, o primeiro procedimento do cientista é adotar uma postura crítica e interpretá-la com o filtro da desconfiança. Prossegue o professor: "Não é possível generalizar e nem aplicar juízo valorativo sobre o instrumental disponível. Às vezes, uma fonte tradicional encaixa-se perfeitamente na interpretação de determinado fato histórico. É importante salientar que a metodologia trazida pela nova concepção histórica não invalida as fontes tradicionais".
Mito paulista
Alguém pode supor, com razão, que operar com fontes tradicionais tende a ser mais simples do que debruçar-se sobre um instrumental cujo significado é mediato, ou seja, depende de uma interpretação mais apurada. Tal pensamento é válido, pois o ordinário seriam os documentos oficiais, justamente por serem oficiais, apresentarem-se mais copiosos e organizados. Afinal, são considerados os faróis mais autorizados a iluminar o passado do país.
A realidade, como sempre, não acompanha a teoria. O historiador interessado em evocar os fatos passados terá muita dificuldade, no Brasil e, particularmente, em São Paulo, para acessar documentos antigos. "A escala da cidade de São Paulo torna-a avessa à própria memória. Não existe uma demanda em torno das informações históricas", lamenta Paulo César Garcez Marins, doutorando em História Social na USP e autor do capítulo "Habitação e Vizinhança", publicado no 3o volume da História da Vida Privada no Brasil (Cia. das Letras).
Recentemente, o historiador participou da elaboração do Guia de Documentos Históricos na Cidade de São Paulo, que congregou 1.017 instituições com mais de 50 anos de vida e que possuem algum tipo de acervo documental textual. Na obra, clubes, lojas, associações, sindicatos, instituições religiosas e públicas e escolas foram compilados, somados a um resumo "biográfico" e dados gerais, como telefone, endereço, etc.
No entanto, o trabalho, que deveria contar com o interesse pronto de empresas e do poder público, recebeu cerca de 800 recusas. "Não existe política administrativa que favoreça a gestão de informação. O estado geral do acervo de arquivos tanto públicos como privados é lamentável. Um desmazelo injusto com a grande quantidade de documentos que datam desde a época colonial, quando os arquivos ou eram públicos ou ligados à Igreja Católica, responsável pelos registros de nascimentos e óbitos. Nesse sentido, valeria atentar ao fato de que informações a princípio corriqueiras podem trazer à tona as tensões sociais de um período, além de desmistificar pressupostos. Por exemplo, a idéia geral de que a gripe espanhola, que assolou a população brasileira no começo do século, foi um fenômeno democrático, matando, indistintamente, ricos e pobres, vem por terra quando se confrontam dados obtidos nos arquivos oficiais. Na verdade, estudos recentes mostram que a gripe foi muito mais letal entre a população de baixa renda", explica Paulo.
Infelizmente, grande parte das pessoas não tem consciência da importância de zelar pelos arquivos. Muitos não se enxergam como parte essencial da história, por isso os desprezam. Depois, a atmosfera turva que anuvia nossa elite, desde os tempos coloniais, talvez imponha a necessidade do esquecimento. "O historiador, ao revolver os fatos muitas vezes soterrados pela memória, coloca o dedo na ferida", resume.
Ao exumar uma verdade sedimentada e retificar uma versão adulterada pelo tempo, o pesquisador derruba mitos e implode dogmas. Muitas vezes, com o intuito de promover uma versão mais afeita a interesses sectários, os documentos distorcem os acontecimentos. E a versão mal-ajambrada e casuística prossegue arrebanhando adeptos e corrompendo a realidade. Com a certeza geral já sedimentada, é difícil reconduzir os fatos ao seu curso normal, pois corre-se o risco de comprometer um passado que beneficia e escora o poder vigente.
Um caso clássico de revisão histórica tem a ver com o mito paulista. Dos primeiros habitantes da capitania de São Vicente ouvem-se histórias de arrepiar. Segregados que eram do resto da colônia, impuseram algumas barreiras perante os colonizadores das outras regiões (estamos no século 17, quando, de acordo com o historiador Evaldo Cabral de Melo, "brasileiros" eram apenas os traficantes de pau-brasil), como o uso corrente da língua geral, que se desenvolveu em oposição português, com base nas línguas tupi-guarani, com importantes inflexões regionais.
Como representante capital dessa gente, assomam os bandeirantes, símbolo de coragem e bravura, verdadeiros bastiões da conquista do território brasileiro. É isso que se aprende. No entanto, a imagem idílica que acompanha os primeiros paulistas até o dia de hoje não corresponde exatamente à realidade.
É isso que revela o historiador, doutor em História da América Latina pela Universidade de Chicago, John Manuel Monteiro, em sua obra Negros da Terra, publicada em 1994. Nesse trabalho, o professor da Unicamp revela a verdadeira intenção das expedições mato adentro. "Praticamente todas as investidas para o interior tinham o único interesse de cativar índios para forçá-los a trabalhar. E o destino dos indígenas, ao contrário do que se pensa, era as propriedades paulistas e não o comércio com outras localidades. Lá, eles realizavam trabalhos de lavoura e principalmente transportavam produtos do planalto para o mar e vice-versa", explica.
No seu trabalho, o historiador relata, ainda, a relação do índio com o invasor. Revela também o status em que se enquadrava o ""negro da terra". "Eles não eram considerados escravos, mas estavam irremediavelmente vinculados à terra e eram objeto de herança ou de dote. Isso implicava uma presença e uma participação intensa dos índios na sociedade colonial, inclusive como réus, vítimas e autores em processos litigiosos. A presença maciça do elemento indígena indica que na sociedade paulista havia, a exemplo do Nordeste, grande discrepância econômica entre os habitantes: a pobreza não era generalizada e a desigualdade da riqueza imperava", explica John Monteiro.
A chegada dos portugueses transfigurou completamente o relacionamento entre as diferentes etnias. Em Negros da Terra, o autor coloca que as guerras entre grupos tupis possuíam o intuito primordial da vingança, culminando na realização de rituais antropofágicos. Esta característica central da cultura tupi dificultava o trabalho dos jesuítas em seus esforços de catequizar os nativos. Ao mesmo tempo, os colonos também esbarravam nas tradições indígenas em suas tentativas de escravizar os índios. Foi necessário buscar alianças com algumas tribos para que lhes provessem com cativos de guerra. "Diante deste quadro de radicais mudanças, várias lideranças indígenas passaram a participar do circuito que movimentava cativos, até mesmo como alternativa para o resguardo de uma certa autonomia. Esse movimento demonstra que por trás do binômio de oposição branco/índio estendia-se um complexo meandro social, cujas relações não permitem uma única análise", arremata o pesquisador.
A biografia dos bandeirantes ganhou o imaginário paulista durante os anos. De capitania miserável, a região adjudicou-se o posto de locomotiva da nação: São Paulo é o estado motriz, o mais rico, o mais importante. A construção desse ideário acompanhou a produção historiográfica durante os anos e o mito foi chancelado na obra de vários expertos, em especial na produção do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo nos anos de 1920 e 1930. Mesmo nos dias atuais, quando o ideal paulista é revisitado, ainda se preza sobremaneira os antepassados desbravadores. Pois, senão, de que se trata a recuperação do 9 de Julho como feriado estadual? A professora Vavy Pacheco Borges, estudiosa do período e autora do livro O Que é História e Memória Paulista entre outros trabalhos, responde: "É o desejo de manter viva a idéia de que o paulista é o baluarte da liberdade e da democracia. Esses ideais balizaram as estratégias de convencimento durante a Revolução Constitucionalista de 32, cuja data inaugural é 9 de julho. Segundo a propaganda oficial utilizada para arregimentar voluntários, o movimento era insuflado pela nobre razão legalista e democrática. Na realidade, contribuíram para desencadeá-lo inúmeros outros interesses relacionados com a guerra, mas a população foi seduzida pelo seu viés constitucionalista". Entre as outras causas concorriam as tensões sociais, como o medo do comunismo, o receio dos militares no poder, as tensões sociais, a destituição do quadro político paulista e a nomeação do interventor por Getúlio Vargas. Conforme estudos da pesquisadora, o conflito foi uma "sinistra aventura": confrontava de um lado os paulistas despreparados, desarmados e desarticulados; de outro o Exército brasileiro. Em apenas três meses, as forças legalistas capitularam e, apesar de um interregno com a Constituinte em 1934, o Governo decretou o Estado Novo, em 1937. "As estimativas indicam que houve entre 600 a 800 baixas entre os voluntários paulistas (entre 25 e 45 mil soldados)", esclarece.
Talvez seja exagerado aproximar a guerra de 32 e o conflito entre paulistas contra os emboabas (portugueses) no período colonial. Porém, é com alternativas como essas que trabalha o historiador. Seu ofício não é profético. Ele deve buscar no passado as razões que explicam o presente. Ao pesquisar o fato concreto, tece uma interpretação particular sobre o evento. Nessa versão singular, encontra sua interpretação histórica. Porém, o tempo é senhor da História. O passar dos anos e as pesquisas sucessivas devastam teses infalíveis e multiplicam alternativas ao infinito. Cria, de fato, outras verdades tão "irredutíveis" quanto as primeiras, num ciclo helicoidal projetado ao futuro, sempre.
Aconteceu em São Paulo
Ao se analisar a história da saúde pública no Brasil, encontram-se espelhadas algumas características que singularizam a situação geral. "A história das doenças está intimamente vinculada aos movimentos sociais e populacionais", explica a historiadora Yara Monteiro. "A partir desse conhecimento é possível levantar questões que manifestam a condição geral. Por que doenças antigas, extintas em outras regiões, continuam a assolar o país? Por que doenças erradicadas, como o cólera, reaparecem? Por que as doenças típicas de países de Primeiro Mundo, como enfarte, tem alta incidência no Brasil?" A resposta poderia constar dos livros de economia e ciência política. Esclarece a professora: "A convivência entre esses dois tipos de doenças demonstra que vivemos em um país controverso, cheio de contrastes e paradoxos. Em resumo, existe inter-relação entre o processo social brasileiro e o quadro de doenças".
As políticas públicas tornaram-se o objeto de estudo da professora Yara. Em sua tese de doutorado, ela fez uma ampla pesquisa sobre os leprosários que existiram no estado de São Paulo entre 1928 e 1968. A trajetória dessas instituições revela um dos episódios mais absurdos da história médica brasileira: "Durante quarenta anos houve em São Paulo cinco asilos que recebiam os doentes de lepra. Uma vez internadas, essas pessoas eram proibidas de deixar os locais. Havia sobre a lepra um ranço oriundo da Idade Média". Tida como doença altamente contagiosa, o imaginário das pessoas não se dissipou com o tempo. Até hoje é comum ouvirmos anedotas acerca dos portadores do Mal de Hansen, eufemismo criado especialmente para atenuar o preconceito vigente.
"Constatada a moléstia, era expedida uma ordem judicial de busca e apreensão do doente, enviado diretamente para os asilos. Esses locais eram verdadeiras cidadelas, com toda a infra-estrutura necessária: cozinha, oficina, quadras esportivas, cadeia, cinemas etc."
O mais grave é que desde a década de 1930, a comunidade científica internacional admitia que a reclusão não era apropriada para o tratamento da doença, inclusive com a chancela da Liga das Nações, organismo internacional que precedeu a ONU. Sabia-se que o contágio não era assíduo e já existia farmacologia barata e eficaz para conter os sintomas. "Mas os médicos do Departamento Profilático da Lepra renegaram as determinações científicas e mantiveram os asilos por quarenta anos. Segregar os leprosos da sociedade tranqüilizava a opinião pública, carregada de preconceitos, que se sentia segura em não conviver com os infectados. Era uma falsa noção de segurança, pois o Brasil continuava a apresentar uma das mais altas taxas de hanseníase do mundo."
Uma vez encerrados no instituto, os indivíduos passavam o resto de suas vidas sob os cuidados do Estado. Eram proibidos de constituir um advogado por si mesmos. Seus representantes legais eram designados pela Procuradoria dos Portadores de Hanseníase. Os doentes viviam sob uma lei tácita, consignada para ordenar um grupo alheio da sociedade, a exemplo do que ocorre nas penitenciárias. A aproximação desses asilos com campos de concentração nazistas é recorrente no depoimento dos ex-internos, colhidos pela pesquisadora. Em 1962, uma lei federal proibiu o isolamento, mas em São Paulo essa prática permaneceu viva por mais oito anos, contrariando a Constituição brasileira. (na foto, banda de internos do leprosário de Cocaes, em Bauru)
Iconografia
1.Jean-Baptiste Debret. Quitandeiras de Diversas Qualidades.In Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Editora Itatiaia, 1985; 2. Henry Chamberlain: Negros de Ganho, Views and Costumes of the City and Neighbourhood of Rio de Janeiro, Brazil. Londres, Thomas M'Lean, 1822. Biblioteca de Guita e José Mindlin (foto: Lúcia Loeb); 3. Fotografia de Militão de Azevedo, c. 1870. In. O Olhar Europeu - o Negor na Iconografia Brasileira do Século XIX, Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro, Edusp; 4. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional (foto: Rômulo Fialdini); 5. Código Criminal do Império do Brazil. Rio de Janeiro, 1831. Biblioteca de Guita e José Mindlin (foto: Lúcia Loeb); 6. Jean- Baptiste Debret. Negra de Máscara.In Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Editora Itatiaia, 1985; 7. São Paulo - A Symphonia da Metrópole, folheto publicitário, c 1929, Cinemateca Brasileira; 8. Jean- Baptiste Debret. Entrada de São Paulo pelo Caminho do Rio de janeiro. Conventos dos Carmelitas, 1827. Coleção João da Cruz Vicente de Azevedo, São Paulo, publicado em Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX, Ateliê Editorial/Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado (foto: João Luis Musa); 9 e 10. fac-simile de pôster e panfleto da Revolução
Constitucionalista, arvuivo pessoal de Vavy Pacheco Borges; 11. Barão de lowenstern. Um Paulista, c. 1827-1829. In O Barão no Brasil - 1827 - 1829. São Paulo, Gráficos Brunner, 1972, publicado em Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX, Ateliê Editorial/Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado (foto: João Luis Musa); 12. Jean- Baptiste Debret. Pobres Tropeitros Paulistas. In Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Editora Itatiaia, 1985; 13. Óleo de Albert Eckhout, The National Museu of Denmark; 14. Atribuído a Benedito Calixto de Jesus. Fazenda de Café no Vale do Paraíba. Museu Paulista, USP, publicado em Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX, Ateliê Editorial/Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado (foto: Romulo Fialdini); Abertura da matéria: Vigne. Vista da Serra do Mar com o estuário de Santos, c. 1854. Coleção Mário e Beatriz Pimenta de Camargo, São Paulo, publicado em Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX, Ateliê Editorial/Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado (foto: Rômulo Fialdini); Box. Banda do Leprosário de Cocaes, 1936. Acervo do Instituto de Saúde