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Ficção
Onde as Montanhas Dançam


Rubens Figueiredo

A música que eu mais gostava não era música, mas chuva. Não era tanto o chiado macio da água que me agradava, não era tanto o rumor que a chuva levantava do cimento que provocava em mim um repouso. Desde pequena, eu vendia barato para mim mesma a mentira de que aquele som me acalmava, e eu me deixava adormecer com o burburinho da chuva na janela. Mas meu sono era roubado. Eu não o ganhava honestamente.

O que eu gostava naquela música é que ela não exigia o menor esforço. Uma surpresa sem motivo, um improviso dedilhado que o céu concedia de vez em quando. Foi preciso que Augusto partisse para o exterior, foi preciso que deixasse comigo o que era dele para que eu percebesse. Não sei quando Augusto virá, ninguém tem notícia, e os telefonemas à sua procura e à procura de mim também têm sido cada vez mais freqüentes. Respondo que não estou e que ele voltará logo. Mas a impaciência da voz e da língua estrangeira do outro lado começa a se agitar. Sei o que Augusto quer que eu faça, quer que eu tome o que não me pertence. Mas eu não nasci para isso.

Choveu na primeira noite em que voltei a ouvir Augusto tocar em público, depois de alguns anos. Em um palco freqüentado por instrumentistas importantes, Augusto se apresentava acompanhado por três músicos. A platéia, na maior parte composta também de músicos, aplaudia com entusiasmo. Sentiam-se satisfeitos por confirmar os motivos da sua admiração e, ao mesmo tempo, justificar as razões da sua inveja.

Eu tinha sido amiga de Augusto, havíamos começado a estudar juntos, na adolescência, quando morávamos perto um do outro. Pela janela, eu o ouvia estudar seu instrumento, à tarde, do outro lado da rua. Apesar disso, naquela noite fui até lá quase forçada. Fazia algum tempo que eu só via Augusto por alto, o cumprimentava de passagem - algo nos havia afastado um do outro, algo que talvez tivesse a ver com a crescente fama de Augusto. Além disso, estava cansada. Tinha passado o dia gravando músicas para anúncios e podiam me chamar de novo no dia seguinte. Mas, depois das duas primeiras músicas da apresentação de Augusto naquela noite, exclamei:

- Pensei que na nossa geração o melhor fosse o Silveira. Mas o Augusto foi muito além.

Silveira tinha ido para o exterior e era agora uma espécie de lenda, já um pouco apagada pela distância. Mas se havia algum tipo de glória no nosso ofício, ela se exprimia em ir tocar no exterior. Eram bem frouxas as evidências de que essa glória existisse, mas ninguém se empenhava em pôr à prova aquela crença. Era reconfortante pensar que pelo menos lá, em um lugar remoto, alguma coisa devia acontecer, alguma coisa devia existir.

A minha lembrança de Silveira deve ter assustado um pouco mais os amigos em volta da mesa e, por isso, seus aplausos ressoaram com mais estrondo ao final da música. Embora eu soubesse que era um erro, naquele instante acabei pensando: "O Augusto deve estudar o dia inteiro". E, logo depois, um outro engano: "Amanhã vou acordar cedo e estudar o dia todo".

Notei que Augusto, no palco, dirigia o olhar na minha direção. As luzes confundiam tudo. Cores se cruzavam no ar e as sombras disparavam enxames de gafanhotos pelas paredes. No rosto de Augusto, vários rostos deslizavam um sobre o outro, em uma escadaria de testas e narizes, rolando para a escuridão. Tive a impressão de que ele sorria de leve para mim. Sonhei que ele, à distância, estaria aprovando a decisão que eu havia acabado de tomar.

Quando éramos mais novos e mais amigos, Augusto parecia sempre disposto a elogiar minha facilidade em tocar de improviso coisas que ele demoraria dias para executar. Pelo menos, era o que ele dizia e, verdade ou não, o resultado é que eu, na mesma hora, sufocava de vergonha diante dele, por ter tocado aquilo sem sequer notar o que fazia. Caso eu tentasse outra vez, meus dedos travavam, minha mão pesava com os escrúpulos de um ladrão apanhado em flagrante e as notas chegavam a formigar na ponta dos dedos, mas eu me continha e elas não saíam mais do instrumento.

Nas aulas, o professor me repreendia ao ver que eu não tinha praticado os exercícios da semana, e me deixava de lado, passando para o aluno seguinte. Eu concluía que ele estava certo e, no fundo, até agradecia-lhe por agir assim. Augusto muitas vezes me procurava depois da aula, acompanhava-me para me animar, pedia para eu explicar um acorde que tínhamos ouvido num disco e que ele não conseguia descobrir como se formava.

Depois do espetáculo daquela noite, Augusto dedicou a mim uma atenção maior do que era de se esperar. Apresentou-me a músicos famosos, sublinhou meu nome com a ênfase que havia guardado por todos aqueles anos. Depois, sem que ninguém ouvisse, repreendeu-me por insistir em tocar em gravações de publicidade e vinhetas de rádio. Criticou minha teimosia em não levar a música a sério. Em volta, todos o elogiavam, mas achei que seu sorriso ao ouvi-los pesava no rosto com um cansaço estranho.

Minha idéia de acordar cedo para estudar acabou varrida pela sonolência. Quando o despertador tocou, achei que já não era tão cedo assim. Augusto já podia muito bem estar estudando havia meia hora. Concluí que era inútil ir atrás dele e deixei que o sono me carregasse de novo para o fundo. Quando acordei outra vez, demorei demais a afinar o instrumento. Suspeitei de um parafuso, impliquei com uma chave, algum misterioso empenamento na madeira me deixou intrigada por um longo tempo. Inventei umas frases interessantes mas sem seqüência, brinquei com três ou quatro acordes a esmo, até que, no apartamento vizinho, alguém ligou uma lixadeira elétrica. Pus o instrumento de lado e desisti de estudar.

Ao sair do banho, esbarrei num vidro de colônia que caiu, quicou na borda da pia e se fez em pedaços. De repente, notei que o indicador da mão esquerda estava cortado e o talho parecia mais ou menos profundo. O sangue riscou a louça da pia, mas a dor só acudiu em seguida. Eu apertava um pano no dedo, irritada com a minha estupidez, e tive dificuldade em estancar o sangue. Durante um tempo, meus pensamentos ainda giraram às cegas pelo banheiro, mas logo me veio o entendimento, o centro da espiral: com o dedo cortado, não poderia tocar durante dias.

Naquela noite, houve uma segunda apresentação de Augusto. Também tive de ir, pressionada pelos amigos, e era inevitável que a atadura no dedo não chamasse a atenção. Eu tinha feito o curativo às pressas e a gaze formava um calombo exagerado. Através das camadas de gaze, ninguém podia deixar de ver uma sombra avermelhada e viva arder no fundo. Entre meus amigos músicos, aquilo tinha de suscitar sentimentos mais graves do que para a maioria das pessoas. Qualquer coisa que ponha a nu a fragilidade dos dedos acena, para eles, como um mau agouro.

Quase todos que falavam comigo repetiam em tom de lástima que eu teria de ficar vários dias sem tocar e depois outros tantos para recuperar o calo. Já eu olhava com gratidão para o curativo, para o dedo cortado e a vida vermelha, em brasa, que respirava por trás da nuvem de gaze. Depois da apresentação, quando Augusto também lamentou o acidente no meu dedo, eu podia jurar ter visto uma curva de ciúmes, um certo tremor na maneira de Augusto procurar, com os olhos, a chama que vibrava no fundo do curativo.

Foi o corte no dedo que deu a Augusto a chance de tentar recompor a antiga amizade comigo. Passou a me telefonar bastante. Tornou-se comum almoçarmos juntos e notei que, aos poucos, ele adquiria certas manias alimentares que eu havia desenvolvido ao longo do tempo. Adotou também opiniões e gostos que eram meus e, pensando nisso agora, lembro que chegou a assimilar meu cacoete de ficar enrolando fios de cabelo na ponta dos dedos.

A surpresa foi descobrir que Augusto tinha o hábito de comprar uma revista sobre expedições a países distantes e se detinha na observação das fotografias. Era comum Augusto almoçar com uma dessas revistas abertas ao lado do prato. Ele mastigava devagar, com um movimento de semicírculo da mandíbula, no qual reconheci uma imitação da minha própria maneira de comer. Mas Augusto, a cada garfada, parecia sorver as linhas das montanhas e dos horizontes, agarrar entre os dentes a profundeza dos céus e dos vales, que se estendiam naquelas fotos. Podiam ser florestas, desertos, ilhas, podiam ser cordilheiras azuladas. Eu me contentava em ver naquilo uma distração, não queria admitir que fosse uma confidência.

Por essa época, comecei a ouvir tímidas críticas à maneira de Augusto tocar. Eram raras e sempre cercadas de elogios. Eu ainda não sabia do que estavam falando, mas Augusto devia estar ciente de que uma barreira protetora aos poucos se rompia à sua volta. Os comentários acusavam a presença de fórmulas repetidas, soluções que poderiam se tornar previsíveis demais nas suas apresentações. Nada que outros ótimos músicos também não cometessem o tempo todo. Mas a velocidade da fama de Augusto havia atiçado um incêndio entre os colegas. Já começavam a falar em convites para ele tocar no exterior.

Um dia, Augusto perguntou se eu não queria tocar com ele, de brincadeira, num dos seus ensaios. Só então percebi que meu dedo estava curado, o talho se fechara numa ruga cor-de-rosa. Por mais que eu comprimisse a ponta do dedo, não sentia dor, mas ainda faltava criar o calo. Tentei me esquivar. Porém, nos dias seguintes, os músicos que acompanhavam Augusto me convidaram apenas para assistir ao ensaio, e tanto falaram que acabei indo.

Depois de repetirem as passagens especialmente difíceis, o ensaio tomou um rumo mais descontraído. Um dos músicos sugeriu que eu também tocasse. Os outros insistiram e lembro agora que Augusto foi o único que nada falou naquele momento. Apesar disso, empunhei o instrumento já convencida de que tudo fora idéia de Augusto.

Nas minhas mãos, o instrumento emprestado deu a impressão de se encolher um pouco. Sem calo, meu dedo estranhou a fricção das cordas. Percebi, após alguns minutos, que minha mão corria um pouco mais solta, e logo esqueci o que estava fazendo. A certa altura, a massa da música cresceu. Augusto, com um movimento discreto, recuou para um canto mais sombrio do estrado. Virou-se de lado e, pouco antes de voltar-se para a parede e dar as costas para todos, esboçou, com o ombro e com a ponta do instrumento, um golpe mais profundo contra o ar e contra a sombra, onde achei que ele queria se esconder. Nesse instante, notei que minha mão buscava as cordas com um propósito mais claro. Tive a certeza de que Augusto havia parado de tocar e que sua última nota viera cair na minha mão, como um respingo de chuva.

Dessa nota, derivaram outras. Não muitas, é verdade, mas todas faziam sentido, minha mão parecia tocar sozinha, uma serpente deslizava pelos meus dedos. Assustei-me. Naquele momento, passou pela minha cabeça que aquela era a virtude do bom músico, do artista inspirado. Lembro que me senti feliz, na hora, sem a menor responsabilidade nos ombros. Mas eu era uma boa instrumentista? Por acaso eu tinha inspiração?

Durou só um instante. Logo em seguida, Augusto tomou de volta as notas e prosseguiu sozinho. Tive a sensação de que minha mão travava de repente, tolhida ainda no ar. Enquanto isso, Augusto se afastou da orla de sombra onde havia se retraído, no fundo do palco, e virou-se de novo de frente para os outros.

Passaram algumas semanas sem que Augusto me telefonasse, o que me trazia o alívio de não ter de pensar nele. Augusto afinal me ligou e pediu um favor. Tinha de passar três dias tocando em outra cidade e havia uma obra inacabada no seu apartamento, alguma loucura envolvendo canos e azulejos, no banheiro. Pediu que eu ficasse lá, o tempo que pudesse, enquanto o bombeiro trabalhava. Concordei, mas só depois lembrei que nunca tinha ido à casa dele.

Depois de abrir a porta para o bombeiro e seu ajudante, vi-me sozinha na sala, rodeada pelas coisas que pertencem a Augusto. Segurei um copo, ciente de que era nele que ele bebia. Experimentei entre os dedos uma palheta, sabendo muito bem que Augusto devia tocar com ela e vi que aquele contato era confortável. Chego a lembrar que o chão e as paredes pareciam se moldar em torno de mim com a aderência de uma pele. Creio ter experimentado a sensação de que entrara em um corpo vazio, abandonado. Isso, pouco antes de eu pegar o instrumento de Augusto.

Minha mão deslizou pelas cordas sem fazer ruído, correu pelas curvas da caixa de ressonância e provei o peso do instrumento com um contato familiar. Vi no chão um gravador de oito canais, com uma fita já no ponto. Não me acanhei em ligar o gravador e constatar que a fita tinha livre apenas um dos canais. Nos outros, quatro músicos executavam arranjos esmerados, aguardando somente as intervenções de Augusto, a serem gravadas no canal em branco.

Meus olhos esbarraram numa daquelas revistas de explorações, também no chão, ao lado do meu pé. Enquanto a fita tocava, distingui a imagem de um vale imenso, coberto de neve, guardado, ao fundo, por montanhas que pareciam querer dançar. Um pouco fora de mim, pensei: Augusto está longe daqui. Então, algum nó se desatou no fundo do meu medo e, quando fiz vibrar as cordas do instrumento, vi-me impelida para o alto, no impulso de uma maré desconhecida.

Meio sem pensar, eu havia ligado o gravador. O canal até então limpo naquela fita foi sendo marcado pelas notas que inventei, riscado pelas melodias e acordes que se precipitavam à minha volta, em uma espécie de paisagem móvel, que se ampliava mais e mais.

Sei que não devia ter encostado os dedos no instrumento de Augusto. Mas era isso o que ele queria. Tenho certeza de que havia preparado tudo para mim, naquela sala. Quando Augusto, depois, enviou ele mesmo a fita para o exterior, para aqueles quatro músicos famosos que buscavam um novato de talento a fim de tomar parte de uma excursão por vários países, sabia muito bem que não era ele quem havia tocado. Bastava apagar aquele canal da fita e gravar por cima, tocar ele mesmo, como sabia e podia fazer bem melhor do que eu.

É difícil acreditar, mas dizem que Augusto foi para um país minúsculo, montanhoso, onde as poucas estradas são de cascalho. Uma região cujo nome ninguém garante saber pronunciar, mas que todos afirmam ficar no outro lado do planeta. A voz no telefone disse que logo virá alguém me buscar. Sorte do Augusto, que tinha algum lugar para ir. Quando o estrangeiro vier me levar, o que vou dizer? Como vou explicar? De que modo posso fazê-lo entender que eu não nasci para isso?


Rubens Figueiredo é autor do livro de contos As Palavras Secretas