LAZER NA RUA

Ilustrações: www.marcosgaruti.com
O aumento da violência, os perigos do trânsito e a falta
de espaços adequados nas cidades, principalmente em metrópoles
como São Paulo, fazem com que os pais evitem que seus filhos
se relacionem com o ambiente urbano. Com isso, o convívio social
e as brincadeiras infantis migram das ruas para os locais privados,
como os condomínios fechados. Mas quais são os malefícios
trazidos por essa falta de contato externo? Quais as formas de driblar
os percalços da contemporaneidade para que os filhos possam usufruir
esse espaço de convivência e sociabilização?
Em artigos exclusivos, o doutor em ciências humanas e professor
do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo
(USP) José Guilherme Cantor Magnani e a arquiteta e urbanista
Claudia Oliveira debatem a questão.
A
rua, espaço público como lugar de brincar
por Claudia Oliveira
Por
que tornar a rua um lugar de brincar? A cidade deve fornecer espaços
públicos de lazer, pois todas as crianças têm direito
a saúde, ao lazer, a liberdade e à convivência comunitária.
Elas necessitam do espaço público próximo a suas
casas para poder optar e realizar o lazer no seu tempo disponível,
construir sua autonomia e cidadania.
Em São Paulo, há escassez de espaços públicos
e carência de locais de brincar. Por vezes, o único espaço
público aberto que encontramos próximo às residências
é a rua, que foi invadida por automóveis e pela insegurança;
as calçadas foram ficando menores e esburacadas; e a criança
foi perdendo o seu espaço de brincar. Muitas passam a não
conhecer sua rua, os limites de seu bairro, e não podem circular
livremente pelo entorno de suas casas.
A rua é um espaço público multifuncional que está
indiscriminadamente presente em toda a cidade, é o espaço
que se encontra à porta das casas, rico de oportunidades, dinâmico,
significando sedução, estímulos e descoberta. Precisamos
nos reeducar para poder formar a criança no espaço da
cidade, utilizar a rua, melhorar a qualidade de vida e revitalizar o
tecido urbano degradado.
Hoje as crianças apresentam mudanças na percepção
e exploração dos espaços, pois não os vivenciam.
Muitas crianças que não se movimentam e ficam fechadas
dentro de suas casas se tornam agressivas e individualistas. A falta
de movimento do corpo pode provocar doenças como a obesidade,
que, somada à falta de recreação em espaço
aberto, pode causar no futuro problemas cardíacos e pulmonares.
É no dia-a-dia, experimentando o espaço no tempo, que
a criança vai trabalhando seu corpo e sua mente. A necessidade
de movimento é absolutamente fundamental, sua aprendizagem envolve
força muscular, equilíbrio, agilidade, resistência,
ritmo e sentimentos, como afetividade, medo, espanto. Segundo o doutor
Wallon [WALLON, Henri. Les Ages de l'Enfant Vers une Vie d'Homme. Paris:
Universitaries, 1973], "a criança em desenvolvimento necessita
de movimento, de ação, de gritos, do exercício
de todos os seus aparelhos sensoriais e motores. Toda frustração
de suas necessidades se traduz em fadiga, irritação e
agressividade, entre outras."
No ser humano, o controle dos movimentos é uma das condições
essenciais da autonomia e do equilíbrio pessoal. Graus de equilíbrio
são necessários para que o desenvolvimento da criança
seja bem-sucedido.
Assistindo à televisão ou utilizando o computador, a criança
não partilha suas emoções e não explora
suas possibilidades; são situações, espaços,
tempos diversos da vida real em que trabalha pouco a criatividade, porque
tudo já vem pronto.
A criança em desenvolvimento necessita do exercício de
todos os seus aparelhos sensoriais e motores e de espaço para
brincar e pôr em movimento todos os músculos do corpo numa
desordem útil, que a ginástica e o esporte não
suprem. Os neurônios precisam de determinados estímulos
para desenvolver habilidades como visão, coordenação
motora e linguagem. A falta desses estímulos, no momento adequado,
pode comprometer irreversivelmente a formação da criança.
Ela necessita explorar o espaço de várias formas para
poder, no futuro, possuir diversos registros acumulados para planejar,
executar a ação certa e inventar novas ações
a ser aplicadas a situações inéditas.
A criança, brincando, no espaço externo junto à
natureza, com tempo, liberdade e outras crianças, recebe estímulos
constantes e variados, trabalha e enriquece a sua percepção
do espaço, cria suas próprias regras e limites, e desenvolve
a sua sensibilidade, coordenação motora, imaginação,
mente e criatividade, socializando-se, trocando experiências,
respeitando, criando vínculos com outras crianças e com
adultos de diversas classes sociais, crenças, raças, culturas
e etnias, e aprende a ser solidária.
O espaço lúdico é o caminho mais eficaz para a
aprendizagem: encanta, motiva e desperta na criança a curiosidade
e o desejo de aprender. O contato com a natureza fornece à criança,
dada a sua dinâmica, ritmo e riqueza de informações,
tais como vento, calor, perfumes, cantos dos pássaros, luminosidade,
sombras, coloridos e formas, estímulos constantes à observação,
à exploração, ao aprendizado e à criatividade.
Crianças brincando juntas constituem um potencial para trocas,
convivência, integrações, compartilhamento, diversidades
que se completam. Entre todos os tipos de espaço, é o
espaço público, espaço de todos, que proporciona
uma fonte de estímulos, riquezas, conhecimentos, aprendizados,
inter-relacionamentos, e desempenha um importante papel no processo
de formação da criança.
Elas precisam ter condições para elaborar o próprio
projeto de vida, trabalhar sua auto-estima estimulando o prazer do aprendizado,
sentindo-se valorizadas, e tendo ajuda para poder se afastar das drogas,
das más companhias, sentindo-se dignas e podendo passar a exigir
os seus direitos e cumprir os seus deveres num verdadeiro exercício
de cidadania. Para podermos viver na cidade, num ambiente de uso comum,
precisamos aprender a "conviver", ou seja, "viver com
os outros e no espaço de todos", diminuindo a violência
urbana e a segregação social.
Através do brincar, desenvolve-se o hábito de respeito
ao semelhante e a compreensão dos direitos e deveres da pessoa
humana, possibilitando o desenvolvimento e a reintegração
de crianças, através de atividades que possibilitem a
auto-estima e aquisição de conhecimentos para sua evolução
como cidadãos, na atuação para um mundo mais justo
e humano.
O espaço público, entre outros, a rua, é o espaço
da sociedade, do uso coletivo, do reencontro do homem com a natureza,
da troca de valores das crianças e dos adultos de várias
faixas etárias, raças, crenças, etnias, culturas
e classes sociais, da participação comunitária,
de todos compartilhando um espaço comum e interagindo entre si,
em clima alegre, espontâneo e despretensioso.
A rua é um espaço que se abre ao firmamento, dá
o sentido de liberdade, de movimento, de ação e de transformação,
"o céu em permanente mudança". Como nos diz
Santos e Vogel [SANTOS, Carlos Nelson Ferreira; VOGEL, Arno. Quando
a Rua Vira Casa. Rio de Janeiro: Finep/Ibam, 1981], a riqueza das experiências
possíveis numa rua não pode ser mimetizada por nenhuma
instituição pedagógica, inclusive pela forma de
apreensão não analítica, através da qual
a diversidade social pode ser vista, percebida e compreendida. A rua
é, mesmo, um microcosmo real. É o elemento estruturador
da cidade, muitos olhos podem garantir sua segurança; eles asseguram
que nada passa despercebido. São olhares dos que supervisionam
o espaço que pertence a todos em comum, com a convicção
de intervir e partilhar uma responsabilidade coletiva do lugar dinâmico,
de livre acesso, no qual todos se encontram, universo de múltiplos
eventos e relações.
Mayumi S. Lima [LIMA, Mayumi Souza. A Cidade e a Criança. São
Paulo: Nobel, 1989] já questionava: os espaços da cidade,
como as praças e principalmente as ruas dos bairros da periferia,
poderiam ser pensados para o uso prioritário das crianças
e das famílias e secundário dos carros, tal como ocorre
nos calçadões centrais. A possibilidade da proibição
de carros é aventada quando o interesse é comercial. Por
que não para atender ao interesse das crianças?
Hoje é tempo de conquistar coletivamente e utilizar a rua, o
espaço público que flui pela cidade e lhe dá continuidade,
além de proporcionar elementos para que a criança reconheça
esse espaço como sendo o seu espaço, e se necessário
transformá-la no lugar de brincar.
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CLAUDIA OLIVEIRA
É ARQUITETA, URBANISTA E AUTORA DO LIVRO
O AMBIENTE
URBANO E A FORMAÇÃO DA CRIANÇA (EDITORA ALEPH,
2004)
O pedaço
das crianças
por José Guilherme Cantor Magnani
Nos
tempos que correm é quase automática a relação
entre cidade e perigo; se se trata de uma metrópole como São
Paulo, então, essa vinculação é imediata:
parecem sinônimos. E justamente o espaço que aparece englobando
todo esse perigo é a rua. Esta, no entanto, é o próprio
emblema da cidade: se existe um elemento que melhor a representa, é
a rua. É nela que ocorrem, preferencialmente, as relações
e encontros entre pessoas com experiências, origens e visões
diferentes, e é da troca entre elas que resulta, mais rica, a
cultura urbana. Sem esse tipo de contato, as pessoas ficariam restritas
ao convívio entre os iguais, confinadas ao espaço doméstico.
Essas trocas e relações estão sujeitas a regras
que definem um domínio particular de convivência: o espaço
público.
Essa oposição entre espaço público e espaço
doméstico, bastante conhecida, ganhou novas conotações
a partir do trabalho do antropólogo Roberto da Matta, que a transpôs
para uma fórmula mais concreta: casa versus rua. Cada um desses
termos resume um conjunto de características que se contrapõem,
mas também esclarecem um ao outro. Assim, "casa", que
representa o domínio do privado, é o espaço das
relações de sangue, do contato íntimo, da segurança;
"rua", ao contrário, é o domínio do público,
das oportunidades, dos estranhos, e também do perigo. As crianças
conhecem muito bem essa diferença: "Já pra casa,
menino!" Ou então: "Que está fazendo até
essa hora na rua?"
Entretanto, com base em pesquisas antropológicas que desenvolvi
na periferia da cidade de São Paulo, e depois em regiões
mais centrais, introduzi um terceiro termo nessa relação,
o "pedaço": trata-se de um espaço intermediário
entre a casa e a rua. É quando, de um lado, a casa se abre para
fora e, de outro, a rua se torna mais acolhedora: do encontro, da interseção
entre ambos é que surge o pedaço, vocábulo usual
na linguagem comum, mas que pode ser tratado como uma noção
mais geral, uma categoria que também designa relações,
regras, normas. Assim foi definido, no livro Festa no Pedaço:
"O termo, na realidade, designa aquele espaço intermediário
entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma
sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços
familiares, porém mais densa, significativa e estável
que as relações formais e individualizadas impostas pela
sociedade. Pessoas de pedaços diferentes, ou alguém em
trânsito por um pedaço que não o seu, são
muito cautelosas: o conflito, a hostilidade estão sempre latentes,
pois todo lugar fora do pedaço é aquela parte desconhecida
do mapa e, portanto, do perigo. Para além da soleira da casa,
portanto, não surge repentinamente o resto do mundo. Entre uma
e outro situa-se um espaço de mediação cujos símbolos,
normas e vivências permitem reconhecer as pessoas diferenciando-as,
o que termina por atribuir-lhes uma identidade que pouco tem a ver com
a produzida pela interpelação da sociedade mais ampla
e suas instituições" (MAGNANI, José Guilherme,
Festa no Pedaço. São Paulo: Editora Hucitec, 1998, p.
116-117).
Pelo fato de intermediar os dois domínios, o pedaço apresenta
características de ambos, combinando-as, porém, na forma
de novas regras: da casa reproduz o ambiente de segurança e,
da rua, a novidade, o imprevisto, a possibilidade de contato com pessoas
que não estão vinculadas pelos laços de parentesco.
Os freqüentadores de um pedaço, ou aqueles que podem circular
por ele não são totalmente estranhos. Dessa forma, o pedaço
pode ser considerado uma espécie de transformação,
de abertura da casa em direção ao espaço público,
englobando-o.
É nessa condição que se institui um espaço
privilegiado para o exercício da sociabilidade. No caso das crianças,
é aí que podem iniciar-se, desde cedo, no exercício
da cidadania, pois entram em contato com outro ambiente, com outras
pessoas, precisam conhecer novas regras de convivência, entre
as quais aprender a compartilhar, ceder, negociar... Pode parecer muita
responsabilidade, tarefa de adultos, mas é no ambiente lúdico
que essas regras se internalizam.
Na verdade, isso não constitui nenhuma novidade, os educadores
sabem muito bem. O importante, entretanto, é assinalar que o
pedaço, como uma espécie de modulação da
rua, precisa ser construído. Não está dado, não
foi previsto pelo planejamento urbano, é antes o resultado de
um investimento em termos de presença, uso e criatividade por
parte dos usuários. Na verdade, precisa ser conquistado. Em vez
do movimento de retração em direção ao espaço
fechado, isolado, superprotegido, como resposta à violência,
é preciso fazer com que a rua, o símbolo da convivência
urbana, volte a ser mais segura, hospitaleira e acolhedora. Para isso,
é preciso ocupá-la.
A propósito, cabe aqui o relato de uma experiência, descrita
e analisada por um grupo de alunos meus (Fábio Peixoto, Jade
Percassi, Marina Couto, Sandra Bitar - Infância na Metrópole:
o Tempo Livre das Crianças Que Freqüentam o Projeto Piá,
2001) como trabalho de conclusão da disciplina Pesquisa de Campo
em Antropologia, na USP.
Foi uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Instituto Cactus de
Educação e Cultura, conveniado com a Faculdade de Educação
da USP e Secretaria Municipal de Educação. O que quero
ressaltar não é tanto a atividade pedagógica em
si, muito interessante, mas a forma como as crianças, à
época um grupo de cerca de 20 integrantes, de 2 a 12 anos, se
dirigiam ao local do projeto: provenientes de vários cortiços
da região, encontravam-se na esquina das Ruas Lopes Chaves com
Margarida, na Barra Funda, na Casa de Mário de Andrade. A partir
daí, acompanhadas apenas por uma educadora, percorriam, cantando,
um itinerário pelas ruas do bairro até o Centro Educacional
e Esportivo Raul Tabajara, onde se situa seu pedaço de destino.
O importante a assinalar aqui é a constituição
de um trajeto (outra das categorias que utilizo nas pesquisas sobre
espaço urbano, correlato ao de pedaço) por vias públicas,
numa estratégia que as tornava visíveis, despertando atenção,
curiosidade. À vista daquele bando ruidoso, transeuntes e pessoas
do entorno deixavam, por momentos, suas ocupações habituais
e, das portas ou janelas de seus carros, casas, escritórios e
oficinas, formavam uma ola de vigilância, no estilo que Jane Jacobs
denomina o balé das calçadas, a proteção
a partir dos múltiplos olhares (Vida e Morte de Grandes Cidades,
Martins Fontes, 2003).
Assim, vemos aqui o pedaço no momento da partida ou encontro,
um trajeto, e finalmente o pedaço de destino, na forma de uma
estratégia simples e ao mesmo tempo ousada, instituindo uma verdadeira
experiência de ocupação de ruas e equipamentos públicos
que, ao menos em determinados momentos, foram transformados em espaços
protegidos, acolhedores, mas não confinados, repletos de estímulos
produzidos pela própria dinâmica urbana.
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JOSÉ
GUILHERME CANTOR MAGNANI É DOUTOR EM CIÊNCIAS HUMANAS PELA
FACULDADE
DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (FFLCH) DA UNIVERSIDADE
DE SÃO PAULO
(USP) E PESQUISADOR QUE ATUA NA ÁREA DA ANTROPOLOGIA URBANA,
COM ENFOQUE EM
MODALIDADES DE LAZER, CULTURA E SOCIABILIDADE NA METRÓPOLE
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