O
diretor de teatro alemão Frank Castorf trouxe ao Brasil sua releitura
de
Nelson Rodrigues
O
dramaturgo alemão Frank Castorf nasceu em 1951, em Berlim, na
Alemanha, estudou ciências teatrais na Universidade Humboldt,
na mesma cidade, e em 1976 começou a trabalhar com teatro político
na ex-Alemanha Oriental. Desde 1992, assumiu a direção
artística e a superintendência do Teatro Volksbühne
- considerado o grupo mais importante do teatro contemporâneo
da Alemanha -, também em Berlim. Tendo se apresentado no Brasil
em outras ocasiões, como quando trouxe os espetáculos
Estação Criminal América, releitura de Um Bonde
Chamado Desejo, do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, e
Na Selva das Cidades, de Bertolt Brecht, o diretor desta vez esteve
em cartaz, de 30 de novembro a 10 de dezembro, com Anjo Negro de Nelson
Rodrigues + A Missão de Heiner Müller, que mistura a obra
de 1948 do autor brasileiro com texto de 1979 do alemão. Apresentada
no Sesc Vila Mariana, a peça fala de racismo e inova ao pôr
em cena "personagens negros" sendo interpretados por atores
brancos e vice-versa. Em palestra na mesma unidade no dia 1º de
dezembro, Castorf falou sobre esse trabalho, sua estética e sobre
a importância do traço revolucionário num artista.
A seguir, trechos.
A ESCOLHA POR
NELSON RODRIGUES
Optei por Anjo Negro porque a questão do branco e do negro é
uma contestação em seu extremo. Li a peça e não
sabia se era racista ou não, pode-se ler de forma ambivalente.
É como uma luta antropológica infinita, aquela mulher
branca e o homem negro, que conseguem se libertar de papéis que
se repetem continuamente. É algo bastante fatalista. Pensei que
seria muito bom se colocássemos uma sombra social nesse ponto
central, a questão antropológica da família e aquela
coisa do "olho por olho, dente por dente", do Antigo Testamento
[da Bíblia]. Provavelmente, os brasileiros vão me perguntar
o que estou fazendo com Nelson Rodrigues, que isso não é
da minha conta. Mas é isso que é divertido: descobrir
algo novo. E tentar combinar isso com Heiner Müller foi muito interessante
para mim. Em Anjo Negro, queria criar um novo mundo, um grito, uma música.
E foi interessante como, de repente, Heiner Müller foi executado
no meio de tudo isso. Naturalmente, para mim foi importante o senso
de humor que há na obra de Nelson Rodrigues. No caso dessa peça,
são situações-limite, mas é claro que há
o humor. Sobretudo para os alemães é fundamental, porque
na Alemanha não se ri muito. É bom que a gente possa rir
das coisas como elas são e possa também representá-las
de forma diferente, tornando-as enigmáticas. A gente só
tem uma vida, e dela também faz parte o riso. Por isso, para
nós foi importante colocar uma forma de humor nessas brigas terríveis.
Eu acho que os primeiros seres humanos passaram a se entender melhor
depois que começaram a rir. Pelo menos durante um certo tempo.
DISTÚRBIOS
SOCIAIS
No caso do Nelson Rodrigues, praticamente em uma de cada duas páginas
aparecia a palavra ódio. Isso é uma coisa importante.
Nós reproduzimos um texto de Jean Baudrillard [sociólogo
e filósofo francês] no programa da peça no qual
ele fala sobre ódio em uma entrevista em 1994. Eu já usei
esse texto há uns 12 anos. Foi no início da década
de 90, momento de grandes distúrbios sociais nos subúrbios
de Paris. É claro que já estava pré-formulado,
depois da degringolada do comunismo, que a questão do racismo
e das diferenças religiosas se tornariam muito importantes. Baudrillard
fala nessa entrevista que ele se surpreende com algo que está
escrito em todas as paredes, uma pichação que tem muito
a ver com Rodrigues: "Tenho ódio". Mas não contra
algo, falta o objeto. O ódio se personifica, se subjetiva. Talvez
essa seja a última força negativa e contundente para o
indivíduo sentir a si próprio. Perguntam a Baudrillard
se seria possível que todas essas forças negativas do
ódio se juntassem e criassem um grande ódio internacional,
e ele responde: "Talvez não, porque as forças negativas
não têm a tendência de se solidarizar, mas talvez
possam trabalhar isso".
O texto final de minha encenação não é de
Nelson Rodrigues. Reproduzo Heiner Müller, para quebrar esse círculo
de ódio do qual falei. "Os escravos têm uma pátria,
que é a rebelião, e vou me juntar aos escravos de todas
as raças. E se nós não conseguirmos lutar, se nós
morrermos, haverá a guerra entre as paisagens." E a última
frase é: "Eu sou a África, sou as duas Américas".
Ou seja, é dizer novamente que não é mau que pensemos
de forma social, política e revolucionária. Porque com
isso nós podemos romper com algumas coisas. Mas é preciso
que cada um possa se levantar e dizer que as coisas não estão
boas do jeito que estão. Esse é o final que eu queria.
PALAVRAS PROIBIDAS
Há
poucos meses houve as brigas de rua em Paris. Um outro mundo social
marchou contra a Paris rica. Penso que teremos isso também em
Berlim. É algo que se coloca porque determinadas idéias
não são pronunciadas. A consciência daquilo que
é negro está sublimada em Berlim. Já no interior
da Alemanha, se você tiver a cor de pele "errada" ou
se tiver uma opção sexual diferente da esperada ou, enfim,
se usar os óculos de maneira errada, você verá quão
rapidamente isso pode se transformar em violência direta. A Alemanha
decidiu percorrer o caminho norte-americano do politicamente correto,
proibindo algumas coisas. A palavra negro, por exemplo, é proibida.
Dizemos "de cor" ou "preto", exatamente ao contrário
de como é no Brasil. Mas nos subúrbios de Berlim ninguém
obedece essa regra ou pratica o politicamente correto, as coisas são
diretas e o melhor argumento é um punho fechado.
Nessa medida, há uma moral dupla que Heiner Müller nunca
respeitou. E isso me interessou em Nelson Rodrigues - os ressentimentos
brancos e pretos pronunciados com toda a força. Isso me interessava
por ferir as regras do jogo tanto na Alemanha quanto no Brasil. Temos
de lidar com esses preconceitos que existem maciçamente na sociedade.
E lidar com eles, agressivamente, na arte também, e não
apenas na política e na filosofia. Não se pode encobrir
as coisas, é necessário pronunciá-las, e acho que
isso também é válido para o Brasil. O pior é
quando a gente não pronuncia as coisas que enxerga. Como quando
não se fala para uma criança sobre o fósforo, mas
em algum momento ela vai descobrir o prazer da piromania e vai acender
um fósforo. Então, é melhor falar o que ocorre
na sociedade. E é isso que Nelson Rodrigues faz. Sei que faz
com bastante brutalidade, mas não sei bem de que lado ele está.
Mas, por ele ser ambivalente, posso trabalhar muito bem em termos de
encenação.
EM NOME DA DESOBEDIÊNCIA
Tenho algumas características, não escolhi minha profissão
à toa, podem dizer até que tenho problemas psicopatológicos.
Se eu vejo preto, quero branco, se ouço alto, quero baixo. Isso
é doentio, mas disso surge uma estética. Essa estética
nasceu em um ato solidário da destruição contra
a República Democrática Alemã. Todo mundo me via
como anticomunista, mas nunca fui. Foi quando vim para cá e passei
por experiências muito importantes. Reuni-me com os estudantes
de teatro que criaram um grupo afro-brasileiro. Isso é uma idéia
muito interessante. Também tive experiências em relação
às diferentes reações das pessoas, e para mim isso
está vinculado ao conteúdo de Rodrigues. Ele tem um fatalismo
que não permite que consigamos sair de uma situação
que escolhemos. É quando Heiner Müller e esse grupo de teatro
que mencionei me ajudam. Nós, artistas, temos de manter um traço
revolucionário. Existe disponibilidade de mudança para
os jovens e para os mais velhos também. Se queremos algo, temos
de lutar por ele. Uma das atrizes da companhia é da Suíça
- o centro da riqueza européia -, e eu a converti ao marxismo.
Digo, se não foi ao marxismo ao menos foi à desobediência.
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