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REVISTA E - PORTAL SESCSP



BORIS FAUSTO

 


fotos: Adriana Vichi


Em conversa exclusiva com a Revista E, o historiador e cientista político analisa a trajetória política do Brasil

Doutor e livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP), onde se formou em direito, em 1953, e em história, em 1967, Boris Fausto é historiador, cientista político e autor de diversos livros, nos quais analisa os meandros da história política e social do país. Entre eles, A Revolução de 1930 - Historiografia e História (Editora Brasiliense, 1970), considerado um clássico sobre o assunto.
Em conversa com a Revista E, o professor aposentado do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e atual presidente do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint), que acaba de lançar a biografia Getulio Vargas - O Poder e o Sorriso, pela Companhia das Letras, falou sobre o governo atual, sobre a influência do presidente Getúlio Vargas e sobre o tão alardeado silêncio dos intelectuais acerca do momento político e econômico do país. A seguir, trechos.

Mais uma vez, elegemos um presidente após a redemocratização. Do ponto de vista político, o senhor acredita que uma eleição como essa traga um amadurecimento político da população?
Eu acredito que sim. Acho que quanto mais continuidade tivermos nas eleições, mais se somará para o processo democrático. É um ganho. Com isso, vai se assentando um dos aspectos principais da democracia, que é o voto - apesar de ser um aspecto insuficiente, é um aspecto vital. A continuidade das eleições é um dado, em si mesmo, importante.

 

Em termos de debate político, o que o senhor tem percebido nos assuntos apresentados pelos candidatos? Há um aprofundamento de propostas na sua opinião?
Cada eleição tem sua característica. Do ponto de vista programático, esta última eleição foi uma das mais pobres. Os problemas não foram muito discutidos, em parte por causa da questão da corrupção. A polêmica em torno da corrupção é uma coisa importante. Agora, eliminar ou reduzir a corrupção política no país é também um fato importante, principalmente em um ano eleitoral. Mas, além disso, a discussão ficou pobre. Lutaram muito para ver quem se saía melhor em vez de tentar um aprofundamento maior em certas questões. Mesmo em relação à privatização, um assunto que poderia ter sido objeto de um debate, mas que ficou mal enfocado porque foi apresentado como um mal. De certo modo, o Alckmin [Geraldo Alckmin, candidato, nas últimas eleições, a presidente pelo PSDB] entrou nessa idéia de não privatizar mais. Portanto, estava implícito que a privatização era um mal. Com isso, essa questão entrou na agenda pela via torta. Os outros temas importantes também ficaram de lado, como a reforma política, a questão tributária e a segurança.

 

O período eleitoral é o momento de o país se concentrar nos seus grandes temas? Qual seria o momento de discutir os problemas do Brasil?
Sou descrente da possibilidade de discutir temas a fundo em época de eleição. Acho que quando se faz esse discurso para o eleitor, dizendo que ele vai conhecer os programas e os candidatos, é um marketing das redes de televisão que fazem os debates. Do ponto de vista da realidade, esse é um mau momento. Por exemplo, a questão da previdência é um assunto complicado do ponto de vista eleitoral. Pois votos são perdidos por conta de se dizerem verdades sobre a previdência, mas não é mais possível continuar com os gastos que nós temos nessa área. Ao mesmo tempo em que não é verdade dizer que, com o crescimento do país por meio da criação de mais empregos, eliminaríamos o rombo da previdência. Teria de haver cortes na previdência, certamente. Mas qual é o candidato que vai cometer o suicídio de dizer que vai cortar na carne ganhos no direito da previdência? Porém, não acho que o momento da eleição seja uma farsa, creio que é um bom momento para você ver estilos eleitorais, conhecer um pouco da personalidade dos candidatos, alguma coisa da capacidade de debater. No entanto, para programa não é o momento. Agora, qual é o momento? Acho que são todos. Se tiver um Legislativo funcionando, uma imprensa livre, uma opinião pública razoavelmente informada - ainda que participe limitadamente, mas ela existe nos grandes centros -, o momento são todas as horas. Na realidade, não significa que seja fácil chegar a um acordo em torno de algumas dessas questões. É difícil. Mas eu diria que a pior hora é a campanha eleitoral, porque a campanha é para ganhar, não para discutir programa sério.

 

Em uma democracia com enormes problemas, como é o caso do Brasil, que está mal representada em termos legislativos, que encontra entraves do ponto de vista demográfico e também da própria relação entre os Poderes, quais seriam os espaços para colocar uma agenda de modernidade - por exemplo, os temas que foram postos logo depois do término da ditadura?
Bom, houve uma agenda de modernização em vários aspectos. Eu acho que o programa de privatizações é um aspecto da modernização. Teve problemas aqui e ali, mas no geral é um êxito. Isso só para dar um exemplo. A idéia de responsabilidade fiscal foi um fato aprovado. Tem-se uma série de mudanças nessa linha. É claro que ainda há muitos problemas, mas nunca houve nenhuma legislatura no país tão comprometida, tão objeto de suspeita, tão realmente atingida, como foi essa última. Como mudar isso é um problema complicado. Não é à toa que se procuram fórmulas de aproximação entre o representante e o representado. Muitas vezes, as pessoas até esquecem em quem votaram para deputado ou para outros cargos. Vejo que há coisas que podem melhorar do ponto de vista institucional, como a reforma política e a introdução do voto distrital. Então, esse quadro poderia melhorar. Ou seja, introduzir iniciativas legislativas que levem a uma maior aproximação entre o eleitor e o seu eleito. Agora, há outras medidas que são de longo prazo, como sanar o problema educacional, que é enorme. Essa história de dizer que o eleitor sabe o que faz não é verdade. O eleitor informado - sobretudo, para votar nos representantes da Câmara e do Senado - é uma minoria. É um processo longo.

 

O senhor acha que nunca estivemos tão cônscios da necessidade de democracia? Ou seja, nunca vivemos um período tão sem o perigo de eventuais golpes? Ou essa sensação também havia antes, em 1945, 1946, 1947?
Essa sua observação final foi muito boa porque nós nos esquecemos que fizemos projeções para o futuro que naufragaram completamente. A democracia de 1945 acabou no golpe militar. Não quero dizer que o período que precedeu o golpe de 1964 não tenha valido a pena, mas o período acabou revelando uma tensão de forças e uma incompetência para gerir o problema da continuidade do regime democrático, o que acabou favorecendo a intervenção militar. Então, com essa humilde ressalva de que, às vezes, falamos sobre o futuro sem ter muita certeza do que se trata, acho que hoje podemos dizer que, se a democracia não está consolidada, está pelo menos amadurecendo e corremos menos riscos. Basta dizer que em toda essa luta eleitoral que tivemos, que foi bastante árdua, ninguém cogitou dizer que havia muita insatisfação e que existiam rumores nos quartéis de que o Exército iria intervir. Esse é um ator que desapareceu no sentido político. Eles [os militares] estão desempenhando suas funções e têm seus problemas específicos, mas não têm a pretensão, nem a intenção, de interferir na área política. Então, nesse sentido, nós avançamos, certamente.

 

O senhor acredita que seja uma maturidade da própria população? Tornamo-nos mais democráticos?
Acho que sim, mas é preciso ver quem se tornou mais democrático. Vamos falar de opinião pública letrada - digo opinião pública letrada porque existem certos valores da democracia que interessam muito a pessoas como você e eu, um dos óbvios é a liberdade de expressão. O que significa liberdade de expressão para uma pessoa em condições miseráveis lá do Vale do Jequitinhonha? Nada. Isso não quer dizer que essa pessoa seja inferior a nós, não é isso, mas essa pessoa não teve as condições que nós tivemos. Então, pensando em certos setores da opinião pública, acredito que nos tornamos mais democráticos. Isso porque aconteceu uma coisa que está ligada com o resto do mundo. Por exemplo, quantas ditaduras existiam no pós-guerra mundial? E, hoje, quantas ditaduras existem no mundo ocidental? Então, houve um avanço muito grande. O fim da guerra fria facilitou enormemente o avanço democrático. Primeiro, porque acabou com um dos totalitarismos, que era o soviético. Por outro lado, fez com que os Estados Unidos não embarcassem na política de incentivar ditaduras que eram favoráveis aos interesses norte-americanos no âmbito da própria guerra fria. Esse quadro desapareceu, hoje os problemas são outros: intervenção externa da política americana, o tema da imigração e o terrorismo. No setor político mais informado dos países ocidentais democratizados, sejam eles pobres, sejam ricos, ninguém defende o autoritarismo. Mas tenho dúvidas se isso vale para toda a população. Porque se você pegar pessoas mais carentes e perguntar o que é mais importante, se elas tiverem de escolher entre democracia ou melhores condições de vida, elas vão optar pela segunda alternativa. Enquanto houver esse déficit de pobreza, haverá um problema de legitimidade da democracia.

 

Por que hoje fugimos tanto de pensar o Brasil como um projeto? Hoje em dia, países como China, Rússia e Índia têm modelos econômicos diferenciados, mas cada um deles com a sua vocação de desenvolvimento. Ou seja, onde está aquele projeto de desenvolvimento particular que o Brasil tinha? O senhor acredita que hoje acabamos tendo uma agenda para cumprir uma tabela mais externa do que uma vocação interna nossa?
Acho que aí existem duas coisas. A internacionalização de que você está falando é no plano econômico, e uma agenda internacional é inevitável para o mundo globalizado. Podem gostar ou não, mas hoje o mundo é esse, não há como voltar atrás, não há como ser protecionista e inventar projetos de desenvolvimento autônomo. Todos esses modelos dos países que você citou não estão indo para o desenvolvimento autônomo. A China, então, nem se fala, estão exportando o que podem e o que não podem. Bom, feita essa ressalva, acho que realmente estamos vivendo uma agenda muito fragmentada e tentando resolver questões tópicas. Além disso, os vários governos não dão continuidade aos projetos anteriores. E isso é uma carência.

 

Por que ocorre de um homem como Getúlio Vargas, que morreu há mais de 50 anos, continuar influenciando tanto a vida política de um país que hoje é completamente outro, que se modernizou e onde boa parte da população nasceu depois de sua morte?
Acho que mais curioso do que o caso do Getúlio é o caso do Perón [Juan Domingo Perón, presidente da Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974]. Como o peronismo se mantém na Argentina e serve para tudo? Você pega aquela garrafa que é o peronismo e põe tudo quanto é rótulo. No caso do Getúlio, eu discordo um pouco. Acredito que são menos idéias que permanecem, o que fica mais é a simbolização. E creio que a simbolização permanece com justiça. Primeiro, porque Getúlio foi uma figura que governou muito tempo. Mas aí você poderia dizer que ele foi um tirano, e que deveria ser um contramito e não um mito positivo - positivo para boa parte da população, não para todo mundo, mas, enfim, por várias razões ele se tornou um mito positivo. Primeiro porque havia um projeto de desenvolvimento autônomo que, em linhas gerais, foi propício e adequado para aquela época. Os anos de Getúlio representaram um salto muito grande e isso de alguma maneira fica na memória como uma lembrança de um passado em que houve progresso. A outra coisa é a força simbólica da legislação trabalhista. E aí realmente há problemas e avanços. O problema é que o Getúlio montou uma estrutura corporativa e autoritária do sindicalismo, o que permanece até hoje. Acredito que a cultura do núcleo duro do PT tem muito a ver com o centro desse sindicalismo que foi autoritário. Esse é um legado do getulismo, e é muito ruim. Mas, por sua vez, ele também criou uma legislação trabalhista em um país no qual a classe trabalhadora não tinha direito algum. Isso marca profundamente o Brasil. Agora, qual é o lado mais negativo do Getúlio? É justamente a negação da democracia, do chamado primeiro governo. Era uma convicção pessoal do presidente [Getúlio], ele não gostava de democracia, ele se dava mal no regime democrático e na contradição de forças. Tanto que o caso de 1954 [o atentado ao jornalista Carlos Lacerda, em que morreu um oficial da Aeronáutica] mostra em parte isso, apesar de não ter sido culpa dele [de Getúlio Vargas]. Mas aí há a incapacidade dele de lidar com diferentes forças políticas de uma sociedade democrática, na qual as pessoas e os partidos se expressam, na qual o Congresso vota, veta, aprova e desaprova. Outra coisa a ser analisada são os artigos que saíram, por ocasião dos 50 anos de sua morte, em 2004. Claramente, os artigos de louvação são em bem maior número do que os artigos de denúncia e crítica, pouco se falou sobre as torturas, a entrega de Olga [Olga Benário Prestes, judia alemã e militante comunista morta pelo regime nazista num campo de extermínio, casada com o brasileiro Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)] aos nazistas e uma série de outras coisas do tipo.

 

O senhor acha que o governo atual teria certa simpatia pelo governo militar, tanto no discurso quanto na prática, no que diz respeito às respostas aos problemas econômicos? Por exemplo, a "demonização" da privatização, de uma certa maneira, levantou essa questão.
Acho que você tem razão, volta e meia se tem uma referência explícita aos êxitos do regime militar. E até o presidente Lula disse que precisávamos reconhecer isso. Então, acho que há um certo saudosismo que, na verdade, é mais retórico do que prático. Vamos ver agora no segundo mandato esse nacional-desenvolvimentismo e uma certa saudade das altas taxas de crescimento. E, como cidadãos, todos nós queremos altas taxas de crescimento. Esperamos que encontrem os caminhos disso.

 

Getúlio Vargas procurava vender a imagem de "pai dos pobres". E, de fato, teve atos de governo voltados para a população das camadas mais baixas. O senhor acha que essa evocação da figura do pai continua permeando a política brasileira, no sentido psicológico e também no sentido populista da questão? Por que isso ocorre? Seria uma falta de maturidade política?
Acho que mais uma vez voltamos para o problema da carência. Por exemplo, na vida familiar, a mãe atende a um certo tipo de carência e o pai a um outro tipo. Se fosse uma figura feminina, talvez fosse a grande mãe. Mas as mulheres estão entrando devagar na vida política. Então, essa figura do pai, do ponto de vista psicológico, faz muito sentido, sobretudo em sociedades que necessitam de um atendimento quase de afeto, de proteção. O outro lado é o populismo, que é mais complicado, é um estilo político. O populismo foi uma aliança de classes no passado, hoje não é mais. Hoje, discute-se muito se essa forma de governo é populista ou neopopulista, mas essa discussão vai muito longe.

 

Nestes últimos tempos, tem-se falado do silêncio dos intelectuais no processo político brasileiro. Em termos históricos, já ocorreu isso antes na história brasileira, esse silêncio estratégico?
Eu definiria esse silêncio como uma coisa que pode ser estratégica, mas em outros casos é a demonstração de embaraço. Há pessoas que tiveram um enorme espanto e sofreram uma enorme decepção com este governo. Então, preferem se recolher ao silêncio e pensar. Agora, em relação ao silêncio estratégico, não me lembro de outra época em que isso tenha acontecido. Até porque o estrato intelectual, algo que tenha densidade social, é um fenômeno relativamente novo no Brasil. Não quero dizer que nós não tivemos intelectuais de peso e de influência em vários momentos. Mas um estrato social formado por intelectuais, abrangendo um grande leque de jornalistas também, pessoas recém-formadas das universidades, na proporção que temos hoje, é um fenômeno novo. Não me lembro de outra situação semelhante.

 

E na época do João Goulart, o Jango, que foi presidente de 1961 a 1964?
Acho que não. Agora, estou me lembrando de uma coisa - e não digo que as análises eram certas ou erradas -, mas o que aconteceu é que a intelectualidade acompanhou certas formulações que não funcionaram, inclusive as que eu fiz. Fui responsável por certas formulações que não funcionaram, como o papel da burguesia nacional e o desenvolvimentismo. Ou, melhor, funcionaram durante um certo tempo, mas acabaram no golpe militar. Inclusive, um golpe militar sem resistência. E, mais do que isso, apoiado pela classe média, o que deu legitimidade a ele. Uma coisa é o AI-5 [Ato Institucional nº 5, decretado pelo presidente Arthur da Costa e Silva, que deu ao regime militar poderes absolutos e cuja primeira e maior conseqüência foi o fechamento do Congresso Nacional], em 1968, outra é o golpe em 64. Nessa fase, a intelectualidade foi surpreendida, foi um susto para todo mundo, ninguém disse: "Vamos para o golpe". Mas houve uma tentativa de explicar o que estava acontecendo, de uma forma mais ou menos rápida. Já, na atualidade, depende de quem estejamos falando. Modestamente, eu nunca procurei entender tanto e participar tanto de política como agora, não na rua, mas no escrito. Acho que o problema da decepção com o PT marcou muito. Mas essa história do silêncio dos intelectuais é relativa, veja uma pessoa como o Chico Oliveira, ele se decepcionou com o PT e construiu uma teoria sobre o que está acontecendo. Nessa teoria, ele fala de um novo estrato social, baseado nos fundos de pensão e nos fundos públicos, uma espécie de "nova classe emergente dominante". Também fala da irrelevância da política enquanto política. Em geral, discordo das idéias dele, mas aí está um intelectual que está formulando idéias. Agora, também há outras pessoas que não querem falar porque a mídia distorce suas palavras. No entanto, essa é uma justificativa pobre, porque não é necessário dar entrevista, basta escrever.

 

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