
por
Mauricio Trindade da Silva
Ao entrar na área
cultural, mantive um princípio que me acompanha desde jovem:
criar condições efetivas de mudança da sociedade,
tornando-a mais justa, digna e sustentável. Colocada assim, essa
intenção parece transitar entre uma atitude simples e
outra "heróica" (como se eu fosse "o" detentor
ou causador do processo de mudança). É claro, isso não
se permite definir de forma polarizada; todos nós estamos aí
implicados. Esse sentido de mudar a sociedade é uma atitude ética
que surge cada vez mais aliada a um valor absoluto (muitas vezes assumido
em grupo ou individualmente), e ambos assegurarão a nossa existência
enquanto seres humanos. Por conseguinte, tal atitude leva em conta a
importância da mediação, ou seja, da relação
humana com outros indivíduos e com tudo aquilo que se encontra
no intermédio, referenciado a nossos atos, pensamentos, compreensão
e responsabilidades, num itinerário complexo, em que os meios
e os objetivos são igualmente importantes no caminho para a obtenção
de resultados. Convido-o então, caro leitor, a me acompanhar
nesta reflexão - que também faço agora - sobre
mudar a sociedade, atuando no campo imprescindível da ação
cultural.
Começo por um exemplo de programação realizada
no Sesc Birigüi, onde iniciei meus trabalhos. Propusemos um mês
temático no recorte da literatura de cordel, que remonta à
Europa do século 16 e chegou ao Nordeste por volta do século
19, popularizando-se. Ricos em lendas e personagens, os textos reúnem
temas culinários e folclóricos, técnicas específicas,
como a xilogravura, para ilustrar os textos, e fatos cotidianos sobre
modos de ser. Agendamos eventos teatrais para adultos e crianças,
shows, espetáculo de dança, exibição de
filmes, oficinas, exposição de xilogravuras e de cordéis
e palestra. A participação do público foi surpreendente.
Isso que me leva às seguintes questões:
o Entre um evento e o público que o prestigiará, há
um processo definidor, figurado como mediação (relativo
aos propósitos da instituição, à atuação
do animador cultural, à proposta dos artistas etc.). No caso
do cordel, a mediação tinha um caráter plural e
colocava-se de forma a permitir o entendimento de todos quanto ao que
viram e praticaram.
o Uma manifestação cultural pode ser analisada como forma
de significação e revelação acerca de tudo
o que dá vida a uma sociedade. O universo do cordel fornece tensões
e hábitos que mostram a cultura naquilo que ela é: uma
"relação de causalidade" - embora nem sempre
de efeito contínuo e linear - entre o homem e seu meio, mostrando
que um depende e faz parte do outro.
o Na idéia de cultura está o reconhecimento de que este
nosso mundo - sociocultural, psicossocial, político, econômico,
em suma, histórico - se articula dialeticamente, isto é,
por meio da lógica de ação dos homens, em relações
mutáveis, contraditórias, envolvendo atividades físicas
e simbólicas, a prática cotidiana e a teoria, por demandas
individuais e coletivas/subjetivas e objetivas. Tal é a complexidade
que nos circunscreve.
o O incentivo às artes, a abertura para o debate de idéias,
o apoio à pesquisa e aos projetos de vanguarda (fora de uma lógica
instrumental, porque a cultura também é "útil"
quando tida por inútil) são operadores radicais de transformação,
pois se vinculam a nossa prática (nossa atuação
no mundo), a nossa reflexão, e à reflexão sobre
a prática. Hoje há maior intercâmbio entre as ciências
(no contexto da explicação e compreensão da realidade)
e as artes (no contexto da revelação da realidade). E
unir forças é fundamental. A interpolação
ciências-artes resulta em uma revolução nucleadora
de novas interrogações - e de entendimentos - sobre a
sociedade e o mundo. Assim, podemos olhar com novos olhos aquilo que
até então parecia comum, simples, naturalizado.
Pensando em tal atitude e em você, caro leitor, espero que este
texto levante questões e permita "aclarar as loucuras"
(como brinca o poeta Manoel de Barros) - questões que, ao nos
devorar internamente, possam nos tornar um outro cada vez melhor.
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MAURICIO TRINDADE
DA SILVA, MESTRE EM SOCIOLOGIA
DA CULTURA PELA USP, É ANIMADOR CULTURAL NA GERÊNCIA DE
ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO DO SESC SÃO PAULO
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