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Cultura

REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

Arte da devoração

 

O movimento antropofágico, representante do modernismo no final da década de 1920, queria deglutir o mundo para encontrar o Brasil

 

"Só a Antropofagia nos une." A frase que abre o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade em 1928, sintetiza o movimento que lançou um novo olhar para as artes e a cultura brasileira no final da década de 1920. A carta de intenções conclamava artistas e intelectuais a uma reação "contra todos os importadores de consciência enlatada". Tome-se por isso uma elite que preferia contabilizar a herança cultural européia em detrimento dos valores que se escondiam em cada canto da história do Brasil. "(...) O índio era europeizado nas virtudes e costumes (...); a mestiçagem era ignorada; a paisagem, amaneirada", escreve o crítico literário Antonio Candido no livro Literatura e Sociedade, de 1965 (Publifolha, 2000), descrevendo a mentalidade da época.
Para Oswald e outras personalidades que repudiavam a velha postura, a resposta a essa visão míope do Brasil não era a simples negação das influências externas, mas sim uma assimilação voraz delas. Uma eterna busca pelo universal e uma insaciável "fome" de tudo que era novo. Daí a idéia da antropofagia. Deglutir em vez de engolir inteiro. "A antropofagia, do ponto de vista do Oswald, é metafórica", esclarece a professora do Departamento de Teoria Literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Maria Augusta Fonseca, estudiosa da obra de Oswald de Andrade. "E ele, Oswald, fazia distinção entre canibalismo e antropofagia - uma distinção dele, nada de antropológico. Ele dizia que o canibal é aquele que come por comer e o antropófago é aquele que come para assimilar as virtudes do outro. Ou seja, eu assimilo o que é bom e rejeito o que é ruim, que é o próprio processo orgânico nosso."

 

Independência artística
Mesmo tendo uma "certidão de nascimento" datada de 1928, o movimento antropofágico surgiu como fruto de reflexões artísticas e intelectuais anteriores. Uma trajetória que teve início com o movimento modernista, ainda na primeira década do século 20. Um dos marcos foi a conturbada exposição da artista plástica Anita Malfatti, em 1917. A mostra reunia trabalhos de uma jovem recém-chegada da Europa e cheia de idéias na bagagem. Como resultado, teve início uma polêmica entre os que viam na expressão de vanguarda o futuro das manifestações artísticas e aqueles que defendiam os padrões estabelecidos. Um choque que levou o escritor Monteiro Lobato a fazer uma dura crítica à exposição de Anita, intitulada Paranóia ou Mistificação, publicada no jornal O Estado de S.Paulo em dezembro daquele ano. No texto, Lobato deixava clara sua repulsa a uma arte que, segundo ele, via "anormalmente a natureza". A resposta não demorou. Nos anos que se seguiram ao fato, o coro dos vanguardistas brasileiros engrossou, ganhando nomes de peso, como o escritor Mário de Andrade, a pintora Tarsila do Amaral e o próprio Oswald. Em 1922, ano em que se comemorava o centenário da Independência do Brasil, o grupo - acompanhado ainda pelo compositor e maestro Heitor Villa-Lobos e pelo pintor Di Cavalcanti, entre outros - realizou a Semana de Arte Moderna, propondo uma personalidade própria a um país que celebrava seus 100 anos de liberdade da colonização. "A pergunta era: e nossa independência cultural e artística?", explica a professora Maria Augusta. "Depois de 1922, essas questões todas vão fazer parte de um processo em que grupos vão se formando, se juntando, e as tendências vão aparecendo. Trata-se de algo que veio amadurecendo até chegar a 1928." A pesquisadora apresenta ainda outras datas importantes, e que antecedem o Manifesto Antropófago. "Em 1924, Oswald de Andrade lança o Manifesto da Poesia Pau Brasil [no jornal carioca Correio da Manhã] e, em 1925, a poesia Pau Brasil, que já tem elementos de uma reflexão sobre a cultura brasileira". Um exemplo dessa fermentação aparece no poema falação, parte da poesia Pau Brasil e que é inspirado no manifesto de mesmo nome. Nele Oswald já exalta "A formação étnica rica. A riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança".

 

Vanguardas e rãs
Em 11 de janeiro de 1928, aniversário de 38 anos de Oswald, o escritor se reuniu com Tarsila do Amaral e o também escritor Raul Bopp para comemorar a data em um restaurante no bairro do Brás, Zona Leste São Paulo. Naquela noite, Oswald ganhou um quadro de Tarsila. Um presente que caiu como uma semente no terreno fértil de idéias que os modernistas já vinham cultivando. "Era o famoso Abaporu, que ainda não tinha nome", explica Maria Augusta. "Eles olharam para aquela pintura e disseram que parecia um homem sugando a terra, um homem que come a terra. Depois eles foram até o dicionário do Montoya [Antonio Ruiz de Montoya], um dicionário da língua tupi, e viram o que significavam os termos: aba, o homem, e poru, que come. Daí Abaporu." Ainda segundo a professora, as associações não pararam por aí naquela noite. Como o prato pedido foi pernas de rãs, os amigos iniciaram uma brincadeira sobre anfíbios e a origem da vida e do homem. A brincadeira virou discussão e a discussão tomou fôlego. "Oswald e Bopp começam a articular um movimento em torno da antropofagia", declara Maria Augusta.
O movimento, no entanto, não se sustentou apenas sobre as frágeis pernas das rãs. No caldeirão de Oswald e cia. houve espaço também para as vanguardas européias. Movimentos como o futurismo, do escritor italiano Marinetti, o cubismo, do pintor catalão Pablo Picasso e do escritor francês Apollinaire, o dadaísmo, do pintor, também francês, Francis Picabia e do escritor romeno Tristan Tzara, e o surrealismo, do escritor francês André Breton, e que tem o pintor espanhol Salvador Dalí como um dos maiores expoentes, todos voltados para romper com um modelo artístico europeu desgastado pelos séculos de história do continente. "Oswald teve contato com toda a vanguarda européia", diz Maria Augusta. "Só que aqui, se percebeu na época, havia ainda uma particularidade que lá não existia. Enquanto Picasso vai buscar [inspiração] nas máscaras africanas - uma pesquisa com um dado de exotismo do europeu buscando o que é novo -, nós temos tudo isso [a diversidade] aqui. Nós temos essa contradição, temos muitos tempos acontecendo no mesmo tempo." Segundo a pesquisadora, é isso que Tarsila trouxe para sua pintura, Oswald para a poesia Pau Brasil e Mário de Andrade captou em Macunaíma. Ou, como observa o crítico literário Antonio Candido: "As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi [Constantin Brancusi, escultor romeno], um Max Jacob [poeta, pintor, escritor e crítico judeu-francês], um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles [dos europeus]".

 

 

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Saiba mais

Antropofagia Oswaldiana - Um Receituário Estético e Científico (Editora AnnaBlume, 2004), de Adriano Bitarães Netto

Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro (Editora Vozes, 2006), de Gilberto Mendonça Teles

Literatura e Sociedade (Publifolha, 2000), de Antonio Candido

Pau Brasil (Editora Globo, 2000), de Oswald de Andrade

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Banquete cultural
A antropofagia e o modernismo são temáticas freqüentes na programação do Sesc São Paulo


Em 2007, ocasião em que a Semana de Arte Moderna completa 85 anos, a antropofagia e o modernismo estiveram em evidência na programação do Sesc São Paulo com a realização do Especial Modernismo, no Sesc Pinheiros, de 13 a 27 de maio, e do projeto Teatro e Devoração - Do Canibalismo à Antropofagia, na unidade provisória Sesc Avenida Paulista (até 27 de maio) e também no Sesc Santana (até 13 de maio). O primeiro reuniu intervenções com imagens de obras modernistas e apresentações de textos sobre a Semana de Arte Moderna para comemorar seus 85 anos. Já o segundo recorreu a teatro, filmes, cursos, oficinas e encontros para trazer à tona a vocação antropófaga do Brasil - sobretudo nas artes. Os destaques do projeto realizado pelo Avenida Paulista e Santana foram os espetáculos teatrais - oportunidades para o público comprovar como o Brasil continua em pleno banquete. Enquanto A Refeição, no Sesc Santana, mostrou três histórias nas quais o canibalismo era usado para entender as relações, afetivas ou artísticas, no mundo contemporâneo, Vëm Vai - O Caminho dos Mortos (foto), em cartaz na unidade provisória Avenida Paulista até 1º de julho, empreende um estudo sobre os mitos de criação da morte nas culturas ameríndias, ou seja, entre os povos indígenas das Américas.
No entanto, a temática não é recente na programação das unidades do Sesc São Paulo. Só nos últimos dez anos, diversos eventos, projetos e espetáculos tiveram como ponto de partida as idéias revolucionárias dos modernistas e dos "antropófagos" que ajudaram a moldar as diversas facetas das artes brasileiras. Ainda em 1997, o evento multicultural Babel, que reunia dança, teatro e artes plásticas, ocupou o espaço onde anos depois viria a ser erguida a unidade Pinheiros. Dois anos mais tarde, o Sesc Belenzinho realizou o projeto Coração dos Outros - Saravá, Mário de Andrade, que mostrou a variedade constitutiva da realidade brasileira - ressaltada pelo autor de Macunaíma em sua narrativa - numa grande exposição. Mário de Andrade e os outros modernistas foram o tema também do musical 22, Antes e Depois, que comemorou, em 2002, no Sesc Ipiranga, os 80 anos da Semana de Arte Moderna. Já em 2004, foi realizado, no Sesc Pompéia, o Encontro Internacional de Antropofagia! (EIA!), evento que teve a participação do diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa.

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Gênio indomável
Casamentos, iconoclastia e a carismática figura de Oswald de Andrade

 

Ao passo que o amigo Mário de Andrade era um homem tímido, extremamente discreto e reservado, Oswald (Oswáld, com acento tônico no "a", como ensina o crítico literário Antonio Candido) fazia questão de ser exatamente o inverso. Gozador, sarcástico e mesmo quase excêntrico, o autor do Manifesto Antropófago agia sempre como quem quisesse que o circo pegasse fogo. "Oswald nos tratava bem e ao mesmo tempo fazia troça de nós, como era seu hábito", conta Candido - que conheceu o escritor em 1940 - no livro Vários Escritos (Editora Duas Cidades, 1995), editado pela primeira vez em 1970. "Inventando diversas piadas e nos pondo o apelido de 'chato-boys' (...) porque, segundo ele, estudiosos, bem comportados, sérios demais antes do tempo."
José Oswald de Souza Andrade nasceu no dia 11 de janeiro de 1890 numa família abastada - fundadores do estado do Pará por parte de mãe e fazendeiros mineiros por parte de pai. A condição privilegiada, no entanto, não o impediu de colocar na berlinda, por meio de sua obra e ações, a própria elite à qual pertencia. "Oswald riu da classe de que ele fazia parte, ele era crítico em relação também a si mesmo", diz a professora de teoria literária Maria Augusta Fonseca, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). "Dona Inês [mãe de Oswald] fazia questão de que eu tivesse um título", ele escreve na autobiografia Um Homem Sem Profissão (que permaneceu incompleta, mas tem versão agregada de comentários e ensaios em volume publicado pela Editora Globo, em 2000). "Pobre mãe que ignorava a vocação de irregularidade e de sublevação de seu filho, inconformado sempre, sempre inimigo dos diplomas e das posições." O caráter inconstante de Oswald de Andrade transparecia também em sua vida pessoal. Foram muitas as esposas, por exemplo. Em 1919, casa-se com a normalista Maria de Lourdes Castro Dolzani, conhecida como Miss Cyclone, em condições extremas: a jovem de 17 anos estava à beira da morte em um hospital. A partir de 1924 passa a morar com a pintora Tarsila do Amaral, com quem se casa em 1926. Quatro anos depois, é a vez da artista e militante política Patrícia Galvão, a Pagu, com quem ficou por um ano e teve Rudá, seu segundo filho - irmão de Nonê (Oswald de Andrade Filho), fruto de sua relação com a francesa Kamiá. Em 1936, casa-se com a filha de fazendeiros Julieta Bárbara Guerrini. O casamento dessa vez dura seis anos. No mesmo ano em que se separa de Julieta Bárbara, conhece Maria Antonieta D'Alkmin, com quem se casa em 1943, e tem os filhos Antonieta Marília de Oswald de Andrade e Paulo Marcos Alkmin de Andrade.
Com os amigos era generoso, porém implacável: podia "perder o amigo, mas não perdia a piada", costumava dizer. Em 1929, por exemplo, rompeu com Mário de Andrade - por motivos que ambos levaram para o túmulo. Os dois nunca mais se falaram, embora não por falta de tentativas de Oswald que "era capaz de dizer as últimas de alguém que incorresse no seu desprazer", como conta Antonio Candido em Vários Escritos. "Mas dali a pouco esquecia tudo e achava de novo excelente a mesma pessoa (...)". A desavença com o amigo modernista, no entanto, lhe custou caro. O comportamento liso de Mário selou o silêncio da amizade até sua morte, recebida por Oswald com o desespero. Antonio Candido conta o episódio: "Oswald (...) lia os jornais (...) no salão do hotel quando ela [a mulher, Maria Antonieta] o viu, de repente, atirar-se sobre o sofá em frente com um grito surdo, amarfanhado o jornal no peito e chorando convulsivamente. Era a notícia da morte de Mário". Oswald de Andrade morreu em outubro de 1954 deixando uma vasta obra composta de memórias, artigos de jornal, poesias, peças de teatro, manifestos e mais de uma dezena de livros.


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Futurismo
Movimento estético surgido na França e na Itália, em 1905, que cultuava a máquina, a velocidade e a automatização da vida cotidiana dos novos tempos. O futurismo pregava também uma ruptura com os meios tradicionais de relacionar as palavras em um período.

Cubismo
Surgido na França por volta de 1907, o cubismo propunha a decomposição das imagens em figuras geométricas, representando todas as partes de um objeto no mesmo plano. Um dos mais famosos artistas a produzir obras cubistas foi o catalão Pablo Picasso.

Dadaísmo
Também conhecido como movimento dadá, foi criado na cidade suíça de Zurique, em 1916, por um grupo de escritores e artistas plásticos que se opunham à Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918). Embora a palavra dada em francês signifique cavalo de brinquedo, sua utilização marca a falta de sentido que a linguagem ?pode ter.

Surrealismo
Surgido na França, em 1924, é considerado o último movimento das chamadas vanguardas européias. Sua principal característica é a combinação do representativo, do abstrato e do psicológico - sobretudo, as imagens desconexas dos sonhos. Até hoje, usa-se o termo "surreal" para designar o que parece absurdo ou irreal.

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Mais lugares no banquete

A antropofagia e outros momentos importantes nas artes brasileiras

A devoração de fontes externas proposta no Manifesto Antropófago que Oswald de Andrade escreveu em 1928 deixou uma marca indelével na maneira de o Brasil enxergar sua cultura e dialogar com a produção que vem de fora. Outros movimentos importantes para a formação do repertório artístico brasileiro beberam de fontes modernistas e antropofágicas - ainda que não seja possível declarar uma descendência direta. "Se falarmos em 'certa ligação', eu posso dizer que existe um filão que vai se desdobrando", afirma a professora do Departamento de Teoria Literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Maria Augusta Fonseca. Entre esses "primos distantes", eis alguns destaques:

 

No cinema - A aproximação entre o cinema novo, movimento encabeçado pelo cineasta Glauber Rocha, e a antropofagia tem como melhor representante a adaptação para o cinema da obra Macunaíma, do modernista Mário de Andrade. O filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, reproduziu nas telas boa parte do espírito de diversidade que Mário imprimiu à saga do "herói sem nenhum caráter". A cena da feijoada é um dos exemplos.

 

 

 

 

 

 

 

Na música - O tropicalismo liderado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e pela banda Os Mutantes, no final da década de 60, explicita sua relação com as idéias de Oswald de Andrade em diversas letras. Uma das que mais entregam o ouro é Geléia Geral, de Gil e Torquato. A canção diz a certa altura: "A alegria é a prova dos nove", frase que está no Manifesto Antropófago.

 

 

 

 

 

 

Teatro - Oswald de Andrade, além de escritor e "antropófago", era também dramaturgo. Uma de suas peças que mais se fizeram conhecer foi O Rei da Vela, publicada em 1937 e levada ao palco (foto) do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, 30 anos depois.





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