RELEITURAS DO MITO
Em visita ao Brasil para o lançamento de um livro de relatos sobre o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, o escritor Mac Maharaj fala de racismo e liberdade
"A África do Sul e o Brasil têm muito em comum, notadamente o orgulho de suas tradições de resistência à opressão, uma longa luta contra o colonialismo e o compromisso com a democracia." Esse é um trecho da carta enviada pelo ex-presidente da África do Sul e Prêmio Nobel da Paz, Nelson Mandela, aos organizadores do lançamento do livro Mandela: Retrato Autorizado (Editora Alles Trade, 2007), realizado no Sesc Pinheiros, em 28 de março. A ocasião contou com a presença do escritor, amigo pessoal de Mandela e organizador da obra, Mac Maharaj, que ministrou a palestra O Homem e o Mito, na qual tratou de temas relacionados a seu envolvimento como parceiro de Mandela e aos processos de liberdade e luta na África do Sul. Maharaj foi fundador do partido do ex-presidente sul-africano e desempenhou papel fundamental no Movimento Anti-Apartheid - que pôs fim ao regime político que institucionalizava a discriminação racial no país e que vigorou de 1948 a 1990. Companheiro de prisão de Mandela durante seus 27 anos de cárcere, o autor ocupou também o cargo de ministro dos Transportes na presidência do colega de luta, gestão que durou de 1994 a 1999. A seguir, trechos da palestra do escritor, apresentada pela professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Leila Leite Hernandez.
Complexidade humana
O livro contém relatos baseados em entrevistas com 60 pessoas ao redor do mundo. Esses relatos vêm de gente com todo tipo de vida, e nos dão a oportunidade de ver Mandela não só do jeito como o entendemos individualmente, mas sim como 60 outras pessoas o interpretam. E cada uma delas vê Mandela de uma maneira diferente. Talvez haja um senso comum, mas cada um traz um entendimento especial de Mandela para nós. O segundo aspecto do livro é que, quando você lê as entrevistas, percebe que, enquanto cada um traz esse entendimento especial, também pega algo para si por meio da interação com Mandela. Isso me permite entender que mesmo achando que conhecia o homem, eu ainda posso ficar perplexo com a personalidade humana [de Mandela], e particularmente pela natureza do ícone. Se pegarmos um ícone e o reduzirmos a uma única dimensão, roubaremos dessa pessoa a imensidão da complexidade humana. Pois ninguém tem só uma faceta. E, no caso de Mandela, ele é como um diamante multifacetado: as cores que você vê na pedra dependem de como você o ajusta na luz.
Mito e realidade
Com todo o trabalho desse livro [Mandela: Retrato Autorizado - Editora Alles Trade, 2007], comecei a perceber que vivemos em um mundo onde criamos ícones. O ícone se torna, então, uma inspiração para cada um de nós, e isso imediatamente levanta uma questão. Um homem como Mandela pode significar muitas coisas, tantas facetas distintas para diferentes pessoas. Assim sendo, o que é verdade sobre esse homem? O que é real e o que é puramente um mito? Sidney Poitier, um ator afro-americano, disse em sua entrevista: "Quando um indivíduo, com toda a sua grandeza, põe sua vida em risco, deixa-nos com um pouco mais de coragem, de discernimento e de determinação". Já o ex-presidente norte-americano Bill Clinton afirmou: "Toda vez que Nelson Mandela entra em um local, todos nós nos sentimos um pouco maiores, queremos nos levantar, queremos comemorar porque gostaríamos de ser como ele nos nossos melhores dias". O que me assusta nessas duas percepções é que elas nos permitem sentir que tanto Sidney Poitier quanto Bill Clinton estão muito conectados a Mandela, há uma forte relação de amizade e proximidade entre eles. E o que quero mostrar com esses exemplos é que eu também conspiro para a criação do mito Nelson Mandela. Porque eles [Poitier e Clinton] percebem o que é real em Mandela, mas gostam de criar um mito dessa realidade, algo que sirva de inspiração para eles e para todos nós.
Laços sociais fragilizados
Um exemplo para entender algumas das coisas que acontecem na África, que teve seu sistema social destruído também pelo tráfico de escravos, é imaginar alguém sem mais contato com sua pátria, mas tentando manter sua cultura em um ambiente artificial. É como retirar um grupo de pessoas de São Paulo e colocá-lo na Lua, dando a essas pessoas todas as facilidades para viver lá, mas visitando-as a cada 100 anos. O que você encontrará serão indivíduos falando o português de que eles se lembram, mas que você não entenderá, mesmo você e eles sendo brasileiros.
Na África, por nossa experiência comum de colonialismo, abraçamo-nos uns aos outros. Em alguns casos, apenas vemos as diferenças, em outros as vemos e nos amamos muito mais - nós apreciamos, por exemplo, a culinária uns dos outros, mesmo sendo diferentes. Em relação à transição ocorrida na África do Sul, digo que se ela tivesse ocorrido dois anos antes, estaríamos bem melhor. Pois como essa sociedade estava entrando em colapso, a demora da transição levou nossas mentes a um estrago maior. Nós tivemos de fazer concessões, mas penso que, com os avanços que obtivemos, atingimos a democracia. Firmamos certos compromissos, como permitir que toda a burocracia se mantivesse no poder por cinco anos. Isso foi ruim? Tudo que sei é que a África do Sul, hoje em dia, é mil vezes melhor para todos nós, não só para os negros oprimidos, mas também para os brancos. Talvez alguns de nós não percebam quanto a vida é melhor nos dias de hoje. Isso porque nosso povo gosta de reclamar.
Marxismo
Perguntam-me sobre as influências do marxismo, não há dúvida de que as ferramentas analíticas que o marxismo desenvolveu foram extremamente úteis para o entendimento da sociedade. Mas dou um simples exemplo: se eu fosse um carpinteiro que viveu em 1900, na minha caixa de ferramentas teria um martelo, um instrumento para retirar pregos e uma chave de fenda. Se fosse carpinteiro nos dias de hoje, ainda teria o martelo, o instrumento para retirar pregos e a chave de fenda, mas também teria diferentes versões da chave de fenda. O que estou tentando dizer é que as ferramentas que você usa para analisar a sociedade nunca serão um kit completo. O que um carpinteiro carregava em sua caixa de ferramentas em 1900 permitiu-lhe fazer bons móveis. Mas hoje precisamos de mais instrumentos.
"Na África, por nossa experiência comum de colonialismo, abraçamo-nos uns aos outros. Em alguns casos apenas vemos as diferenças, em outros as vemos e nos amamos muito mais"
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