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A baixa qualidade da escola pública brasileira há muito tempo tem sido alvo de questionamentos por parte de diversos setores da sociedade. Um bom indício do problema é o último resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de 2006, no qual se constatou que os colégios estaduais da cidade de São Paulo - 621 estabelecimentos - obtiveram uma nota média de acertos abaixo de 50 pontos. Em artigos exclusivos, a doutora em educação e coordenadora do Núcleo de Educação da Fundação Padre Anchieta, Guiomar Namo de Mello, e o professor doutor em educação e chefe do departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Universidade de São Paulo (USP), Leandro de Lajonquière, analisam o que pode ser feito para mudar esse quadro.

 

O fracasso de hoje: a escola que faz falta

por Leandro de Lajonquière

 

A educação escolar é objeto de avaliações diversas. A mídia veicula com regularidade dados - bem como promove o debate - sobre as razões de seus parcos resultados e as possíveis melhorias.
À primeira vista, o dito quadro de calamidade descreveria a situação do ensino público por oposição ao particular, presente de forma ostensiva em nosso país. Porém, não é bem assim. O sistema particular não é tão performático como suposto. Isso é digno de nota, uma vez que temos o vício de achar que [o ensino particular] está fora de qualquer suspeita. Por exemplo, nos vestibulares das universidades públicas (supostos crivos intelectuais), os aprovados procedentes do ensino médio particular não são maioria absoluta como se imagina. Por outro lado, a média dos "serviços educacionais" oferecidos pelas escolas particulares equivale à escolaridade padrão do sistema público de ensino de outros países. Por que haver entre nós uma escola paga a oferecer aquilo que alhures é "grátis"?
Pouco importa se essa avaliação é mais científica que aquela outra - a polêmica sobre os pormenores da avaliação ocupa, infelizmente, não poucos espíritos.
Em suma, diferença a mais, diferença a menos, rede pública de ensino, escola particular, eis o fato: em se tratando de uma das dez primeiras economias do mundo, deveríamos ter uma escola mais "robusta". Por que não é assim? Tanto esta pergunta como a anterior dizem respeito a aspectos de uma mesma questão.
Desde que cheguei ao Brasil, escuto que antigamente a escola no país funcionava melhor. Ela era quase toda pública, apesar de poucos entrarem. Os que conseguiam passar por ela viam suas existências serem de fato transformadas. Isso foi verdade até para os contados filhos de escravos que, graças a um encontro fértil de circunstâncias, conseguiam por vezes atravessar a soleira da escola.
Esse relato não me surpreendeu. Descendente de imigrantes pobres chegados à Argentina na dobra dos séculos 19 e 20, sempre soube que meus avós também viram suas existências serem transformadas pela escola. Porém, se transladássemos para os dias atuais essas crianças e famílias humildes de antanho, elas seriam, em nosso país, consideradas totalmente reativas à vida escolar.
Das crianças herdeiras de famílias similares afirma-se hoje serem carentes de estímulos, afetos e iniciativa, faltar-lhes vontade, disciplina e estrutura para aprender. A essa opinião, quase hegemônica por muitas décadas, somou-se outra nos últimos 20 anos: a culpa é da escola que não está adaptada à forma de ser dessas crianças e suas famílias.
Nesse sentido, o fracasso de nossa escola - em transformar a imensa maioria de nossas crianças em jovens quase adultos, cidadãos instruídos, letrados e versados com soltura em alguma coisa - é pensando como sendo fruto de uma falta de adequação ou proporção entre, por um lado, a forma de ser tanto das crianças "deficitárias" ou "fracassadas" e, por outro, a mesmíssima escola. Assim, pensa-se que a educação escolar é uma questão de métodos de ensino. Eis aí a polêmica recorrente que motiva, a cada avaliação, a busca por novos "ajustes" ou "adequações" da escola à dita realidade familiar, regional, sociológica, espiritual e/ou psicológica etc. das crianças.
Das últimas grandes novidades da burocracia pedagógica, cabe citar a progressão continuada. A ilusão fundamental de semelhante iniciativa é que a escola deve acompanhar "com naturalidade" o desenvolvimento "natural" da espiritualidade infantil. O erro está em não reconhecer que toda essa pretensa naturalidade não passa de uma miragem. Desenvolvi essa polêmica na tese Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica (Vozes, 1999). Quanto mais "ajustamos" a escola, mais se afasta de nós a suposta realidade da criança, bem como damos nossa contribuição para que ela perca um pouco mais daquilo que, tempos atrás, a fazia funcionar para ricos, humildes, negros, brancos, amarelos, católicos e não tanto, patrícios, nativos e recém-chegados, todos ávidos em virar cidadãos de uma nação.
A questão não é "progressão sim ou não", ou o método X versus o Y (Educar: Uma Questão Metodológica? Ana Carolina C. S. de Camargo, Vozes, 2006). A questão é que a sutil equação que possibilita a educação se ressente quando os adultos se apresentam às crianças como tributários de um espírito antiescolar. Apesar de pretendermos mascarar certas coisas, as crianças sacam do que se trata nas entrelinhas do que dizemos ou deixamos de dizer.
Alguma coisa as crianças de outrora devem ter escutado sem ouvir dos adultos e isso fez que elas se lançassem ao trabalho escolar, embora a escola na qual tinham entrado fosse - como sempre - inadequada e desajustada da corriqueira realidade.
A criança não pode, em princípio, não aprender aquilo que é ensinado, mostrado pelo mundo adulto. Toda criança é a priori lançada ao laço social e nele faz questão de entrar e participar. Não compartilho a idéia de que as crianças não aprendem nas escolas por ser "fracas" ou herdeiras de "famílias desestruturadas". Nesse sentido, até a patologia psíquica na infância poderia ser pensada como um tipo de curto-circuito na forma de as crianças participarem do mundo adulto.
Uma criança aprende algo e, assim, ela é apreendida pelo mundo, à medida que acredita, ou coloca créditos, na seguinte mensagem: "Embora não seja ruim ser como eu sou, vale a pena lançar-me a ser diferente". A razão dessa frase vale tanto para o bebê que começa a balbuciar quanto para a criança ou o adulto ainda não escolarizado ao lançar-se no aprendizado dos números ou das letras.
Essa mensagem metatransmitida nas entrelinhas do mundo indica, por um lado, que todo aprender implica uma cota de transformação da existência e, por outro, no reconhecimento de uma diferença, por sua vez, valorizada. Assim, Pedrinho lança-se ao saber sobre aquilo que o outro sabe, porque alguma coisa da fala desse outro lhe "diz" valer a pena correr o risco de renunciar a sua forma de ser para, com o tempo e graças ao próprio esforço, devir um outro - um alguém próximo daquele que ensina e aparece como um embaixador do mundo dos grandes. Contudo, semelhante empresa nem é fácil nem está ganha de antemão.
Toda vez que alguém escuta essa mensagem - mesmo sem ouvi-la de fato - lança-se a aprender, isto é, lança-se ao trabalho com empenho e com a esperança estampada no rosto, embora um pouco aflito por saber que pode perecer na travessia, caso venha a ficar distraído.
Costuma-se pensar que há uma relação linear e imediata entre a riqueza de um país e escolarização de seu povo. Se assim fosse, somos uma exceção? Mas não é assim hoje e tampouco o foi, por exemplo, nos tempos da crescente industrialização européia do século 19, como bem lembrou Carlota Botto em seu texto A Moderna Escola do Estado-Nação (Revista Mackenzie, n. 1, 2001). A robustez da escolarização é função de alguma outra coisa.
No Brasil, a universalização do acesso à escola deslanchou há mais ou menos quatro décadas. Mas ela é simultânea à expansão do ensino pago. Criou-se uma escola para os filhos daquelas famílias que tinham ido àquela escola pública - agora feita saudade - e outra para a imensa maioria da população, filha daquela que antanho queria entrar na escola, agora já desaparecida. Parece que não se queria que a escola laica, gratuita e obrigatória fosse para todos, para dessa forma transformar nossas crianças em cidadãos de uma nação.
As crianças logo escutaram o metatransmitido pelo mundo dos adultos: "Não é necessário empenhar-se, pois escola alguma tem algo de muito valor a oferecer". As experiências de satisfação que hoje uma escola pode propiciar pouco valem perante os orgasmos existenciais propiciados pela TV ou pelas notícias sobre o consumo dos famosos graças a quaisquer circunstâncias. O diploma deixou de ser uma chave abridora de futuros. Se ele é ganho, vale quase nada, enquanto aqueles que valem bem podem ser comprados e, portanto, perdem seu valor. O sonho difuso de um futuro diferente se esfumou. Ambas as escolas só deslocam a mesmice no tempo.
Assim, a sombra do objeto amado perdido - a escola que funcionava - passou a recair sobre o processo de escolarização, retirando dela a robustez de outrora. Estamos então condenados? Não. Basta remontarmos à descida melancólica recuperando os cacos da equação e tecer os sonhos de uma nação para todos.

 

"No Brasil, a universalização do acesso à escola deslanchou há mais ?ou menos quatro décadas. Mas ela é simultânea à expansão do ensino pago. Criou-se uma escola para os filhos daquelas famílias que tinham ido àquela escola pública - agora feita saudade - (...)"

 

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LEANDRO DE LAJONQUIÈRE É PROFESSOR DOUTOR EM EDUCAÇÃO
E CHEFE DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS DA
EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

 

 

Escola pública de educação básica: o que fazer para melhorá-la?

 

por Guiomar Namo de Mello

 

O Brasil está estarrecido com o mau desempenho de nossas escolas públicas que, graças à divulgação de dados de avaliação, tomou conta da mídia, das conversas sociais e das estratégias de grupos e corporações. A pergunta título deste artigo também já parte do suposto de que a escola pública não vai bem. A resposta que se segue é uma contribuição para esse debate. Curta, analisa alguns pontos críticos e sugere alternativas de solução.
Gestão sem mérito - O Brasil não tem tradição de utilizar o mérito e o desempenho educacional para escolher diretores de escola. Passamos das indicações políticas para processos eleitorais, ambos incapazes de garantir competência e liderança do gestor da escola. Escolher diretores competentes e prover capacitação e assistência técnica constante é uma solução óbvia.
Sem foco na aprendizagem - A cultura escolar brasileira nem sempre é focada na aprendizagem. Damos mais atenção às ações assistenciais que a escola se viu obrigada a assumir; destacamos mais o ensino do que a aprendizagem. Essa visão contamina a família. O brasileiro pobre acha a escola pública ótima porque tem vaga, professor, merenda e Bolsa Família.
Até hoje não temos visão e metas compartilhadas - Nossas escolas não têm um plano curricular claro nem metas de aprendizagem definidas e compartilhadas por todos. A ausência de planos curriculares dificulta o entrosamento dos planos de ensino dos professores, deixando cada um à própria sorte. As diretrizes e parâmetros curriculares nacionais não são suficientes; estados e municípios têm de ter um combinado detalhado sobre metas e conteúdos de aprendizagem. Como não há, as escolas precisam dar conta disso. Algumas até conseguem esse heroísmo, mas não há garantia para todas. Alinhamento de metas e conteúdos de ensino por áreas e faixas etárias é indispensável para que todas as escolas caminhem na mesma direção.
Não há prestação de contas - Sem metas e planos de ensino claros, ninguém presta contas. É urgente dar um basta ao mau hábito de ter o livro didático como guia curricular. Bons livros são maus guias nesse sentido. Planos curriculares e programas de ensino detalhados têm de deixar claro quem ensina, o que e quando, quem aprende, o que, quando, e como se avalia. Só assim é possível aos dirigentes e à sociedade acompanharem e cobrar a aprendizagem dos alunos.
Fragmentação e inadequação do material didático - Na ausência de programas de ensino detalhados, o livro ou qualquer outro material de uso do aluno não propicia articulação entre as disciplinas e as séries. Enquanto nossos professores tiverem formação tão precária, é preciso que eles sejam capacitados para usar um determinado livro ou um material. Capacitações genéricas sobre o uso de materiais em geral não são suficientes.
Fragmentação da formação do professor - Os professores são formados em cursos totalmente estanques e separados. É esperar demais deles próprios e dos diretores ou coordenadores que tenham um projeto pedagógico coerente e interdisciplinar. Rever todo o sistema de formação docente é dívida do MEC [Ministério da Educação]e das instituições de ensino superior que já é tempo de ser saldada.
Falta foco nos básicos - Nossos planos e objetivos são pretensiosos, enquanto conteúdos e competências básicos, como a leitura e a escrita, o raciocínio lógico, científico e matemático, não são valorizados nas demais áreas, porque cada um está preocupado em mostrar a importância da sua disciplina. Assim fica difícil estabelecer compromissos coletivos de aprendizagem.
Expectativas de fracasso - Nossa cultura escolar aposta pouco na capacidade de aprender dos brasileiros. O discurso da igualdade dissimula um profundo pessimismo em relação à criança pobre. Em grande parte, esse pessimismo decorre do fato de a equipe escolar sentir-se sozinha e mal preparada para enfrentar situações difíceis.
Capacitação fora de foco - Além da formação inicial dispersa, poucos programas de educação continuada dos professores acontecem de fato no "chão" da escola, partindo de dificuldades específicas que uma delas e cada professor estão enfrentando aqui e agora. Para que isso acontecesse, seria necessário que a educação fosse de fato continuada, havendo na escola alguém encarregado de estar todos os dias identificando dificuldades e promovendo reflexões para encontrar formas de superá-las.
Avaliação para voltar atrás, não para ir adiante - As reações ressentidas contra os programas de progressão continuada e ciclos de aprendizagem revelam como a cultura escolar brasileira ainda aposta que o sucesso da aprendizagem depende mais do poder do professor para repetir um aluno do que do acompanhamento e recuperação paralela constantes.
Os pais não aprendem a ser pais de alunos - Pais não são para fazer sanduíche em festa junina nem para dar conta do que a escola não consegue. Um trabalho sistemático, realizado pela mídia, pela assistência social e outras organizações, vai ter de ensinar à família o que fazer em casa para ajudar na escolaridade de seus filhos:
o criar um ambiente ordenado, com rotinas e certos rituais básicos necessários à solenidade da aprendizagem, como por exemplo a hora e o canto da lição de casa (mesmo que seja um cantinho da mesa que serve para tudo). Sabemos que famílias muito pobres podem ter esse clima doméstico. E outras, não tão pobres, às vezes não têm;
o construir um projeto juntos, fazer a criança participar com responsabilidade de algum plano familiar; não importa se é o plano de ir visitar os familiares em outra cidade, comprar um fogão novo ou construir outro cômodo na casa; para a criança, precisa ficar claro que ela é parte desse plano e que nele sua função é ir à escola, aplicar-se e aprender;
o valorizar o estudo e o trabalho intelectual, mesmo quando a mídia, a política e tudo mais os desvalorizam; esse é o heroísmo que temos de ensinar aos pobres deste país.
Mentalidade de curto prazo dos dirigentes - Todos os países que apostaram na educação para seu salto na contemporaneidade pactuaram a educação acima de interesses partidários e corporativistas. Fazer as autoridades se comprometerem com metas de longo prazo é um desafio social e político. A classe política precisa priorizar de fato metas que ultrapassam uma gestão, disponibilizar recursos, diminuir o emperramento burocrático, e abrir mão da tentação de deixar sua marca própria. Adotar alternativas de solução como as citadas depende de superar-se a mentalidade de gastar o mínimo com aquilo que é mais visível e de imediato apresentar a fatura política.

 

"Todos os países que apostaram na educação para seu salto na contemporaneidade ?pactuaram a educação acima de interesses partidários e corporativistas. Fazer as ?autoridades se comprometerem com metas de longo prazo é um desafio social e político"


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GUIOMAR NAMO DE MELLO É DOUTORA EM EDUCAÇÃO E
COORDENADORA DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO DA FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA

 

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