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Mutação genética causa o X frágil, síndrome pouco conhecida até pelos médicos

MILU LEITE

 

A síndrome do X frágil, uma doença genética hereditária apontada como a causa mais freqüente de comprometimento intelectual herdado, é pouco conhecida. Diferentemente da síndrome de Down, não hereditária, que hoje felizmente é divulgada até em propagandas de televisão, a do X frágil não chegou ao conhecimento de uma parcela significativa nem mesmo da classe médica.

"Há uma grande falta de informação ainda por parte de médicos e de outros profissionais da área de saúde e educação. Por isso, somente quando os sintomas mais marcantes da síndrome são evidenciados é que se suspeita de que algo está errado", alerta Ingrid Tremel Barbato, bióloga com especialização em citogenética e que se dedica a estudar a síndrome do X frágil.

Esse quadro talvez se explique pelo fato de as descobertas mais importantes sobre a doença terem se dado há pouco mais de 20 anos. De lá para cá, os estudos têm se aprofundado, gerando uma melhoria nos métodos de diagnóstico e no tratamento dos sintomas.

O X Frágil, como toda síndrome, não tem cura, e sua origem está num defeito (mutação) no cromossomo X, que altera o gene conhecido como FMR1 (fragile X mental retardation gene 1). Essa mutação gera um aumento de bases nitrogenadas (por exemplo, citosina, guanina, guanina – CGG), o que ocasiona uma instabilidade no gene e, conseqüentemente, a falta do produto final, que é uma proteína chamada FMRP (fragile X mental retardation protein). A ausência dessa proteína causa uma série de sintomas nos aspectos físico, comportamental, emocional e intelectual. Por essa razão, quando a síndrome é diagnosticada, o profissional indica ao paciente tratamento multidisciplinar (psicoterapia, psicopedagogia, psicofarmacologia, fonoaudiologia, etc.), que poderá contribuir para a diminuição dos sintomas e das dificuldades.

Biologicamente, o sexo masculino é determinado pela combinação dos cromossomos XY e o feminino por XX (cromossomo é a estrutura que armazena a cadeia de DNA no organismo vivo). Por ser um "defeito" do cromossomo X, a síndrome tem maior incidência sobre meninos. Em homens, a mutação completa no cromossomo X inviabiliza a produção da proteína, ao passo que nas mulheres ela pode ocorrer em apenas um X, ficando a produção da proteína a cargo do X não defeituoso. As estatísticas mundiais apontam incidência de um caso em cada grupo de 4 mil meninos e um para cada 6 mil meninas. "Sua prevalência independe de raça, cor e idade", acentua Ingrid Barbato.

As particularidades dessa mutação e a variedade de genes em que ela pode ocorrer (identificados como FRAXA, o mais comum; FRAXE, que implica maior retardo mental; e FRAXF e FRAXD, mais raros) tornam o diagnóstico clínico complicado. No entanto, é possível enumerar algumas características típicas do portador de X frágil: faces alongadas, orelhas grandes e amolecidas, leve prognatismo (hipertrofia da mandíbula), aumento dos testículos nos meninos, retardo no aparecimento da linguagem, problemas de atenção, flacidez muscular, retardo mental (de leve a severo), convulsões (de 15% a 20% dos casos). As mulheres podem apresentar alterações emocionais, como ansiedade e depressão, isolamento social, confusão mental e distúrbios de aprendizagem (principalmente em matemática). Em todos os casos, o diagnóstico definitivo é feito por meio de exame de DNA.

Alerta na escola

Frente a tantas dificuldades (de conhecimento sobre a doença, de diagnóstico clínico, de informação), médicos e psicoterapeutas freqüentemente se deparam com casos de pais que tentaram durante anos descobrir que tipo de problema acometia seu filho. Muitos contam que acompanharam com certa desconfiança o desenvolvimento atrasado da criança (sentou mais tarde do que deveria, demorou para andar, para falar), mas se confortaram com a idéia, compartilhada por outros familiares, de que "cada criança tem seu tempo". O alerta soou forte, contudo, com o ingresso na escola. É nessa fase que, invariavelmente, os problemas se acentuam. Costumam surgir também nesse período os obstáculos à socialização (o portador da síndrome pode se mostrar mais agressivo ou mais recluso) e ao aprendizado. E aí existe outro perigo. Muitos educadores, por falta de informação, confundem esses sintomas com preguiça, desinteresse ou malandragem e passam a exigir dos portadores da síndrome o que eles não podem oferecer sem a ajuda de medicação e tratamento adequados. Nesses anos, a vida escolar e familiar pode virar um verdadeiro inferno de cobranças e frustrações.

"Com a psicoterapia, o portador tem um espaço qualificado para receber apoio emocional em seu processo de descoberta de si, percepção do outro, formação de identidade, no desempenho de papéis e na ampliação das possibilidades de seu modo de ser/estar no mundo. É também um espaço onde os pais compartilham suas experiências, angústias, dúvidas, e recebem orientação para poder lidar melhor com o filho", afirma a psicoterapeuta Maria Luiza Vieira Santos.

Então o portador de X frágil pode levar uma vida normal? A resposta varia, porque isso vai depender do grau de comprometimento das áreas atingidas pela mutação. Há gradações de retardo, de agressividade, de comprometimento da fala, de dificuldades de atenção. Muitas vezes, a síndrome coexiste com outras alterações de comportamento: hiperatividade e déficit de atenção, autismo, ansiedade, oscilações de humor. A medicação a ser utilizada vai focar o tratamento desses sintomas e deve ser acompanhada de um tratamento multidisciplinar, como foi dito antes.

"O acompanhamento psiquiátrico pode abranger o uso de medicamentos para os chamados sintomas-alvo, como hiperatividade ou instabilidade de humor, por exemplo, incluindo também orientações aos pais e psicoterapia, quando indicado", esclarece a psiquiatra Maria Cristina Brincas, especializada em psiquiatria da infância e adolescência. Abordagens comportamentais têm como objetivo reduzir os comportamentos indesejáveis, substituí-los por outros mais adaptativos, reduzindo a agressividade e obtendo maior controle de impulsos.

Entender o que tem, por que é diferente dos outros e aprender a se controlar é muito importante para o portador. A partir daí é que ele vai dar o grande passo na direção da inclusão. A família é fator indispensável nesse processo. "A maioria dos portadores apresenta dificuldades de organização temporal e espacial. Eles necessitam de supervisão e cuidados para o cumprimento de atividades, horários e rotinas", frisa a psicopedagoga Márcia Fiates, que, junto com Maria Luiza, orienta grupos de portadores de várias síndromes, com base nos fundamentos do psicodrama. "O psicodrama ajuda muito porque trabalha com cenas, situações concretas do cotidiano, para entender os conceitos mais abstratos", diz Márcia.

Maria Luiza alerta para um outro problema. "Respeitando as particularidades de cada portador, é importante frisar que eles também precisam de limites. Algumas vezes, a criança padece de falta de educação. Os pais, que se sentem muitas vezes culpados e estão atrapalhados com a situação, acabam sendo tiranizados pelo filho. Não sabem como abordá-lo."

Planejamento hereditário

Descobertas mais recentes mostram que a síndrome do X frágil pode trazer consigo uma outra síndrome, chamada pelos norte-americanos de FXTAS (fragile X – associated tremor/ataxia syndrome). Nesse caso, existe um aumento significativo na produção de mRNA (iniciais que designam o ácido ribonucleico que, em conjunto com o DNA, desempenha papel fundamental na transmissão da informação genética e diminuição na proteína FMRP. Essa ataxia (termo médico que indica desordem ou falta de coordenação motora) compromete os indivíduos pré-mutados (geralmente pessoas que apresentam poucos sintomas) e tem como conseqüência movimentos anormais e perda de memória.

Mas o que é a pré-mutação, afinal? A pré-mutação é um aumento dos pares de bases conhecidas como CGG. No caso do FRAXA, ela varia de 55 a 200 repetições. Em geral, as pessoas com X frágil pré-mutado têm poucos sintomas: em 20% das mulheres ocorre menopausa precoce e de 30% a 40% dos homens apresentam ataxia nervosa (FXTAS).

O grande complicador desse panorama é que mulheres pré-mutadas têm maior risco de gerar para sua descendência a expansão do gene, com filhos afetados. Homens pré-mutados passam para todas as filhas o mesmo número de CGG, tornando-as pré-mutadas. Essa matemática confusa da genética é que explica por que a síndrome do X frágil pode permanecer despercebida por gerações de uma mesma família antes de ser descoberta. À medida que o número de repetições de CGG aumenta, em especial nas mulheres, a prole (principalmente os meninos) é acometida pela mutação completa, levando aos casos mais severos da doença.

Na prática, o que acontece é o seguinte: quando os pais descobrem que têm um filho portador, são aconselhados a realizar os exames necessários para detectar a extensão da mutação na árvore genealógica. É muito comum, após esses exames, mães se descobrirem portadoras da síndrome leve. Esse entendimento se reflete na nova dinâmica que deverá ser construída na família. E, com isso, dá-se mais um passo no caminho da inclusão do portador e na prevenção de novos casos.

"A inclusão do portador de necessidades especiais é mais do que uma resolução da ONU [Organização das Nações Unidas]. Trata-se de uma questão de direito, cidadania, dignidade. É também aprendizagem para portadores e não-portadores. Todos ganham muito com a convivência", salienta Maria Luiza. A psicopedagoga Márcia acrescenta: "A segregação prejudica a todos, porque impede que se conheça a vida com todas as suas dimensões e desafios. A inclusão escolar é essencial, porque a escola tem o papel de ensinar, de mediar, de facilitar, trabalhar conteúdos acadêmicos e relacionais, colocar os limites e as regras".

Exames

Há uma pequena variedade de exames para o diagnóstico da síndrome do X frágil. O mais antigo é o exame de cariótipo, que permite a visualização do cromossomo X através de meios de cultura específicos. Contudo, o teste pode não detectar a fragilidade cromossômica em até 40% dos meninos afetados, e as meninas e os pré-mutados (mães e pais portadores) possuem baixo índice dessa fragilidade. Portanto, o diagnóstico nesses casos não é conclusivo. Os especialistas costumam indicar a realização do exame de DNA, que pode ser feito de formas diferentes, tais como o PCR (polymerase chain reaction – reação em cadeia da polimerase) e o Southern blotting.

Ingrid enfatiza que "muitas síndromes apresentam sintomas parecidos com os do X frágil, ficando muito difícil para o profissional que está investigando pela primeira vez o paciente pensar somente neste último. Ele só vai ter certeza após a realização do teste específico".

O quadro é desanimador, mas, como ensina a prática de quem lida com saúde no Brasil, é possível fazer alguma coisa no setor, "apesar dos pesares". No caso de Ingrid, Maria Luiza, Márcia, Maria Cristina e outros profissionais, a solução foi criar uma entidade destinada a atender portadores. A Associação Catarinense da Síndrome do X Frágil (www.neurogene.floripa.com.br, e-mail crescendo@moringa.com.br) foi formada em 2001 e, desde então, vem orientando famílias a respeito da doença. Além disso, graças a doações e trabalho voluntário, ela pode oferecer algumas terapias gratuitas (fonoaudiologia, arte-terapia e psicopedagogia). O próximo desafio da associação é criar uma oficina de profissionalização visando a inserção do portador no mercado de trabalho.

Uma rápida pesquisa na internet mostra como a discussão sobre o X frágil está se propagando. Há entidades ainda em São Paulo (www.xfragil.org.br), Rio de Janeiro (www.xfragil-rj.com.br), Porto Alegre (www.xfragil.com.br) e em muitas outras cidades do mundo. No entanto, quando se compara esse panorama com o da síndrome de Down, vê-se que há uma longa montanha a ser escalada. Ressaltadas as diferenças entre uma e outra (conhecida há muito mais tempo, a síndrome de Down afeta uma em cada mil crianças nascidas de mãe com menos de 30 anos), não há por que não alimentar esperanças de melhorias no atendimento de portadores do X frágil e na ampla divulgação da doença.
A boa vontade, ao menos, existe.


Para compreender melhor

O que é síndrome, o que é cromossomo, o que é gene, o que é DNA? Ingrid Barbato explica de modo simples: "Imagine um conjunto de prédios. Cada prédio é um cromossomo. Dentro dele existem muitos apartamentos, que são os genes. Sua composição, ou seja, os tijolos, a pintura, etc. é o que chamamos de DNA. Qualquer defeito nesse prédio, seja na pintura ou na estrutura, é uma mutação no DNA que pode causar uma síndrome genética".

 

 

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