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Um contador de muitas histórias

Autor de 72 livros, Hernâni Donato é romancista, historiador e homem de inúmeros ofícios

CECÍLIA PRADA


Hernâni Donato / Foto: Gabriel Cabral

"O homem dos sete instrumentos" – assim tem sido designado o escritor paulista Hernâni Donato, que conseguiu, desde uma primeira novela, escrita e publicada em capítulos quando tinha 12 anos de idade, chegar hoje à marca de 72 livros, nos mais variados campos, da literatura infanto-juvenil à biografia, à historiografia, à pesquisa e à divulgação científica, destacando-se como ficcionista em romances de envergadura telúrica, como Selva Trágica, Chão Bruto e Filhos do Destino, grandes sucessos editoriais nas décadas de 1950 e 60. Várias obras suas foram adaptadas para o cinema e o teatro. Entre as numerosas traduções que fez, destaca-se a da Divina Comédia, de Dante Alighieri, em prosa e para divulgação entre o povo. Seu último livro, História dos Usos e Costumes do Brasil, foi lançado no ano passado.
Mas a literatura foi apenas um dos "instrumentos" tocados por Donato. Nascido em Botucatu, no interior de São Paulo, em 12 de outubro de 1922, em uma família de imigrantes italianos, ele abriu caminho no mundo exercendo os mais variados ofícios e chegou a atingir posições da maior importância no campo editorial e na publicidade. Aos 83 anos, Hernâni mantém uma rotina de trabalho, publicando um livro a cada um ou dois anos. É membro da Academia Paulista de Letras e presidente de honra do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Problemas Brasileiros – Como começou seu interesse pela literatura?
Hernâni Donato – Nasci no interior, em Botucatu, numa época em que não havia televisão, o rádio era só de galena, estava começando. E os filhos de operários, como eu, não tinham muito dinheiro para ir ao cinema. Nem revistas infantis havia, então as crianças brincavam, liam quando podiam, principalmente nas bibliotecas. E usavam muito a imaginação. Como eu não era muito bom para jogar futebol, comecei a contar histórias aos amiguinhos – no meio de mil molecagens que fazíamos. A atenção que eles me deram foi a minha verdadeira "iniciação literária". Muito mais tarde na vida, as crianças do Parque Infantil da Vila Romana me deram o título de "O Contador de Histórias" – é uma das coisas que mais prezo e que guardo junto com o fio de prumo com que meu pai, pedreiro, construía igrejas, escolas e casas.

PB – Como foi sua formação?
Donato – Muito ligada à vida cotidiana, concreta. Botucatu era um centro ferroviário, cidade de imigrantes, situada no entremeio da zona pecuária com a do café, em processo de industrialização. Vivi agitadamente os primeiros anos, entre o cheiro acre do carvão das locomotivas, a cal e a tinta das empreitadas do meu pai, a delícia festiva do campo – fui e sou um homem rural. Mas, apesar de vir de um meio operário, absorvi desde muito pequeno um caldo de sólida cultura européia. Era um ambiente que me estimulava muito. Os livros me serviram de travesseiro. E me chamo Hernâni porque na noite em que nasci representava-se uma ópera de Verdi que tem esse nome, no teatro da cidade. Nesse dia, plantou-se também uma árvore no quintal da casa – era uma tradição familiar, para festejar um recém-nascido. Cultura, tradição, lirismo – um legado que recebi.

PB – Uma das suas principais influências foi, sem dúvida, a de Dante Alighieri?
Donato – Sim, como acontece em toda família de origem italiana. Meu avô, Vittorio, que era veterinário prático, tinha uma vasta biblioteca, em italiano e em português. Adorava ficar comparando poetas como Carducci, Pascoli, com os nossos, como Castro Alves, que muito admirava. Mantinha um pequeno hotel onde também hospedava uma associação chamada I Trenta Tre Contenti (Os Trinta e Três Alegres), o que lhe dava um cunho maçônico. Entre comes e bebes, faziam teatro, música, poesia e muita discussão política. E Vittorio costumava ler poesia para os hóspedes, principalmente a Divina Comédia. Eu, menininho, deitado sobre o móvel que acolhia a máquina de costura, ouvia e participava, ao lado de Dante e de Virgílio, de sua peregrinação. Quase 30 anos mais tarde, vi um vigia de caminhão, isolado pelas águas do Pantanal, procurando entender o Inferno na tradução de Xavier Pinheiro. Diante daquele leitor tão humilde, e lembrando o avô, prometi traduzir a Divina Comédia em prosa, para entendimento popular. Tirei um tempo de minhas múltiplas ocupações, três dias por semana, três horas por noite, durante nove meses. Minha mulher, que datilografava, me dizia: "Quem vai se interessar por isso?" No último dia desse trabalho, o telefone tocou: era José Paulo Paes, que dirigia a Cultrix: "Estou preparando uma coleção dos grandes poemas em prosa, para o povão. Você traduziria a Divina Comédia?" Ainda hoje, seja qual for a hora em que me liberte do dia, dou minutos da minha noite para reler, rever, conversar com Dante.

PB – E as influências exteriores?
Donato – Houve também um professor que bebia muito, mas que me oferecia um livro por semana. E uma bibliotecária, inesquecível, na escola. Não só nos indicava as melhores leituras como depois nos cobrava, com carinho, o que havíamos extraído delas. Quando eu tinha 12 anos, meu colega de carteira no segundo ano ginasial, Francisco Marins – hoje um escritor importante –, e eu resolvemos escrever uma novela de aventuras. Só para espantar o tédio das aulas. Chamava-se O Tesouro e naturalmente era recheada de navios, piratas, canhões trovejantes e lindas mulheres. O "Diário de S. Paulo" tinha um suplemento infantil, "O Guri", que aceitava colaborações. Resolvemos tentar a sorte e fomos aceitos e pagos – recebíamos 400 réis por capítulo. Tudo ia às mil maravilhas, mas a horas tantas Marins resolveu fazer o navio entrar terra adentro – é claro que não deu certo. Recebemos uma carta do diretor do jornal: "Vocês podem pensar que o público é tonto, mas eu não sou. Encerrem em dois capítulos". Minha adolescência foi uma fase de grande procura e inquietação, muita leitura. Marins e eu fundamos uma sociedade literária em um bairro proletário, e uma biblioteca de aluguel, ao mesmo tempo em que iniciávamos colaborações em jornais.

PB – Sua vida mostra uma trajetória extraordinária, entre os primórdios do menino interiorano, "rural", como diz ser, e o sofisticado intelectual e publicitário metropolitano, muito bem-sucedido. Conte-nos um pouco da sua saga.
Donato – Abri meu caminho na vida fazendo mil coisas diversas. Desde pequeno fui "menino sem parada", era do tipo que sumia de casa duas, três vezes por semana... Meu primeiro "emprego", com 7, 8 anos, foi o de ajudante de meu pai nas construções. Depois, fui aprendiz de alfaiate, balconista, porteiro de cinema, colhedor de algodão, faiscador, professor de escola de comércio, secretário de advogado, redator e repórter de vários jornais do interior, sitiante, inspetor-viajante de uma companhia editora. Bati pé pelo Brasil todo, quando era moço, mas gostava mesmo era de Mato Grosso – lá tem de tudo, antigo e moderno. Em 1952 abandonei um emprego excelente em uma das principais editoras do país para me meter em negócios de colonização, em Mato Grosso. Ia e voltava de lá inúmeras vezes – o negócio nada me rendeu em dinheiro, mas me deu muitos amigos e um material que depois aproveitei no romance Chão Bruto.
A minha ânsia de viajar era angustiante, selvagem – uma espécie muito pessoal daquela Weltschmerz ("dor do mundo") romântica que me fez beirar inclusive atitudes extremas, tanto em política quanto em religião. Dessa fase torturada – para mim associada sempre a um cheiro de estrada – me ficou pelo menos o conhecimento de muita gente, de muitos ambientes, uma experiência multicor, muito necessária a um escritor. Fui até um dos primeiros pilotos civis brevetados no interior, sonhava em ter um aviãozinho próprio...

PB – Um dos seus sonhos foi tornar-se também um empresário agrícola.
Donato – Minha forte inclinação pelo ruralismo tocou em excessos. Interessei-me, com atraso de quase um século, pelo mutualismo proudhoniano, chegando até a cogitar de um Banco de Trocas, visto como base de todo trabalho cooperativo. Eu precisava de um herói e elegi Emiliano Zapata. Menos como general, no campo de luta, mais como inspirador de um exército que, sendo preciso e quando o foi, trocava o arado pelo rifle e, deposto este, voltava àquele. Interessou-me o equalitarismo e a idéia de um mundo rural integrado por pequenas unidades solidárias. Aos 16, 17 anos, comecei a ler os romancistas russos, franceses, italianos, alguns sul-americanos, como Jesús Lara e Gallegos. Mas Tolstoi foi minha grande paixão, queria até vestir-me como ele – a família não me permitiu a barba e a camisa camponesa. Anos depois, já em São Paulo, investi minhas economias na compra de um sítio na serra de Botucatu, que batizei com o nome da propriedade rural de Tolstoi – Iasnaia Poliana. Foi uma desilusão total, não com o ideal mas com o pessoal escolhido. O quanto devem ter rido de mim – o menino que pretendia fazê-los sócios... de um sonho! O sonho durou dois anos, os prejuízos, bem mais.

PB – Como foi que criou, nos anos 1950 e 60, seus grandes romances de feição "telúrica"?
Donato – Foi neles que desaguou toda a minha inquietação "ruralista". Uma outra grande influência literária que tive foi a do romancista italiano Ignazio Silone, muito importante na década de 1930. Quando me caiu nas mãos, casualmente, seu grande livro Fontamara, li-o de uma arrancada só, sem poder desgrudar os olhos. Ele dizia o que eu – sem me dar conta – passara a vida preparando-me para dizer. Li todos os seus livros, ele me tocou fundo, com o seu amor pela terra, pelo homem da terra. Levei 15 anos pesquisando a história da minha região natal. Entusiasmei-me pela área do rio Batalha, a 100 quilômetros de onde eu morava, quando por lá descobriram inscrições pré-históricas. E escrevi a história dos imigrantes italianos na lavoura do café, no meu primeiro romance "social", Filhos do Destino, lançado em 1951. Depois, veio Chão Bruto, em 1957 – em uma de minhas viagens, ao atravessar o rio Paraná, encontrei um antigo companheiro de escola que se tornara um capanga. Passei então três meses lá pelas bandas do Pontal do Paranapanema, escrevendo a história de grileiros e posseiros, de boiadeiros e canoeiros, dessa região que até hoje é uma das mais violentas do estado. O livro teve cinco edições, em dois anos. Mais tarde esse romance foi filmado duas vezes, e obteve prêmios. Fiz também um romance que me deu muito trabalho, Rio do Tempo, a história do Aleijadinho, uma grande figura que lutou sempre com preconceitos de todo tipo. Mas meu maior livro é, sem dúvida, Selva Trágica, lançado em 1960, que teve um grande impacto na crítica e nos leitores. Esgotou cinco edições, uma delas de 60 mil exemplares. Foi filmado por Roberto Farias, com a estréia de Reginaldo Faria como ator. Ganhou o prêmio Saci e depois representou o Brasil no Festival de Veneza.

PB – Ele trata da condição dos trabalhadores da erva-mate na região do Pantanal, um assunto que até então nunca tinha sido abordado.
Donato – Esse episódio, que constitui um verdadeiro massacre de trabalhadores brasileiros, no início do século 20, é muito pouco conhecido. O mote dessa obra eu encontrei em apontamentos de autores paraguaios, como Rafael Barrett, que diziam: "...casi todos los peones que han trabajado en el Alto Paraná... han muerto"; e "de 300 hombres sacados de Villarica en 1900 para los yerbales de Tormenta en el Brasil, no volvieron más que 20". Fui introduzido nesse mundo misterioso e terrível por um amigo, nas minhas viagens rio acima e abaixo, no Paraná, e adquiri o vício do mate pelo lado pior: o quanto ele custava em suor, sangue e lágrimas, para chegar à cuia dos apreciadores. Fui ouvindo histórias de antigos trabalhadores, terríveis; me diziam: "Quem se meteu nisso, morreu". Me contaram que em Campo Grande residia um homem que teve de lutar de garrucha em punho e viu seu filho morrer, porque ousou escrever sobre o que se passava na cultura do mate. Me levaram para conhecer um peão que era um arquivo vivo, um mostruário, tinha no corpo sinais de 18 facadas, com cortes que haviam sido costurados com agulha e barbante de costurar saco.

PB – Mas, na época em que escreveu sobre isso, as condições já haviam mudado?
Donato – Mais ou menos. Honra seja feita a Getúlio Vargas, que acabou com o monopólio do mate e com o trabalho escravo – até mais ou menos 1938 a Companhia Mate Larangeira, argentina, mantinha esse monopólio. Mas quando me embrenhei nos ervais de Mato Grosso, isso no final da década de 1950, havia ainda cerca de 5 mil homens e mulheres trabalhando em condições extremamente precárias, sem descanso, durante 14 horas diárias, das 3 da manhã às 5 da tarde, na colheita e no transporte da erva – entre a "mina" e o acampamento o mate tinha de ser levado, pelo meio da selva, em fardos de 150, 200 quilos, amarrados às costas dos trabalhadores. Qualquer passo em falso causava a quebra da espinha do carregador. E então... os próprios companheiros, na falta de outro recurso, sorteavam entre si, jogando cartas, quem daria um alívio ao acidentado... um tiro na cabeça! Sei que horrorizei meus leitores urbanos, que pensavam que a erva-mate era colhida em jardins... Outra brutalidade era o "trabalho do uru" – o homem responsável pelo "barbaguá", uma espécie de forno de madeira onde a erva era preparada para o consumo. Ele tinha de trabalhar dia e noite, sem parar, remexendo as folhas sob um calor atroz. Depois de algum tempo desse trabalho, todos os pêlos do corpo vão secando, caindo, o homem vai ficando esturricado, transforma-se em um feixe de ossos.

PB – Chegou a correr risco de vida, por tratar desse assunto?
Donato – Sim, recebi "avisos", telefonemas. Contavam-me histórias, como a do último jornalista curioso que aparecera naquelas paragens e que virara "comida de formiga". Selva Trágica irritou muita gente. Houve até um padre que ficou zangado comigo porque descrevi uma Semana Santa que não é nem santa nem cristã. Mas o que vou fazer? Meu lema é o de Stendhal: "A literatura é um espelho que se leva ao longo de um caminho" – e que vai retratando a realidade, nem sempre fácil ou agradável de ver. Mas achei também muita gente que facilitou meu trabalho, deu-me depoimentos. Até, quando recebi um telefonema me ameaçando de morte, houve um amigo, ex-delegado de polícia, que quis montar guarda no meu escritório. Topei com muita gente interessante – encontrei um único homem decente explorando mate em Mato Grosso, e que me apoiou muito. Chamava-se Enio Gato Preto Martins, um homem tão culto que lia Shakespeare para seus peões, à noite.

PB – Há vários trabalhos seus sobre arqueologia. Quais foram suas pesquisas mais interessantes?
Donato – Em um dado momento pensei em entrar para a carreira diplomática e comecei a me preparar para o seu temido vestibular, com um professor particular. Ele me pediu um trabalho sobre o Tratado de Tordesilhas – que mudaria o curso de minha história. Deparei com uma palavra que se tornaria uma obsessão para mim nos 57 anos seguintes – "Peabiru", que significa um caminho de 8 metros de largura, em geral de pedra, feito pelas primitivas populações do Peru (na fase pré-incaica) e cujos vestígios podem ser encontrados até hoje por grande extensão da América do Sul, de São Vicente, no Brasil, ao Pacífico. Essa descoberta me sacudiu, me convulsionou, me agrediu, remexi mapas antigos, do século 17... e tive o maior choque quando percebi que esses caminhos passavam por lugares em que eu havia brincado, em criança. Larguei tudo o mais, o projeto de ser diplomata, o estudo, a namorada até, e organizei uma pequena expedição, mas sem revelar o que procurava. Disfarcei dizendo que ia em busca de um tesouro jesuíta. Mas depois desanimei, seria preciso muito tempo disponível, muita pesquisa, dedicação integral ao tema, bem pouco tratado até hoje, para encontrar os traços de uma cultura muito anterior à época cabralina, os vestígios de um intenso tráfego interior de populações, por toda a América do Sul. Eu me casei, criei três filhos, fui trabalhar como editor, ou em grandes agências de publicidade... mas meu interesse pelo tema não esmoreceu, continuei a estudá-lo como pude. Só em 1997 pude lançar um livro sobre isso, Sumé e Peabiru: Mistérios Maiores do Século da Descoberta. E agora eu o estou reescrevendo.

PB – Fez também pesquisas sobre a cultura da poaia, sobre as condições precárias dos trabalhadores dessa área?
Donato – Sim, cheguei a trabalhar nisso. Mas, com as anotações feitas, eu estava viajando um dia para Cuiabá quando alguém me informou que já existia um livro – não era um romance – sobre esse assunto. Joguei minhas anotações no rio e deixei para lá. Continuei a escrever obras de ficção durante as décadas seguintes, alternando-as com livros de história, pesquisa, divulgação. Em 1963 fiz um folhetim, Núpcias com a Morte, para o jornal "Última Hora". Em 1976 publiquei um livro de contos, Babel, e em 1982 fiz um romance-roteiro, O Caçador de Esmeraldas, que foi filmado.

PB – Poderia resumir qual a linha filosófica, ou de ação, que adotou em sua vida tão rica de experiências?
Donato – Há uma frase, não sei se é de Will Durant ou de Daniel-Rops, que define a postura que me acompanhou: "Só é verdadeiramente homem livre aquele que é gibelino entre os guelfos e guelfo entre os gibelinos". É o que tenho sido.

 

 

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