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Schmidt, nosso “gordinho sinistro”

Empresário e poeta, conservador e polêmico, ele influenciou JK, de quem foi o ghost-writer preferido

CECÍLIA PRADA


Página de rosto da autobiografia de Augusto Frederico Schmidt / Reprodução 

A comemoração dos 50 anos do governo de Juscelino Kubitschek traz à tona uma figura do maior relevo na época, hoje quase totalmente esquecida e ignorada. Empresário de grande sucesso, poeta lírico de valor reconhecido e bibliografia vasta, católico ferrenho, de convicções exacerbadas e de um conservadorismo extremo, mas dotado de visão e capacidade política capaz de influenciar Juscelino – do qual se tornou embaixador e ghost-writer predileto –, o polêmico Augusto Frederico Schmidt polarizou contradições, provocando a ira de tantos, a admiração de muitos.

Como o centenário de seu nascimento ocorre neste ano, algumas editoras estão promovendo a reedição de suas obras – discursos políticos, poesia, crônicas – reapresentando-o ao público brasileiro. E na biografia Quem Contará as Pequenas Histórias?, baseada na esgotadíssima autobiografia O Galo Branco (1948), Letícia Mey e Euda Alvim esmiúçam as circunstâncias de sua vida e de sua época.

De pobre a rico

Schmidt é o protótipo do self-made man. Vencendo circunstâncias adversas, construiu uma enorme fortuna e tornou-se figura de relevo político, por sua inteligência e cultura, e principalmente por sua grande habilidade de estabelecer relacionamentos. Nascido no Rio de Janeiro em 18 de abril de 1906 em uma família paterna abastada, viajou, menino, com os pais para a Europa – onde a mãe, tuberculosa, procurava a cura – e ficou interno dois anos em um colégio suíço. Mas, quando contava 8 anos, a inesperada morte do pai – que entrementes dilapidara toda a fortuna da família – obrigou a viúva a regressar ao Brasil, com os filhos Augusto, Magdalena e Anita, indo todos morar na casa dos avós maternos. O avô, Joca Azevedo, fazia o possível para sustentar a família, mas era apenas um modesto contador. A infância e a adolescência de Augusto transcorreram num ambiente de muito afeto e união familiar, mas também de sacrifício e privações. Angustiado pelo agravamento da doença da mãe – que faleceu quando ele tinha apenas 16 anos –, o adolescente gordinho e de óculos, que se sentia imensamente humilhado pela sua dupla situação de órfão e de pobre, para ajudar a sustentar a casa já trabalhava como caixeiro em uma loja de armarinhos. Da qual muitas vezes fugia para a vizinha Livraria Garnier – centro da vida intelectual carioca, freqüentada por escritores e jornalistas renomados, com os quais ia tecendo laços de amizade e embrenhando-se nos mais sofisticados atalhos daquela que seria a sua principal paixão, a literatura.

Transferindo-se em 1924 para São Paulo, foi trabalhar como caixeiro-viajante de uma firma de bebidas, uma atividade que desenvolveu muito bem, pois não dependia de patrão nem de horário e podia trabalhar de dia e passar a noite lendo. Dos dois anos que viveu em São Paulo, viajando pelo interior, dizia: "Foram anos de aprendizagem, de vida obscura, desconfortável, de começo, de inauguração de uma existência". Nesse período estabeleceu laços duradouros, tanto de amizade como de inimizade, com as principais figuras do modernismo – colhido no embate das ideologias totalitárias que se defrontavam (comunismo x integralismo), escolheu nítida e conscientemente a segunda. Diz em sua autobiografia: "Plínio Salgado passou a constituir desde logo, para a minha vida, um centro de atração. (...) Vivíamos, desde o dia em que nos encontramos, em uma camaradagem completa".

Voltando para o Rio de Janeiro, permaneceu sempre ligado ao círculo dos intelectuais católicos, que, naquele tempo, concentrados em torno do Centro Dom Vital e da revista "A Ordem" – com figuras como Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima –, representavam uma aguerrida e constante força de combate contra o comunismo/socialismo, em nome de Cristo e das instituições.

Em 1928 lançou seu primeiro livro de poesia, Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt. Gilberto Freyre, no necrológio que faria em 1965, diria, dessa época da vida de Schmidt: "O meninão gordo era já, contra todo esse seu físico nada romântico de burguês de caricatura, um admirável poeta, ora delicadamente lírico, ora biblicamente profético..." No início da década de 1930 temos já estabelecida no Rio de Janeiro sua primeira empresa, a Schmidt Editora, sucessora da Livraria Católica de Jackson de Figueiredo – comprada por um grupo de intelectuais católicos e entregue a Schmidt para que a administrasse. Uma aventura valiosa do ponto de vista intelectual, mas desastrosa financeiramente. Porém, ao vender a editora em 1934, Schmidt já contava com importantes relacionamentos empresariais, que, com imensa habilidade e inteligência, soube aproveitar para adentrar o mundo dos grandes negócios. Seguindo os modelos econômicos norte-americanos – foi sempre um admirador irrestrito do American way of life –, começa a delinear a política desenvolvimentista que mais tarde, no governo Kubitschek, alcançaria o auge, com seu planejamento e assessoria. Sua atividade caracterizou-se pela multiplicidade de negócios em que se metia – sua primeira empresa de sucesso foi a Metrópole Seguros; foi um dos fundadores da Panair do Brasil e o pioneiro das redes de supermercados, fundando o Disco (Distribuidora de Comestíveis), no Rio de Janeiro. Para se ter uma idéia da rapidez com que sua fortuna foi feita, dois anos após a venda da deficitária editora, em 1936, quando se casou com a muito amada Yedda Ovalle Lemos, seu presente de casamento foi um terreno situado na esquina da Rua Paula Freitas com a praia de Copacabana, onde ergueria um prédio em cuja cobertura viveria o casal.

Conseguiria até o fim da vida conciliar suas funções empresariais e intelectuais – publicou, de 1928 até o ano de sua morte, 22 livros de poesia, aos quais somam-se quatro póstumos, e dois autobiográficos. No entanto, sua reputação literária foi grandemente prejudicada pelo fato de ser um homem rico, e "de direita". Ao preconceito generalizado de que artista, principalmente poeta, tem de ser pobre e sofredor, somava-se sua atuação ostensiva como baluarte e porta-voz do pensamento mais retrógrado e conservador. Alguns escritores seus contemporâneos o defendem, considerando "injustas" as discriminações por ele sofridas. Como o ficcionista Autran Dourado, que recorda: "Era uma figura admirável, mas havia muita rivalidade dos outros poetas para com ele, pelo fato de Schmidt ser um homem rico, preocupado com negócios. Isso dava inveja". E Ivo Barroso diz: "Schmidt era injustamente colocado na prateleira por ser filiado à direita. Havia uma discriminação ideológica contra ele (...) só é possível julgar um artista através de sua obra e não por suas posições ideológicas".

Um editor boêmio

Gilberto Freyre costumava dizer, brincando, que Schmidt "fizera fortuna às suas custas" – o sociólogo pernambucano devia ao poeta/empresário, realmente, o lançamento de sua primeira e mais famosa obra, Casa-Grande & Senzala, em 1933. A publicação desse livro mostra a ousadia e a independência do jovem editor, pois contrariava as duas facções em luta – de um lado os comunistas, "assombrados pela força revolucionária do ensaio inclassificável", como diz Freyre; de outro, os próprios católicos que haviam dado o "emprego" a Schmidt, à frente dos quais estava Alceu Amoroso Lima, ainda representante de uma Igreja "antiga", embora mais tarde, nos anos 1960, tenha se tornado ultraliberal e combatido a ditadura militar.

O primeiro sucesso editorial de Schmidt seria o romance A Mulher que Fugiu de Gomorra (1931), um verdadeiro best-seller escrito por José Geraldo Vieira – um autor hoje completamente esquecido. Nos quatro anos em que foi editor, Schmidt descobriu e lançou alguns dos mais importantes escritores da nossa literatura, que desempenharam papel relevante no ciclo do "romance do nordeste" – como Rachel de Queiroz (João Miguel), Jorge Amado (O País do Carnaval) e Graciliano Ramos (Caetés).

Sobre este último, são bem conhecidas as circunstâncias da sua estréia literária – o escritor José Américo de Almeida, que na época era ministro do governo Vargas, recebera de Graciliano, então prefeito de Palmeira dos Índios, um relatório tão bem escrito que concluiu: "Este homem deve ter um romance na gaveta". Tinha. Tratava-se de Caetés, e foi encaminhado a José Américo, que o remeteu a Schmidt. No entanto, o tempo passava sem que o editor se manifestasse. Não por desinteresse, mas simplesmente porque perdera os originais – Schmidt era um grande "bagunceiro", um "boêmio nato". Para felicidade de nós todos, certo dia, transcorrido um ano, o editor reencontrou os originais, que havia deixado no bolso de uma velha capa de chuva.

Foi também o primeiro editor de Octávio de Faria (Maquiavel e o Brasil), Lúcio Cardoso (Maleita), Marques Rebelo (Oscarina) e Vinicius de Moraes (O Caminho para a Distância) – no caso deste último teve de insistir, contra a opinião de muitos, que se tratava de um ótimo poeta. O segredo que possibilitava à pequena e deficitária editora lançar autores de tanta importância era, além do "faro" de Schmidt para descobrir talentos, a antecipação de um processo comercial hoje amplamente empregado – a chamada "captação de recursos", que naquele tempo não tinha o amparo de leis de incentivo cultural. Apenas o interesse genuíno de "patrocinadores", como sempre foram Alceu Amoroso Lima, Hamilton Nogueira, Tristão da Cunha – foi este que apadrinhou O País do Carnaval, de Jorge Amado, que descobrira um dia remexendo a gaveta de Schmidt em busca de algo para ler, enquanto o esperava para uma conversa.

O poeta

Schmidt, que já gozava de boa reputação como poeta, lançou por sua editora somente um de seus livros, Desaparição da Amada, em 1933 – um longo poema dedicado a Yedda. Seu livro de estréia, Canto do Brasileiro Augusto Frederico Schmidt, deixara os críticos atordoados, sem ousarem classificá-lo nos moldes da época – romantismo ou modernismo. E já demonstrava, contra o estreito nacionalismo de então, uma ambição de internacionalismo ("Não quero mais o Brasil/ Não quero mais geografia/ Nem pitoresco"). Embora usasse versos brancos como os modernos, o poeta mostrava um ideário espiritual, uma angústia diante do universo, a procura incessante de Deus. Devemos lembrar que por essa época também Vinicius de Moraes – que mais tarde seria o celebrante por excelência do amor livre e da vida – escrevia versos angustiados, de exaltação religiosa e fervor místico. Schmidt permaneceu religioso até o fim. Sua obsessão pela morte valeu-lhe desde o início da carreira o apelido de "gordinho sinistro", que lhe foi dado pelos críticos.

Embora reticente em relação ao jovem poeta na sua estréia, Manuel Bandeira teceria mais tarde grandes elogios a ele, pois via em seus versos "a voz necessária que vinha quebrar os clichês gastos do modernismo da primeira hora" e que, "aproveitando-lhe as lições, sabia superá-lo". Lêdo Ivo, poeta e acadêmico, dizia: "Schmidt pertence ao modernismo, mas não ao modernismo do poema-piada. Sua voz é grave, dissonante, voltada para as coisas perdidas".

Quatro anos após a morte de Schmidt, Carlos Drummond de Andrade ainda falava a seu respeito, em uma crônica para o "Jornal do Brasil": "O melhor de Schmidt jorra de uma fonte invisível, oculta no ponto em que o poeta alcança finalmente farto exercício com as palavras, e aí o etéreo substitui o compacto". E citava mesmo "um verso de circunstância" que lhe dedicara outrora, e que fazia questão de repetir: "Fui à fonte de Schmidt,/ beber água, lá fiquei./ Quedava bem no limite/ do reino de onde-não-sei./ Na sua linfa sensível/ água da mais pura lei,/ brilhava o raio invisível/ do amor. Como esquecerei?"

Antonio Olinto, em artigo na "Tribuna da Imprensa" de fevereiro deste ano, em que saúda a reedição dos poemas de Schmidt, diz: "Podemos ver hoje, a 41 anos de sua morte, como a poesia de Schmidt falava por nós. (...) Ao mesmo tempo em que fazia as palavras dançarem, ele se dependurava nelas como elementos solitários de uma declaração de amor ou de uma busca do mesmo (...) Na força de sua lírica, não se detém diante de qualquer bom-mocismo. Não fugia a debates, não deixava assunto de interesse público sem nele entrar com propriedade e em espírito de realidade e de poesia".

Jornalista e político

No começo de 1937 Schmidt foi convidado a escrever uma coluna para o "Correio da Manhã" manteve-a pelo resto de sua vida. Mais tarde, ao iniciar uma amizade duradoura com Roberto Marinho, passaria também a colunista de "O Globo" e muito contribuiria para o estabelecimento da Rede Globo de Televisão – a cuja inauguração, no entanto, não chegaria a assistir, pois faleceu em 8 de fevereiro de 1965.

Plenamente amadurecido como intelectual e como empresário, estaria sempre presente no panorama político – com sua grande habilidade para lidar com pessoas, tendo acesso a todos os setores sociais, tanto no Brasil como no exterior, desenvolveu uma intrincada e fecunda "rede de informações" que alimentava seus artigos e influía diretamente nos rumos econômicos da nação. Não hesitava em denunciar e atacar os políticos que julgava nocivos – o que lhe valeu uma quantidade imensa de inimigos, entre os quais o polêmico Carlos Lacerda. Mas o "gordinho sinistro" era bom de briga e não recuava. Extremamente generoso com os amigos, patrocinou muitas iniciativas culturais – como o "Jornal de Letras" dos irmãos Condé, que só pôde ser criado com o apoio da Orquima, a principal empresa de Schmidt. Foi um dos incentivadores da produção de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues – peça considerada um divisor de águas do teatro brasileiro –, da qual dizia: "É mais que uma peça. É um processo e uma revolução".

Durante o governo Kubitschek, Schmidt exerceria o papel de verdadeira "eminência parda". Em artigo no "Jornal do Brasil" de 21 de dezembro de 2002, o jornalista Murilo Mello Filho, que foi seu amigo, dizia: "Como se fosse um Richelieu redivivo, tinha o gosto de manipular nos bastidores os cordões da cena brasileira e foi uma das vozes mais influentes do seu tempo". Foi o grande planejador e realizador da Operação Pan-Americana (OPA), que concretizava uma verdadeira denúncia do abandono e descaso da política exterior norte-americana para com os países latino-americanos. Escrevendo e agindo, batalhou diariamente para que estes abrissem os olhos para o aviltamento de preços das matérias-primas que forneciam, para a ameaça representada pelo poder tecnológico dos países desenvolvidos e para "o longo exílio na inobjetividade" em que se viam forçados a permanecer. Em 1958 – aproveitando o episódio das pedradas com que o vice-presidente Richard Nixon fora recebido em Caracas – Schmidt escreveu para JK uma histórica carta endereçada ao presidente Dwight Eisenhower, alinhando objetivos considerados "bem ousados" pelos norte-americanos, e clamando por uma imediata reviravolta política. A conseqüência foi a vinda do próprio secretário de Estado John Foster Dulles ao Brasil, para combinar, em célebre reunião privada com Juscelino, as bases da OPA – uma grande vitória diplomática para o Brasil, o reforço necessário para o Programa de Metas de JK. A partir de maio de 1959, Schmidt chefiaria várias missões diplomáticas ao exterior, negociando a política desenvolvimentista. Foi depois nomeado embaixador especial junto à Comunidade Econômica Européia (atual União Européia), para tentar atrair os interesses comerciais dos países do Velho Continente. Um resultado prático da OPA foi a criação, em 1959, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Com os governos Jânio Quadros e João Goulart, Schmidt retraiu-se, doente e completamente desiludido com o verdadeiro desmonte da OPA – cuja pá de cal foi a criação pelo presidente John Kennedy, em março de 1961, da assistencialista Aliança para o Progresso. Como jornalista, continuou, porém, a defender Kubitschek e sua política desenvolvimentista. Em 1964, antes do golpe militar, combatia abertamente Goulart, declarando-o "um homem despreparado, e da espécie dos despreparados simuladores". Quando o general Castello Branco foi eleito presidente da República, por voto indireto, Schmidt, que era seu amigo, criou novo alento, baseado no espírito nacionalista de Castello e em sua boa-fé, segundo dizem, ao prometer eleições livres no ano seguinte. Suas esperanças, como as de tantos, não duraram mais de três meses – logo começou a fazer, em suas colunas, advertências e denúncias sobre o superpoder militar que se estabelecia: "Ainda é cedo para julgar, mas já é tempo para alertar. Estamos em condições de distinguir certas inclinações, e confesso que elas não tiveram o poder de conservar em mim o mesmo fervor das primeiras horas".

A cassação de Juscelino, em junho de 1964, escandalizou o país e deixou Schmidt desolado. Antes que o ex-presidente partisse para Paris, em exílio voluntário, pronunciou um discurso de despedida – escrito por Schmidt. A partir dali e até sua morte súbita, oito meses mais tarde, o empresário/poeta tornaria suas críticas a Castello, à política econômica de Roberto Campos e ao poder militar cada vez mais abertas e acerbas. Recusou cargos com os quais o novo governo lhe acenava, mas intercedeu pessoalmente junto a Castello Branco, numerosas vezes, em favor de amigos, e até de desconhecidos, que eram presos e torturados.

 

 

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