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Juó Bananére, a divina irreverência

Sarcasmo, anarquia e criatividade: um retrato da capital paulista no início do século 20

CECÍLIA PRADA


Bananére, em desenho de Voltolino /
Reprodução

No último quartel do século 19 a cidade de São Paulo, que até então não passava de um "antigo entreposto de tropeiros", animado tão-somente pelo intelectualismo e pela tradição romântica de sua Academia de Direito, começou a adquirir foros de cidade grande – a remodelação urbana acelerada iniciada no governo de João Teodoro Xavier de Matos (1872-75), com alargamento de ruas, criação de praças e jardins públicos, saneamento básico, organização do sistema de transportes públicos, visava implantar uma estrutura urbana que se igualasse em pujança e elegância à dos grandes centros europeus. Essa transformação da capital paulista, no entanto, não pode ser vista unicamente como um sonho de sofisticação e conforto, próprio de uma elite de barões do café habituados a queimar seu dinheiro com coristas parisienses. Ela correspondia também a uma "europeização" real e gradativa, com o estabelecimento, primeiro no interior do estado – nas fazendas de café – e depois na capital em franco processo de industrialização, das muitas levas de imigrantes, principalmente italianos, que a partir de meados do século 19 haviam começado a chegar ao Brasil.

Com o advento da República, a hegemonia da cidade de São Paulo afirma-se totalmente, em relação aos outros centros importantes do estado – Campinas disputou durante muitos anos essa posição –, e seu ímpeto desenvolvimentista também se intensifica, em independência e como foco dos "novos ideais". Já por volta de 1900 podia-se ver, segundo relatos de viajantes estrangeiros, que em São Paulo havia uma "outra cidade", que não constava das belas fotografias encomendadas a Guilherme Gaensly, e que crescia em ritmo diverso das discussões sobre arruamentos e bairros planejados. Como diz Candido Malta Campos, em seu livro Os Rumos da Cidade, uma cidade "oficial" não parecia ver a cidade popular que crescia a seu lado: "Na zona leste, para além do Tamanduateí, os bairros industriais da Mooca, Brás e Belenzinho formavam um mundo à parte, regido pelos apitos das fábricas, abrigando em cortiços ou vilas a imensa população imigrante. Suas chaminés enfumaçadas eram vistas pelos paulistanos do centro como uma paisagem estranha e vagamente ameaçadora".

Nas décadas seguintes, a euforia prevalecente com o afluxo do dinheiro e a importação de cultura européia agitava toda a cidade de São Paulo, que se transformava rapidamente em uma metrópole cosmopolita, de ritmo acelerado, em cujas ruas ouviam-se algaravias em dez línguas e cujos usos e costumes incorporavam novidades procedentes de várias regiões e etnias. Com destaque para o italiano – idioma que rapidamente se misturou com o português, de tal maneira afetando seu vocabulário e pronúncia, que brasileiros provenientes de outras regiões do país às vezes demoravam em se acostumar com o "ítalo-paulista".

Em 1900 a massa de imigrantes representava 25% da população do estado. Com o desenvolvimento da imprensa e do gosto pela leitura, apareceram jornais das várias etnias migratórias – com predomínio dos italianos. Entre 1882 e 1914, foram publicados em São Paulo 140 títulos de jornais em italiano. Na literatura, Antonio de Alcântara Machado (1901-1935) retratou com perfeição, principalmente no livro Brás, Bexiga e Barra Funda, de 1927, os personagens e os costumes pitorescos dos imigrantes italianos, em sua interação com os segmentos mais tradicionais das famílias paulistas. Mas, se hoje esse ficcionista é conhecido pela sua extraordinária contribuição ao estudo sociológico da sociedade paulista da época, esquecida, ou pouco mencionada, é a sua dívida para com um cronista mais antigo, cuja importância ele sempre reconheceu, destacando seu caráter de "produtor de modelos de estilo": Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (nenhum parentesco entre os dois), que se tornou conhecido sob o pseudônimo de Juó Bananére.

Esse descendente de uma das mais tradicionais famílias do vale do Paraíba nasceu em Pindamonhangaba em 1892 e faleceu na cidade de São Paulo, em 1933. Fez o estudo primário em Araraquara e o secundário em Campinas, e de 1911 a 1917 cursou a Escola Politécnica de São Paulo. Se como engenheiro foi pouco conhecido seu trabalho, destacou-se muito cedo, no entanto, como jornalista e humorista – já em 1911 o encontramos nas páginas da revista "O Pirralho", criada e dirigida por Oswald de Andrade, fazendo crônicas em que imitava a fala dos imigrantes italianos, sob o título de Cartas d’Abax’o Piques, assinadas por Juó Bananére. A esse personagem, graficamente criado pelo ilustrador e caricaturista Voltolino (Lemmo Lemmi) em 1909, Marcondes Machado se manteria fiel até sua morte.

Vale a pena lembrar que, de Voltolino, dizia Sérgio Milliet: "Os historiadores jamais poderão entender o que foi o início do século 20 paulistano sem antes observar as imagens do artista". E, segundo Ana Maria Belluzzo, no livro Voltolino e as Raízes do Modernismo, o personagem baseou-se em um tipo real da época: "Foi Francisco Jacheo, conhecido humorista, inseparável de Voltolino, que usava o nome de dom Ciccio, quem inspirou a criação de Juó Bananére".

Um dialeto próprio

Embora costume ser relacionado como figura do pré-modernismo brasileiro, na verdade Alexandre Marcondes Machado foi um artista totalmente independente, pois, encarnando-se no personagem do anedótico e falastrão Juó Bananére, conseguiu durante mais de 20 anos manter seu original patois feito da fusão do português com o italiano, apelidado de "paulistaliano" por Monteiro Lobato. O "macarrônico" resultante foi divulgado entre um grande público, assíduo leitor das saborosas crônicas em que o autor que se dizia "poeta, barbieri e giurnaliste" vertia suas críticas à sociedade e às figuras políticas da Belle Époque paulistana. Não é fácil de ser entendido esse "idioma" por quem não conheça a língua italiana e seus principais dialetos – seu grande efeito é a oralidade subjacente, a reprodução exata do modo de falar e da mentalidade dos imigrantes, principalmente os da baixa Itália, pois tem fortes ressaibos do calabrês e do napolitano.

Ao contrastar seu modo de expressão – uma língua estropiada e rude – com a seriedade dos assuntos e a cultura literária que possuía, Juó Bananére aproxima-se – até com certa antecipação – daquela qualidade clownesca que no início da década de 1920, e principalmente depois da Semana de 22, seria a característica de um Oswald de Andrade. Os dois, aliás, estiveram em estreito contato desde a estréia de Bananére em "O Pirralho" até o rompimento, em 1915 – cuja causa foi o humorista ter levado longe demais suas sátiras, parodiando a poesia Ouvir Estrelas (ver abaixo), de Olavo Bilac, que era considerado "o príncipe dos poetas brasileiros".

Com a recuperação da obra de Marcondes Machado que tem sido feita recentemente, principalmente no âmbito acadêmico, ressaltam os críticos um outro aspecto fundamental da sua linguagem: é preciso não esquecer que toda a infância e a adolescência do autor foram passadas no interior de São Paulo – donde resultar que em "Juó Bananére" temos também a corporificação de um tipo muito popular da cultura "caipira", o "João Bananeiro" que aparece com freqüência em autores típicos, como Cornélio Pires e Valdomiro Silveira.

Esse lastro cultural sedimenta o dialeto posterior criado, surpreendentemente, por Marcondes Machado, que por família e educação deveria ser um lídimo representante da aristocracia cafeeira, mas que soube ver no ítalo-paulistano uma qualidade ímpar de expressar o efêmero e o pitoresco, e o melhor meio de retratar uma cidade em mutação veloz, capaz de integrar os elementos mais díspares de culturas diversas. Como diz Elias Thomé Saliba em seu livro Raízes do Riso, "captar oralmente a fala paulistana da época era captar também a fala acaipirada, proveniente de traços já existentes no linguajar, embora dificilmente perceptíveis". Na prosa de Juó Bananére há elementos essenciais de um possível dialeto caipira: em alguns aspectos fonéticos, como as formas sincréticas de consoantes (b e v) e de vogais (a/u – ão/on), e na sintaxe, em construções do tipo "a pulitica é maise migliore de bó", "si o meu carculo non erra", "temos fazido", etc. Ainda segundo Saliba, até hoje, apesar dos vários estudos e tentativas de uma sistematização da "anarquia macarrônica de Bananére" – sendo um dos mais importantes o de Benedito Antunes na reedição das Cartas d’Abax’o Piques (Unesp, 1996) –, é quase impossível encontrar nela um padrão. Pois "sua anarquia se aproxima muito mais do caráter de improvisação, ligeireza e um certo desleixo das criações de Cornélio Pires".

A inventividade lingüística de Marcondes Machado no final de sua curta vida extrapolou os limites ítalo-caipiras impostos às suas paródias, estendendo-se ao arremedo também das falas das outras nacionalidades presentes na imigração paulista – quando conseguiu, durante alguns meses de 1933, manter um jornal seu, o Diário do Abax’o Piques, criou outros heterônimos: o árabe Salim Gamons (que escrevia em uma mistura de árabe, armênio e ídiche), o português Pacheco d’Eca e o japonês Tebato Nakara (com este último heterônimo mantinha uma coluna intitulada "Taka-Shumbo Shimbun").

O riso do anarquista

Não se esgota, porém, na criatividade lingüística o talento de Marcondes Machado – segundo a cuidadosa análise de Benedito Antunes, "a partir da língua macarrônica e da expansão que esta vai sofrendo ao longo de seus textos, ele desenvolve uma maneira particular de abordar os assuntos", pois, sob as formas mais diversas – paródias, sátiras, críticas –, mantém uma determinada atitude diante do seu material de trabalho. Que é extraído da variegada, multicolor sociedade das décadas de 1910 e 20, com seus figurões políticos, comendadores, "cavvalieri-uffizziali", janotas, melindrosas, "futuristte", membros das igrejinhas e panelinhas literárias.

A ninguém poupava, com sua língua ferina. O que, se junto ao público o transformava no cronista mais popular da cidade, de outro lado acabava por desagradar a gregos e troianos da situação. Antonio de Alcântara Machado dizia, dele: "Em Bananére o ridículo dos homens e das coisas ganhava um colorido gritante que o fazia percebido pelos olhos mais ingênuos" – mas o anarquismo intrínseco do personagem que encarnou tornava difícil sua convivência nos círculos intelectuais. É por esse motivo que não se juntou aos "revolucionários" de 22 – não tinha uma programação política ou estética, e não era bem aceito entre eles. Agia no campo do efêmero e circunstancial, como outros humoristas da época, que por isso mesmo não resistiram ao impacto da profunda transformação político-social que o país sofreria, de meados da década de 1920 em diante. Mas nada escapava à sua crítica e "participava", a seu modo, das correntes da modernidade. Já em 1912 dizia, da ortografia moderna, "a artugrafia muderna é una maniera de scrivê, chi a genti escrive uguali come dice", e traduzia para seu singular dialeto alguns postulados do futurista Marinetti, que tanta influência teria sobre o movimento modernista: "Non si pode butá divérbio, né diggetivo; os verso tê quantas sillaba a genti vulevo". Ao contar uma história em que aparece uma moça montada em um leão, esclarece: "Ella está pillada, pur causa che ista storia é futuristte, i co futuro tuttos munno tê di andá pillado".

Depois de sua demissão da revista "O Pirralho", Marcondes Machado passou a colaborar em revistas menores, como "O Queixoso", ou, esporadicamente, no "Diário Nacional". A convite de outro famoso humorista, Aparício Torelly (o Barão de Itararé), a partir de 1931 e até sua morte colaborou também, com suas crônicas macarrônicas, para o periódico "A Manha", do Rio de Janeiro. No alvorecer da "era do rádio", encontrou outro meio de escoar sua expressividade plurilingüística – nos programas de que participou, e principalmente nos discos que gravou, a partir de 1931, para a Colúmbia, provou que, mais do que escritor, era um artista nato, um mímico, um poeta popular de grande verve, capaz de captar todos os matizes da fala ítalo-caipira e de divertir imensamente sua audiência. Escreveu também várias peças para o teatro de revista, sendo constante sua colaboração com Danton Vampré – infelizmente estão quase todas elas perdidas.

Seu maior e mais duradouro sucesso seria o livro La Divina Increnca, uma paródia modernista da Divina Comédia de Dante – entre 1915 e 1993 a obra teve 11 edições. Era uma antologia com 35 poemas paródicos, oito dos quais foram adaptados pelo autor para ser cantados com melodias populares da época, entre elas algumas de Catulo da Paixão Cearense. Nas edições sucessivas esse livro vai incorporando algumas de suas criações para o teatro, mais poemas e crônicas. Em 1918, La Divina Increnca transforma-se no maior sucesso teatral do ano – estruturada em dois atos e musicada por L. Alves Silveira, foi montada pela Companhia Arruda.

Apresentando a edição de 1966 desse livro, o historiador Mário Leite, que fora colega de Marcondes Machado na Politécnica, descreve como no trajeto diário que fazia até a faculdade, cruzando as ruas do pitoresco e multirracial bairro do Bom Retiro, o escritor ia assimilando o material que apresentaria na pele de Bananére: "… ouvíamos freqüentemente, dos magotes de ‘bambini’ louros e morenos, originários de casais do norte, centro e sul da Península, vivos, álacres, em partidas de bola, de peteca ou de amarelinha, de mistura com meninos da terra, sem faltar um ou outro pretinho, essa algaravia carregada de frases populares locais, entremeadas de expressões em italiano".

Seria um erro, contudo, ver Marcondes Machado somente como um escritor "pitoresco", mas datado, e que, pela sua jocosidade irreverente, teria sido "o terror dos políticos paulistas" – como o define Raimundo de Menezes. Há no seu humor, na sua verve, uma qualidade de permanência atemporal que se filia às grandes criações de "irreverentes" históricos de grande envergadura, como um François Villon, um Cervantes, um Rabelais – segundo Cristina Fonseca, em seu livro Juó Bananére – O Abuso em Blague, "Bananére, assim como o escritor francês [Rabelais], vai buscar na fonte popular do carnaval, das piadas dos estudantes, das grandes gargalhadas, das praças públicas e da gente simples das ruas, os elementos da sua criação". Essa ensaísta, que empreende uma apaixonada revisão da obra de Marcondes Machado, situa-a dentro daquela "carnavalização" definida pelo crítico russo Bakhtin como o gênero literário que remonta à sátira menipéia da Antiguidade clássica, e que instaurava "uma cosmovisão burlesca", expressa sobretudo nas grandes festas religiosas, a começar pelo carnaval – "um riso que atinge a todas as coisas e pessoas", por ser ao mesmo tempo burlador e sarcástico.

Não é à toa, diz ainda Cristina Fonseca, que o riso anárquico de Bananére coincide com o espírito de época prevalecente, no Brasil, entre as décadas de 1910 e de 1930, quando o carnaval e a visão carnavalesca "impregnavam todas as instâncias da vida e da arte". A maneira simultaneamente jocosa e sarcástica introduzida pela geração modernista era a atitude mais adequada, certamente, para enfrentar os grandes problemas da nacionalidade. E enquanto nas artes plásticas, principalmente na caricatura, nas chanchadas cinematográficas, no teatro burlesco e no rádio esse espírito se alastrava, Juó Bananére, com sua La Divina Increnca, procurava integrar a literatura com o espírito do seu tempo, assimilando os elementos vindos desses outros campos. "A grandeza de sua obra", diz Cristina Fonseca, "reside na busca da corrente evolutiva da arte cômica universal e sua adaptação àquilo que ela tem em comum com o complexo riso popular do Brasil e suas múltiplas formas e comunicações."


Una spiada na gianella

Olavo Bilac não escapou da irreverência de Bananére.
Abaixo sua versão do poema "Ouvir estrelas".

Che scuitá strella, né meia strella!
Vucê stá maluco! E io ti diró intanto,
Chi p’ra iscuitalas moltas veiz livanto,
I vô dá una spiada na gianella.

I passo as notte acunversáno c’oella,
Inguanto che as otra lá d’un canto
Stó mi spiano. I o sol come un briglianto
Nasce. Oglio p’ru çeu: – Cadê strella?!

Direis intó: – Ó mio inlustre amigo!
O chi é chi as strellas ti dizia
Quano illas viéro acunversá contigo?

Io ti diró: – Studi p’ra intendela,
Pois só chi giá studô Astrolomia,
É capaiz de intendê istas strella.

 

 

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