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No Maranhão, um sonho destruído
Pesquisadores revelam fatos pouco conhecidos sobre a Balaiada
JOÃO MAURO ARAUJO
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Após a abdicação do imperador dom Pedro I, em 7 de abril de 1831, o Brasil conheceu uma das épocas mais violentas de sua história. Dezenas de milhares de pessoas morreram nos conflitos travados durante os nove anos da Regência, período de transição entre o Primeiro e o Segundo Reinado. Como dom Pedro II ainda não tinha idade suficiente para assumir o poder, criou-se uma disputa entre os liberais e os conservadores – cujos representantes mais extremados defendiam inclusive o retorno imediato de dom Pedro I e a volta à antiga situação.
Todavia, a pólvora só começou a queimar quando às reivindicações de tendência liberal das elites regionais, que reclamavam maior autonomia, somou-se o descontentamento popular. O país passava por intensa crise econômica e a maioria da população continuava a viver em condições miseráveis.
Nesse mesmo período, afloraram práticas ainda bastante comuns em solo nacional, como o "clientelismo", caracterizado pela oferta de cargos públicos em troca de votos ou favores, e o chamado "coronelismo", agravado com a formação da Guarda Nacional, espécie de força paramilitar distrital, cujas patentes eram concedidas aos voluntários conforme sua renda anual. Com isso, os grandes proprietários detinham por lei o comando das milícias, na qualidade de "coronéis". Por fim, um "jeitinho brasileiro" encerraria a Regência ao aprovar a maioridade de dom Pedro II, mesmo tendo ele apenas 14 anos.
As revoltas tiveram início em 1835, com a Cabanagem, no Pará, seguida pela Farroupilha, no Rio Grande do Sul, a Sabinada, na Bahia, e a Balaiada, no Maranhão e no Piauí (ver texto abaixo). Passadas 16 décadas do último conflito regencial, os registros desses movimentos permanecem dispersos na historiografia brasileira e na tradição oral. Não são poucas as interpretações deturpadas a partir de interesses de determinadas classes sociais: "A historiografia é um instrumento eficaz na formação da mentalidade em qualquer sociedade e na reprodução da ideologia da classe dominante", afirma Claudete Maria Miranda Dias, professora do Departamento de Geografia e História da Universidade Federal do Piauí.
Muitos livros didáticos do ensino médio ainda tacham movimentos sociais como a Balaiada de "desenfreada manifestação de banditismo sertanejo", ou algo semelhante. Daí a importância do I Seminário da Balaiada, realizado no Maranhão em maio de 1997, que desencadeou uma série de pesquisas e questionamentos históricos.
Ao vencer a guerra, o coronel Luís Alves de Lima e Silva foi condecorado, passando a utilizar o título de duque de Caxias, e se tornou patrono do exército brasileiro. Seu nome está presente em placas de ruas e avenidas espalhadas pelo Brasil. "A consciência de nação, que vinha da época das lutas pela Independência, foi abafada e, em seu lugar, forjou-se a auto-imagem do brasileiro pacífico, avesso à violência, mantendo-se a primazia de poucos que passam à história como heróis e mitos", comenta Claudete Dias.
História
No dia 13 de dezembro de 1838, os moradores de Vila da Manga (atual Nina Rodrigues) viram chegar à pequena cidade maranhense um grupo formado por cerca de 15 vaqueiros, liderados por Raimundo Gomes Vieira, o "Cara Preta". Gomes dirigiu-se à cadeia no intuito de libertar seu irmão e outros homens que se encontravam aprisionados para prestar o serviço militar. Naquela época, era comum as tropas do governo seqüestrarem homens livres para integrar a marinha ou o exército. Bastava ser pobre, do sexo masculino e ter, preferencialmente, entre 14 e 17 anos de idade. O grupo de Gomes refugiou-se no Piauí, levando armas, comida e toda a disposição de iniciar uma luta há muito latente na população do interior. Contudo, antes de partir, deixou um manifesto endereçado ao prefeito de Vila da Manga, no qual exigia a garantia da Constituição e a renúncia das principais autoridades locais.
Eram tempos raivosos, em que a população se sentia oprimida de várias maneiras. O algodão, principal cultura agrícola do Maranhão, estava em baixa no mercado internacional. Os impostos e o preço das mercadorias no comércio interno, no entanto, permaneciam em ascensão. Os coronéis exploravam os trabalhadores livres, e o chicote continuava a estalar nas costas dos escravos. Por onde passava, a coluna de Gomes ia incorporando novos membros. Nesse contexto, Manuel Francisco dos Anjos uniu-se ao movimento em janeiro de 1839, quando os revoltosos retornaram ao Maranhão. O modesto fabricante de balaios (cestos feitos da palha de babaçu e de buriti) era movido por um desejo de vingança – sua esposa e suas filhas haviam sido violentadas por militares das tropas legalistas. Assim, o grupo de Gomes ganhou a adesão daquele cujo apelido, Balaio, os batizaria.
Logo a Balaiada estaria dividida em várias frentes, invadindo cidades e feitorias dos dois lados do rio Parnaíba, multiplicando-se com o apoio de vaqueiros, artesãos, desertores das forças armadas, escravos fugidos e sertanejos humildes. Se na primeira batalha lutaram 200 homens, poucos meses depois, em abril de 1839, 2 mil atacaram a Vila do Brejo (MA). No Piauí, receberam apoio dos principais municípios do norte, já que a população enfrentava os mesmos problemas dos maranhenses, com o agravante de viver sob as ordens de um barão autoritário, que os governava desde 1823. A idéia da revolta agradava também aos liberais das camadas médias, como o fazendeiro Lívio Lopes Castelo Branco. A facção política da qual fazia parte, chamada Bem-Te-Vi, criticava principalmente a "Lei dos Prefeitos", segundo a qual os chefes dos municípios eram nomeados pelos presidentes das províncias e tinham atribuições administrativas e policiais, o que ia contra os interesses dos proprietários rurais. Dessa maneira, o movimento tornou-se uma frente ampla e heterogênea, "um verdadeiro amálgama social que expressava a insatisfação de vários setores que se colocavam contra o governo", explica Claudete Dias.
A primeira grande reunião dos exércitos balaios só aconteceria a partir do dia 24 de maio de 1839, quando iniciaram o cerco a Caxias. Após 45 dias, cerca de 6 mil homens das colunas de Raimundo Gomes Vieira, Lívio Lopes Castelo Branco e Manuel Francisco dos Anjos, entre outros, adentraram vitoriosas a segunda maior cidade do Maranhão. Os rebeldes formaram um órgão civil administrativo provisório e um conselho militar, além de uma comissão para negociar suas reivindicações com o governo maranhense, sediado em São Luís. Em troca da deposição das armas, os balaios exigiam, basicamente, cargos administrativos, anistia aos combatentes, fim do recrutamento e melhor distribuição de terras. Apesar da euforia com a ocupação de Caxias, naquele momento manifestaram-se as contradições internas próprias do movimento, já que os políticos liberais objetivavam apenas tomar o poder dos rivais conservadores, mantendo a estrutura social que os favorecia. "Entre as idéias ou os discursos das proclamações e a ação concreta, observa-se uma grande distância. No decorrer da luta, os balaios atacaram fazendas e libertaram escravos, ultrapassando, na prática, as reivindicações liberais", avalia Claudete Dias.
Os rebeldes foram expulsos de Caxias após pouco mais de um mês e novamente dividiram-se em colunas, seguindo pelas brenhas das duas províncias. O grupo liderado pelo Balaio resolveu concentrar esforços para invadir Oeiras, então capital piauiense. Em 29 de agosto de 1839, Francisco dos Anjos lançou uma proclamação aos habitantes do Piauí: "Somos portanto constrangidos a marchar para vossa capital, não como inimigos devastadores; marchamos como vossos libertadores; vamos vos tirar de um jugo, que há muito sofreis com pesar". Chegaram a organizar o Exército Bem-Te-Vi que Guarnece as Forças do Piauí, que contava inclusive com um estatuto para disciplinar suas colunas: "Esse regulamento serve também para descaracterizar o movimento como banditismo. O roubo era proibido, nenhum soldado podia lançar mão de coisas alheias", escreve Claudete Dias, no livro Balaios e Bem-Te-Vis: a Guerrilha Sertaneja, resultado de minuciosa pesquisa no arquivo público do Piauí, onde deparou com 8 mil documentos referentes aos anos de 1817 a 1850.
Temerosas, as autoridades pediram reforços a Rio de Janeiro, Ceará e Bahia, que enviaram armas, soldados e equipamentos. Diante da impossibilidade de invadir Oeiras, o grupo do Balaio retornou ao Maranhão, arregimentando forças para a segunda invasão de Caxias, em outubro de 1839. O momento era de desgaste e baixas significativas: nessa investida, Francisco dos Anjos morreu baleado. Os rebeldes conseguiram retomar a cidade, mas foram mais uma vez expulsos pouco depois. A essa altura, percebendo que os objetivos da revolta estavam longe de ser consumados, Lívio Lopes Castelo Branco desacreditou do movimento e fugiu. A repressão no Piauí foi intensificada, fazendo com que parte dos balaios se refugiassem no Ceará, onde tentaram apoio dos nativos habitantes das serras – eventos sobre os quais, segundo Claudete Dias, ainda há falta de dados históricos.
Em dezembro de 1839, ocorreu uma terceira ocupação de Caxias pelos rebeldes. Luís Alves de Lima e Silva, nomeado comandante das armas e presidente da província do Maranhão, partiu então da sede do governo regencial com a missão de acabar de vez com a Balaiada, sob as bênçãos de conservadores e liberais, naquele instante definitivamente contrários aos rebeldes. À frente de 8 mil homens, com dinheiro e muito material bélico à sua disposição, o futuro duque retomou Caxias e ali instalou seu quartel-general. Sob a alegação de que zelava pelos "interesses nacionais", promoveu execuções sumárias, degolando prisioneiros rendidos e pessoas "suspeitas".
Em junho de 1840, os rebeldes que sobreviveram à luta de Caxias juntaram-se ao numeroso grupo de escravos liderados por Cosme Bento das Chagas, na região de Codó (MA). Desde 1830, bem antes da eclosão da Balaiada, Chagas, ou Negro Cosme, como era mais conhecido, comandava a luta contra o regime de escravidão, reunindo negros fugitivos e invadindo fazendas para libertar os que ainda estavam escravizados. Em seu quilombo principal, o maior da história do Maranhão – situado em Lagoa Amarela –, o Negro Cosme, que era alfabetizado, chegou a inaugurar uma escola de primeiras letras. A união dos aquilombados com os balaios levou pânico aos coronéis e à ordem escravista brasileira. Com isso, o Negro Cosme e seu grupo de cerca de 3 mil homens tornaram-se o inimigo principal do duque de Caxias.
Quando dom Pedro II assumiu o poder e decretou anistia aos rebeldes, em agosto de 1840, surgiu nova cisão no movimento balaio, já que Gomes e outros líderes a aceitaram, mas Chagas e seu pelotão de escravos não tiveram alternativa a não ser continuar lutando. Em janeiro de 1841, os governos do Piauí e do Maranhão anunciaram a "pacificação" de suas províncias. No mês seguinte, Cosme Bento das Chagas enfrentou sua última peleja, quando foi ferido e preso. Condenado à morte, em setembro de 1842 foi levado à forca, em praça pública, no município de Itapecuru Mirim (MA).
Memorial
Há quase dois séculos, os balaios percorreram largas extensões do Piauí e do Maranhão, que ainda guardam importantes vestígios históricos dessa passagem. Preocupados com a possível perda desse material, estudiosos maranhenses promoveram, em maio de 1997, o I Seminário da Balaiada. Em agosto desse mesmo ano, munidos de ferramentas próprias de arqueólogos, foram a campo em busca de indícios materiais. A pesquisa, coordenada por Deusdedit Carneiro Filho, com apoio de estudantes da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), utilizou um processo de escavação sistemática na área do morro do Alecrim, em Caxias, onde foram encontrados principalmente artefatos bélicos: projéteis, pederneiras, etc. "No Maranhão, até então nenhuma pesquisa tinha sido feita de forma planejada. Isso deve servir de exemplo, inclusive, a outros locais que tenham patrimônio arqueológico", comenta Carneiro Filho, em documentário sobre a Balaiada, dirigido por Wybson Carvalho.
Ao lado das ruínas do quartel de Caxias, restauradas com o acompanhamento técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foi inaugurado em 16 de dezembro de 2004 o Memorial da Balaiada, que integra atualmente museu-escola, biblioteca, centro de documentação e um laboratório de restauração de textos antigos, no qual trabalham 11 alunos do Departamento de História da Uema, em troca de bolsas de estudo financiadas pelo município. "Dizia-se que, quando invadiram Caxias, os balaios tinham destruído todos os documentos. Estamos constatando o contrário, pois encontramos registros do século 18", afirma Maria Bertolina Costa, diretora do Memorial da Balaiada.
Diferentemente de muitos museus existentes no Brasil, o Memorial – apoiado pelo Ministério da Cultura, com patrocínio do Banco da Amazônia (por meio da Lei Rouanet) – visa uma forma de preservação da história a partir do olhar dos excluídos. "Por essa razão, mandamos construir as estátuas dos quatro principais líderes balaios, em confronto com a do duque de Caxias, do outro lado da praça", lembra Maria Bertolina. Isso pode ser confirmado na constante referência aos rebeldes nas partes externa e interna do museu, que conta ainda com uma maquete que reproduz o episódio da primeira invasão de Caxias pelos balaios. Em 2005, calcula-se que o Memorial tenha recebido mais de 10 mil visitantes. Há também um projeto em negociação com representantes de vários municípios, que traçaria a Trilha da Balaiada, com os caminhos percorridos pelos integrantes do movimento.
Maria Bertolina Costa vem trabalhando em sua dissertação de mestrado com o mapeamento do registro oral que ficou preservado em Caxias. "A memória está muito fragmentada na cidade. Fiz uma opção metodológica por pessoas que não tiveram contato com a história escrita da Balaiada, até para saber como isso ficou guardado ao longo do tempo, no imaginário". Talvez esse estudo, ainda inconcluso, traga versões contrárias às comumente repassadas pela historiografia. Por exemplo, uma das questões polêmicas em relação à Balaiada diz respeito à proposta política dos rebeldes. "Boa parte dos historiadores acha que o movimento era completamente desarticulado, apolítico. A gente não pode pensar a população como acéfala, sem projeto de sociedade. Os escravos tinham uma proposta política. É possível perceber isso claramente nos documentos de Chagas, que falam em ‘república sem escravidão’ ", conclui Maria Bertolina. Essas e outras reflexões precisam ser estimuladas, para que a história não fique resumida ao homem de chapéu com a espada na mão, em cima do cavalo branco.
Batalhas regenciais
As duas primeiras insurreições do período regencial tiveram início no ano de 1835. Uma aconteceu na região norte, a outra no sul do país. Na província do Pará, os "cabanos" – pessoas pobres que se espremiam em casebres nas margens dos rios –- reclamavam melhores condições de vida, enquanto os setores da elite contestavam o fato de não poder eleger o governante da província, que era nomeado pela cúpula do país. Negros, mestiços, brancos e índios dominaram Belém por mais de um ano, formando a República dos Cabanos. Sob pretexto de manter a unidade territorial, a repressão veio no encalço dos sediciosos, resultando da "Cabanagem" um saldo de 30 mil mortos, ou seja, mais de 20% da população paraense.
No Rio Grande do Sul, a revolta foi contraditoriamente batizada de "Farroupilha" (palavra que designa pessoa maltrapilha, esfarrapada), já que as reivindicações partiam dos proprietários de terra e gado. O governo brasileiro favorecia as importações de charque do Prata, prejudicando os produtores gaúchos, que o vendiam no mercado interno. Essa insatisfação se manifestou na busca por autonomia política e ideais republicanos. Com a tomada de Porto Alegre, em 1835, e de Santa Catarina três anos depois, nasciam respectivamente as Repúblicas Rio-Grandense e Catarinense. Luís Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias, foi enviado para lá. Contudo, diferentemente do que ocorreu na Balaiada, em Porto Alegre ele não cortou nenhuma cabeça – afinal, aquele era um movimento de elites. Assinou acordo com as lideranças, em março de 1845, prometendo taxar o charque platino em 25%, além de decretar anistia geral.
Na terceira insubordinação provincial, as camadas mais pobres da Bahia, junto com os soldados de baixos soldos e a classe média urbana, solidarizaram-se com a causa do médico e jornalista Francisco Sabino (daí o nome "Sabinada"), que desejava proclamar a República Bahiense, enquanto durasse a menoridade de Pedro II. A cidade de Salvador foi proclamada república independente em novembro de 1837, mas por apenas alguns meses. As tropas legalistas tomaram-na dos rebeldes, num combate que resultou em cerca de 4 mil mortes.