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Rumo à extinção

Anfíbios, ameaçados de desaparecer, preocupam especialistas

EVANILDO DA SILVEIRA


Atelognathus patagonicus / Foto: Maria Gabriela Perotti

Depois de 360 milhões de anos vivendo muito bem na Terra, os anfíbios estão em perigo. Populações e espécies desse grupo de animais vêm escasseando, estão sob ameaça de extinção ou até mesmo desapareceram. Segundo a Avaliação Global de Anfíbios (Global Amphibian Assessment – GAA), que reúne pesquisadores do mundo todo, das cerca de 6 mil espécies conhecidas, nada menos que 2.469, ou 42% do total, estão com população em queda. Dessas, 1.856 (31% das 6 mil) estão ameaçadas em algum grau. No Brasil, há pelo menos 31 espécies em declínio e 26 correm o risco de desaparecer.

Para quem vê sapos, rãs e pererecas, os anfíbios mais conhecidos, como bichos asquerosos e repugnantes, que não despertam a mesma simpatia que os micos-leões-dourados e as ararinhas-azuis, pode parecer descabida a preocupação com o declínio ou a extinção desses animais. Quem pensa assim comete um engano. Os anfíbios – grupo de vertebrados que se divide em três ordens: anuros (sapos, rãs e pererecas), urodelos (salamandras) e gimnofionos (cecílias ou cobras-cegas) – são importantíssimos para a preservação do meio ambiente, como destaca a bióloga Lycia de Brito Gitirana, do Departamento de Histologia e Embriologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "São predadores de insetos e invertebrados, e mantêm em equilíbrio a população dos animais desses grupos."

A diminuição ou ausência deles leva a um desequilíbrio, com o aumento de mosquitos transmissores de doenças, como o da dengue, por exemplo."Não havendo predadores naturais, a quantidade desses mosquitos aumenta drasticamente e como conseqüência o próprio homem é atingido", diz Lycia. Além disso, os anfíbios também são presas, servindo de alimento a muitos grupos de animais, como cobras, aves e mamíferos. Sua ausência poderia interromper a cadeia alimentar em algum ponto. Os girinos, a primeira fase da vida dos anuros, vivem na água, e também são importantes para o equilíbrio do ambiente aquático, pois auxiliam na reciclagem de nutrientes.

Mas os anfíbios, ao contrário do que se possa pensar, têm seus pontos fracos. O mais notável é a respiração pela pele, que os torna ótimos bioindicadores das condições do ambiente, mas pode levá-los à morte. Qualquer poluição do ar ou da água os afeta. Por isso, quando o meio em que vivem está sendo degradado, eles são os primeiros a dar o alarme. Se algo está prejudicando os anfíbios, provavelmente afetará outros animais e até mesmo o homem. "O ciclo em duas fases, na água e na terra, e a pele extremamente permeável tornam-nos suscetíveis a alterações químicas e ambientais", explica a bióloga Vanessa Verdade, da Universidade de São Paulo (USP). "Por isso, quase sempre esse é o primeiro grupo da fauna a responder a esse tipo de mudança no ambiente."

Tratamento de doenças

Tão importantes quanto a indicação de desequilíbrios ambientais são os benefícios diretos que esse grupo de animais pode trazer ao homem. Eles representam um estoque ainda pouco divulgado de produtos farmacêuticos novos. Centenas de substâncias químicas já foram isoladas da pele de anfíbios, algumas das quais estão sendo utilizadas no tratamento de queimaduras e de várias doenças. "São conhecidos compostos produzidos por anfíbios com atuação bactericida e fungicida e outros que podem ser utilizados como anticoncepcionais, contra males cardíacos e úlceras gástricas, e como controladores de pressão arterial", diz Vanessa. "Sem os anfíbios, perde-se qualidade ambiental e a cura potencial de muitos males humanos."

Esses são alguns dos motivos, além dos prejuízos relativos à biodiversidade que o desaparecimento de qualquer espécie acarreta, pelos quais pesquisadores do mundo inteiro estão preocupados com o declínio desse grupo de animais. O fenômeno é tão grave que vários simpósios internacionais sobre o assunto vêm sendo realizados. Um exemplo é a GAA, uma série de workshops organizados pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), em várias partes do globo, para reunir cientistas que trabalham com anfíbios e ordenar toda a informação disponível sobre cada espécie existente. O objetivo é definir o grau de ameaça e de conhecimento em relação a cada uma e ajudar na sua conservação. Existe até uma publicação especializada sobre o desaparecimento dos anfíbios, que divulga trabalhos de estudiosos de todo o mundo, a "Froglog", da IUCN.

Além disso, foi criada a Rede de Análise de Anfíbios Neotropicais Ameaçados (Rana), que reúne centenas de cientistas de diversos países com o objetivo de encontrar respostas que expliquem o fenômeno. Há ainda programas de estudo, a maioria internacionais, mas presentes também no Brasil, que visam integrar pesquisadores e ensinar futuros profissionais a trabalhar com o tema do declínio dos anfíbios. Essas organizações muitas vezes financiam pesquisas e encontros, dos quais resultam diretrizes a ser seguidas mundialmente para combater o problema.

O desaparecimento dos anfíbios foi discutido pela primeira vez no I Congresso Mundial de Herpetologia, realizado na Inglaterra, em 1989, quando cientistas de diversos países relataram suas observações a respeito da diminuição de algumas populações desses animais. "O fenômeno está ocorrendo praticamente no mundo inteiro", explica a bióloga e herpetologista Paula Cabral Eterovick, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). "A maior parte dos casos, no entanto, tem sido registrada em regiões tropicais montanhosas."

De acordo com o herpetologista Sergio Potsch de Carvalho e Silva, da UFRJ, hoje os casos mais comuns de diminuição de populações ocorrem nas Américas, na Europa e na Austrália. "O fenômeno é mais acentuado na Austrália e nas Américas, principalmente na América Central e no Caribe", afirma. "Relatos de declínio são mais freqüentes em espécies de médio e grande porte e que vivem em grandes altitudes." Há inclusive informações de casos em áreas protegidas. "A extinção de espécies é esperada em locais em que o ambiente está degradado", diz Vanessa, da USP. "Mas a diminuição de populações em áreas aparentemente bem preservadas é preocupante, pois resulta de fatores ainda não identificados."

Seja qual for o inimigo, a América Central é um exemplo de seu poder de fogo. Das 669 espécies existentes na região, há informações sobre o estado de conservação de 539. Um estudo recente, realizado por um grupo de pesquisadores de vários países, constatou que 257 dessas 539, ou 48%, encontram-se ameaçadas e poderão desaparecer. A equipe verificou ainda que 81 delas, o que equivale a 15% do universo estudado, estão em perigo crítico de extinção, a mais alta categoria de risco da Lista Vermelha da IUCN. A maioria dessas espécies não têm sido vistas nos últimos dez anos e podem, portanto, já estar extintas na América Central.

No Brasil, foram constatados casos de espécies em declínio na serra do Mar, em Boracéia (SP), em Santa Teresa e Linhares (ES), no maciço da Tijuca, em Teresópolis e na serra da Mantiqueira, em Itatiaia (RJ). Os casos mais preocupantes estão acontecendo em Boracéia e em Santa Teresa. Várias espécies encontradas nessas regiões até 1979 – Thoropa miliaris, Cycloramphus spp., Hylodes asper e Crossodactylus spp., por exemplo – desapareceram depois disso e até recentemente não voltaram a ser registradas. "Das 26 espécies de anfíbios sob ameaça de extinção constantes da lista oficial, 23 são da Mata Atlântica e três da Amazônia", diz Silva. "Além delas, há uma já extinta (Phrynomedusa fimbriata)."

Qualquer que seja o motivo do fenômeno, o certo é que o Brasil é o país que mais perde com o declínio das populações de anfíbios, já que detém o maior número de espécies. Das mais de 3,5 mil de anuros conhecidas, mais de 500 são registradas no Brasil. Assim como uma (Bolitoglossa altamazonica) das 400 de salamandras e três famílias de cecílias.

Causas desconhecidas

Todo o esforço da comunidade científica internacional ainda não foi suficiente para determinar o que tem provocado o declínio, ou mesmo a extinção, de muitas espécies de anfíbios. "Há diversas causas possíveis", diz o biólogo Andrés Merino-Viteri, da Escola de Biologia da Pontifícia Universidade Católica do Equador (Puce) e autor de uma tese sobre os motivos do desaparecimento, em seu país, de algumas espécies de anfíbios dos Andes. "Entre elas está a devastação do ambiente natural, provocada pelo homem, com a destruição de habitats. A chuva ácida causada pela poluição do ar, inseticidas, herbicidas, fungicidas e resíduos industriais são outros fatores que agravam o problema."

Merino-Viteri, que trabalha no Museu de Zoologia da Puce e realiza estudos com anfíbios desde 1998, cita também a introdução de espécies exóticas em ambientes onde vivem anfíbios como uma das causas da diminuição e extinção de sapos, rãs e pererecas. É o caso, por exemplo, da truta, que tem os girinos entre suas fontes de alimentação. Espécies vegetais, como o pinus e o eucalipto, também contribuem para agravar o problema. Elas substituem os ambientes naturais, habitats de muitas espécies de anfíbios. "As maiores evidências apontam, no entanto, para o aquecimento global como um dos principais motivos do declínio dos anfíbios", afirma o pesquisador.

Como esses animais são muito sensíveis, até mesmo mudanças no microclima de uma determinada área podem afetá-los. Um exemplo foi registrado nas proximidades de Boracéia, onde é possível que a alteração da cobertura vegetal natural tenha interferido no clima local. Até pouco mais de uma década atrás, a precipitação média anual era de 3 mil milímetros. A partir de 1993, começaram a ser constatadas quedas nesse índice, que é hoje de 1,6 mil milímetros. O clima mais seco, naturalmente, prejudicou as espécies que dependem mais da chuva.

Dois outros fatores contribuem ainda para a extinção dos anfíbios. Um estudo recente, feito na Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, demonstrou que os raios ultravioleta, que atravessam os buracos da camada de ozônio, são altamente prejudiciais aos anfíbios. Comprovou-se que esse tipo de radiação causa anomalias nas moléculas de DNA desses animais e afeta o funcionamento de seu sistema imunológico, tornando ovos e embriões suscetíveis ao ataque de fungos. O outro fator, que tampouco é desprezível, é o consumo humano. Só na França, cerca de 80 milhões de rãs são servidas à mesa todos os anos.

Novo vilão

Mais recentemente vem ganhando importância nessa história um outro vilão: o fungo Batrachochytrium dendrobatidis, cuja proliferação, segundo um estudo realizado por uma equipe internacional de pesquisadores, tem sido favorecida pelo aquecimento global. De acordo com esse trabalho, publicado na edição de janeiro da Nature, uma das mais importantes revistas científicas do mundo, o Batrachochytrium dendrobatidis foi responsável pela extinção nos últimos anos de 70 espécies de sapos da América Central e da região tropical da América do Sul. O estudo é importante porque pela primeira vez a extinção de diversas espécies é vinculada ao aquecimento global.

Também no Brasil os cientistas desconfiam que o fungo está se disseminando mais aceleradamente devido ao aquecimento global, colocando em risco várias espécies de sapos, rãs e pererecas. É o que mostra um trabalho conjunto realizado por pesquisadores do Brasil e da Costa Rica, que analisou 25 espécies de anfíbios de diferentes regiões da Mata Atlântica. Em cinco delas foi constatada a presença do Batrachochytrium dendrobatidis. "É uma descoberta preocupante", diz Vanessa, da USP. "E certamente um alerta para a urgência de realizarmos mais pesquisas."

O fungo causa nos anfíbios uma doença chamada quitridiomicose, sobre a qual ainda pouco se sabe. O que já se verificou é que nos animais adultos ela infecta a pele. Como parte da respiração deles é feita por esse órgão, a infecção pode levá-los à morte. No caso dos girinos, o fungo causa deformações na boca. Também já se sabe que a doença é transmitida pelo contato direto entre os animais ou por dispersão dos esporos do fungo no ambiente, principalmente pela água. O Batrachochytrium dendrobatidis já foi detectado em todos os continentes, menos na Antártida, e está por trás do declínio de pelo menos 93 espécies de anfíbios no mundo, 43 delas na América Latina.

Mais pesquisas

Um dos objetivos dos cientistas que investigam as causas do declínio na população de anfíbios é reverter esse fenômeno, embora não se saiba se isso é possível. "Infelizmente, ainda não há muito que se possa fazer, pois as doenças e o clima não são controláveis por completo", lamenta o equatoriano Merino-Viteri. "Em alguns casos, só é possível proteger os ecossistemas e, em outros, mais extremos, manejar populações de anfíbios em laboratório, onde se podem curar doenças e mantê-los em condições ambientais adequadas."

Para o biólogo Raúl Maneyro, da Faculdade de Ciências da Universidade da República do Uruguai, embora não se possa afirmar que o fenômeno é reversível, há alguns mecanismos que podem amenizá-lo. "Um deles é evitar o tráfico de anfíbios vivos entre países ou regiões", diz. "Se o fungo é um dos causadores do problema, o transporte de animais poderá provocar uma disseminação incontrolável." Maneyro explica que há muitos programas voltados para a divulgação dessa situação, mas poucos recursos destinados a seu estudo específico. "É preciso investir mais em pesquisas, até que se consiga entender o fenômeno. Só assim será possível tentar revertê-lo ou mitigá-lo", afirma.

O brasileiro Sergio Potsch, da UFRJ, tem opinião semelhante. "Para evitar o desaparecimento dos anfíbios é necessário fazer o acompanhamento das populações e realizar mais estudos para conhecer melhor as causas do problema", diz. "O que vem sendo feito é o monitoramento de áreas por grupos de cientistas de diversas universidades e a busca por populações que já não são encontradas há algum tempo. Um exemplo é o projeto Anuros de Altitude de Itatiaia, apoiado pelo Ministério do Meio Ambiente, que tem como objetivo rastrear anfíbios das espécies Holoaden bradei e Paratelmatobius lutzii, endêmicos dessa área e que não são vistos há mais de 20 anos. Essa pesquisa também pretende prover conhecimento sobre o status das espécies encontradas na região."

Para Sergio Potsch, é provável que o desaparecimento de anfíbios ocorra devido a um conjunto de razões, uma se destacando mais que as outras em determinadas regiões. "Embora tenha sido observado declínio de populações em áreas protegidas, a destruição de habitats é considerada a mais importante causa desse fenômeno. Por esse motivo, é necessário conservá-los, principalmente os locais de reprodução."

 

 

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