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A hora e a vez da integração regional

Brasil se volta para os vizinhos, mas busca de liderança atrai desconfiança

OSWALDO RIBAS

A grande novidade da política externa brasileira é o continente sul-americano ter se tornado prioridade no Itamaraty. Depois de séculos mantendo-se de costas para os países vizinhos, limítrofes ou não, o Brasil mudou o foco de seu projeto de inserção internacional: em vez da ênfase no alinhamento com as potências européias e Washington, o governo brasileiro, por meio de seu Ministério das Relações Exteriores, há cerca de uma década vem concentrando suas ações no fortalecimento de blocos econômicos e foros políticos regionais. Essa iniciativa tem como objetivo unificar o discurso dos 12 países soberanos da região e dar maior peso à América do Sul nas decisões de alcance global.

"Só para se ter uma idéia do que representou esse hiato na América do Sul, basta lembrar que a primeira grande reunião de cúpula envolvendo todos os presidentes da região, incluindo o do Brasil, veio a acontecer só no ano 2000, em Brasília, ou seja, 500 anos depois do descobrimento", afirma o professor Marcelo Coutinho, coordenador executivo do Observatório Político Sul-Americano (Opsa) e doutor em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

De fato, quer pela barreira constituída pelo idioma, que historicamente isolou o Brasil na região, quer pelas enormes diferenças culturais, apesar das raízes ibéricas em comum, os brasileiros, influenciados pelo forte traço africano, e os vizinhos de origem hispânica, com extraordinária presença indígena, mantiveram ao longo do tempo uma atitude não de cooperação, mas de desconfiança mútua. Do lado hispânico, de acordo com os historiadores, sempre houve um receio em relação a um país de dimensões tão grandes, especialmente após o período do Império, em que o governo brasileiro, pela guerra, manifestou pretensões sobre territórios do Uruguai, da Argentina e do Paraguai.

"O que presenciamos durante todo o período Colônia, Império e República, até o limiar do século 21", continua Coutinho, "é um processo de fortes rivalidades regionais, mais precisamente entre Brasil e Argentina, os dois principais países do continente sul-americano." Segundo o professor, de certa forma, essa situação de desconfiança recíproca foi incentivada pelas potências hegemônicas – primeiro, o Reino Unido e, depois, os Estados Unidos –, que nunca esconderam certa satisfação em ver a região subdividida por interesses e vaidades locais, tornando-se, portanto, bem mais fácil de ser manipulada e dominada. "Curiosamente, foi quando o sistema capitalista se impôs como alternativa única e desencadeou o processo de globalização, de viés neoliberal, que essas nações sul-americanas começaram a voltar-se mais para si próprias, propiciando o advento do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e estimulando uma série de tratados e acordos comerciais que, em grande medida, coincidiram com a estabilização macroeconômica do continente – famoso por suas espirais inflacionárias, governos corruptos e ineficiências de todos os tipos – e o ressurgimento de regimes mais populares, como o de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, e o de Hugo Chávez, na Venezuela", acrescenta.

É nesse cenário de crescente integração que o Brasil abandona sua política externa tradicional, de alinhamento, e começa a articular uma estratégia mais ousada de exercício de liderança regional. Embalada pelo mote do "gigante pela própria natureza", a diplomacia brasileira, até então, aspirava a uma hegemonia latino-americana, mas de uma forma passiva, na suposição de que ela, como que por força das dimensões brasileiras – geográficas, populacionais e econômicas –, acabaria por vir naturalmente.

"A constatação de que o Brasil, para exercer uma influência político-econômica regional e até global, teria de construir um sistema de alianças políticas e pactos econômicos só viria a ganhar uma dimensão definitiva nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e, depois, se intensificaria na gestão do presidente Lula", diz o professor Tullo Vigevani, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). Ele relata que as duas principais ações políticas brasileiras na região com objetivo de consolidar a liderança nacional no continente são, inegavelmente, o processo de formação da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), que tem a chancela do Itamaraty, e a ação das forças armadas brasileiras no Haiti.

"O envio de tropas ao Haiti, para garantir uma transição até certo ponto pacífica no processo democrático daquele país, é, do ponto de vista de política estratégica hemisférica, a maior iniciativa para as pretensões brasileiras de se tornar uma espécie de porta-voz da região", explica o especialista. Ele acrescenta ainda que o investimento no Haiti pode vir a significar, no médio prazo, a conquista de assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), ou o tão almejado passaporte para o seleto clube dos países de maior relevância diplomática no mundo, que o Brasil persegue há décadas.

Acidente de percurso

Para Vigevani, os recentes desentendimentos decorrentes de decisões nacionalistas do presidente boliviano Evo Morales que prejudicam os interesses da Petrobras, além de contrapor Lula e Chávez como adversários no comando dos rumos da política externa latino-americana, não passam de um acidente de percurso que só comprova a tendência de integração. "As nações são organismos complexos e, quando se toma por base o longo período de isolamento, é compreensível que atritos surjam no processo de consolidação de uma América Latina mais coesa e solidária consigo própria."

Como pano de fundo para a movimentação política, os observadores do cenário latino coincidem ao afirmar que os projetos financiados pelo Brasil se tornaram o esteio da realização da liderança brasileira. Entre essas iniciativas, os destaques vão para o Gasoduto do Sul, obra que pretende unir os mercados produtores e consumidores de gás natural da região, e a rodovia Acre-Pacífico, que atravessará o Peru, de significado histórico e econômico sem precedentes. Além disso, certamente, ganha notável expressão para as pretensões brasileiras a atuação de companhias nacionais, apoiadas em projetos que contam com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em obras de infra-estrutura na quase totalidade das nações da região.

"Sabemos que precisamos ser generosos se quisermos ser líderes’, afirma o chanceler Celso Amorim, um dos principais artífices da política externa brasileira, que teve papel de destaque nos recentes atritos diplomáticos entre Brasil, Bolívia e Venezuela. "O Brasil reconhece que seu papel nesse processo de integração comporta custos e supõe uma visão generosa para que possamos contribuir para compensar os desequilíbrios nos diferentes graus de desenvolvimento observados nos países vizinhos", afirma ele, lembrando que, em jogo, não estão interesses imediatistas, mas a capacidade nacional de avançar num projeto de longo prazo.

Ciente do caminho tortuoso e difícil da integração sul-americana, Amorim diz que não se pode esquecer a herança de problemas internos, sociais e econômicos, que geram tensões e fatores desfavoráveis ao entendimento. Mas admite que "a determinação de avançar na integração regional é, hoje, um projeto sem volta, já disseminado no seio da sociedade civil, da classe política e do setor privado nos países sul-americanos e, em especial, no Brasil".

O otimismo de Amorim, no entanto, não é compartilhado por todos. De várias frentes, especialmente depois do anúncio do programa de nacionalização da exploração das jazidas energéticas na Bolívia, surgem críticas ao que se considera uma retomada de um amplo movimento populista sul-americano, cuja figura exponencial seria Chávez, o mandatário venezuelano, que poderia fazer retroceder os avanços da região em termos de ordem jurídico-administrativa e estabilidade macroeconômica, contribuindo para o retorno da insegurança nos investimentos diretos essenciais ao desenvolvimento social almejado.

Entre os céticos em relação a esse caminho inexorável que levaria à consolidação de uma identidade sul-americana, Bolívar Lamounier, doutor em ciência política e autor de vários estudos sobre o tema, como "O Futuro da Política na Era da Globalização", acha que os recentes episódios engendrados pela estratégia nacionalista boliviana e venezuelana apontam, na verdade, não simplesmente para uma guinada esquerdista, mas para uma debilidade intra-regional decorrente de símbolos políticos anacrônicos identificados com presidentes populistas sul-americanos, como Chávez e Morales. "Observe-se que esse clima que se está criando é potencialmente desestabilizador e pode exacerbar ainda mais as tradicionais desconfianças entre vizinhos na região, o Brasil incluído. Portanto, se alguma página está sendo virada, creio que possa ser para trás", arrisca o pensador.

Para Lamounier, um dos pontos mais sensíveis no hemisfério, que pode estar levando Chávez a buscar atalhos nas metas de integração, atropelando o projeto brasileiro, é o contencioso entre a Venezuela e os Estados Unidos, que tem tido ampla repercussão na América do Sul como um todo. "Talvez hoje", diz Lamounier, "esse seja (excetuando-se Cuba) o maior atrito regional e, apesar de os ataques de Chávez não terem conseqüências práticas, essa retórica preocupa os Estados Unidos, dado o perfil do mandatário, o debilitamento do pluralismo político interno e ainda o fato de ser a Venezuela um país com significativo poder de barganha, devido ao petróleo." Apesar disso, Lamounier não acredita que o governo de George Bush cogite alguma interferência direta na América do Sul: "Ele já tem problemas demais no Oriente Médio".

Quanto à possibilidade de Chávez vir a ocupar papel de líder hemisférico, disputando a hegemonia com Lula, Lamounier considera o momento atual bastante rico e interessante em termos de análise política. "Até aqui, Lula e o Itamaraty tentaram ser o contrapeso conservador desse novo populismo latino-americano, e especialmente venezuelano, mas é inegável que Lula está sujeito tanto a restrições internas, a começar por sua política econômica, como a sério desgaste externo, tendo em vista as atitudes antibrasileiras nos países vizinhos. Isso, no entanto, não quer dizer que o presidente venezuelano venha a ocupar eventuais espaços vazios deixados pela diplomacia brasileira."

Novo panorama

Seja como for, entre os analistas há consenso de que a turbulência esquerdista sul-americana é conseqüência direta da política externa (ou da ausência de política) de Washington. Obcecada desde o 11 de setembro com a ameaça terrorista árabe, a Casa Branca vem dedicando toda a sua atenção, e dólares, ao Oriente Médio. E agora, aparentemente, está vendo reduzido o controle que exerce em seu próprio continente.

"O Departamento de Estado dos EUA ainda se articula bem com a Colômbia e El Salvador e tem uma política amistosa com governos de esquerda clássica na região, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Nos demais, a relação tornou-se conflituosa e até hostil, como acontece com a Venezuela e a Bolívia", afirma Paul Krugman, renomado economista norte-americano do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Para tentar explicar os novos rumos políticos no continente, ele é adepto da tese de que a América Latina entrou em fase de experimentação. "Alguns erros serão cometidos, mas é dessa maneira que se chega a resultados mais consistentes", diz.

Para Krugman, a guinada à esquerda da América do Sul já era esperada depois do fracasso das políticas neoliberais do chamado "consenso de Washington", que reúne as estratégias para a região definidas pela Casa Branca, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. "O surgimento de governos mais populares, contudo, não significa que o continente se transformará numa ‘grande Cuba’, como já foi temor em Washington no início dos anos 1960", acrescenta.

Com uma população que já supera meio bilhão de habitantes, a América Latina, conforme apurou recentemente uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Georgetown, nos EUA, está desenvolvendo uma espécie de "aversão a Washington". A percepção é de que, com a maciça desaprovação à política externa de George Bush, a rejeição ao governo norte-americano está maior, atualmente, até mesmo do que na época da crise com Cuba nos anos 1960, ou nas guerras centro-americanas dos anos 1970 e 80. "A maioria dos líderes latino-americanos está sendo eleita não apenas por não estar muito entusiasmada com Washington, mas por adotar uma postura antiamericana, que, hoje, dá votos ao sul do rio Grande [que separa os EUA do México]", avalia o estudo daquela universidade norte-americana.

Ao mesmo tempo, para algumas correntes diplomáticas, Brasília não deveria nem cogitar qualquer tipo de afastamento dos Estados Unidos em troca de maior alinhamento sul-americano ou com nações em desenvolvimento, como África do Sul, Índia ou China. Os chamados think tanks, centrais de inteligência de Washington, como o Centro para Prosperidade Global, acreditam que, conscientes de seu isolamento político, os EUA tentarão fortalecer alianças com governos menos radicais, embora de tendência social, como é o caso do Brasil e do Chile, da socialista Michelle Bachelet. A Argentina, de Néstor Kirchner, nesse jogo, estaria condenada ao ostracismo por Washington, ou melhor, Wall Street, que não perdoou até hoje a decisão de moratória unilateral imposta por Buenos Aires em 2003, mesmo com os avanços econômicos do vizinho do sul.

Preocupado com o futuro do até agora único projeto mais consistente de integração regional, o Mercosul, o embaixador José Botafogo Gonçalves, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), considera que o maior problema da atual política externa do país é querer abraçar o mundo todo de uma só vez. "O Brasil está atuando simultaneamente em várias frentes, em torno das questões norte-sul e leste-oeste, quando deveria concentrar todo o seu poder de fogo na América Latina e, mais precisamente, no Mercosul, com a bem acertada estratégia de atrair novos sócios, como a própria Venezuela, Bolívia e Peru." Ele lembra que, embora enfraquecidos politicamente, os EUA têm aproveitado as brechas da falta de negociação regional para desencadear uma nova ofensiva, mais pontual, por meio da qual está acertando pacotes de comércio bilateral com países da região, como Chile e Uruguai, depois de consolidada sua união com a economia mexicana.

Defensora da responsável liderança brasileira na região, Maria Regina Soares de Lima, coordenadora acadêmica do Observatório Político Sul-Americano, adverte para dois riscos que devem ser evitados nessa estratégia externa: eventuais veleidades do exercício da hegemonia regional e tentações intervencionistas, como as que foram apregoadas no auge da crise boliviana. Para ela, ainda está fresco na memória dos países vizinhos o temor do expansionismo brasileiro – muitas vezes alimentado, como recentemente, no caso de Evo Morales, pelas próprias forças políticas internas dessas nações –, que pode pôr a perder o movimento liderado pelo Itamaraty de coordenação da ação coletiva regional.

Na opinião de Maria Regina, os antídotos para esses males em potencial são a construção de instituições regionais fortes, como a Casa e o Mercosul, por exemplo, e o fortalecimento da democracia na América do Sul, "condições essenciais para que se constitua uma verdadeira comunidade de nações", a exemplo da bem-sucedida experiência européia. Paralelamente, segundo a especialista, o governo brasileiro deve empreender, com urgência, um processo de esclarecimento da opinião pública sobre os custos, muitas vezes elevados, desse processo de internacionalização de sua esfera de influência e de liderança regional, uma vez que, em última instância, serão arcados pela própria sociedade.

 

 

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