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As relações comerciais Brasil-EUA
É possível superar os mitos
DONNA J. HRINAK
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Donna Hrinak, ex-embaixadora dos Estados Unidos no Brasil, atualmente diretora sênior da empresa de assessoria estratégica Kissinger McLarty and Associates (KMA), esteve presente no dia 6 de abril de 2006 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Construindo um Hemisfério Competitivo".
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu à exposição pode ser lido na edição impressa da revista.
É um prazer falar sobre o Brasil aqui, pois estou discorrendo inúmeras vezes sobre o país no exterior, onde há muito interesse. Na realidade, agora existe uma boa cobertura dos meios de comunicação a respeito da nação brasileira. Há manchetes sobre o etanol, por exemplo, as pessoas perguntam como é que aqui foi superada a dependência do petróleo, e publicam-se artigos sobre o Bolsa Família. Então penso que está se provocando um interesse muito saudável e positivo sobre o país. Isso reflete a curiosidade e a preocupação dos outros países e dos mercados sobre a América Latina.
No entanto, muitas pessoas opinam sobre o hemisfério de uma maneira generalizada, o que me parece perigoso. Não fazem distinção entre um país e outro. Vemos isso nas manchetes que dizem que a esquerda está tomando o controle na América Latina e desafiando os Estados Unidos. Como se houvesse uma só esquerda na região ou como se as opções fossem entre a esquerda e a direita tradicionalmente conhecidas. Sabemos o perigo disso porque lembramos que, em 2002, 27 membros do Congresso dos Estados Unidos assinaram uma carta ao presidente Bush afirmando que um "eixo do mal" estava se formando na América Latina entre Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula. Muitos desses congressistas depois queriam tirar fotos ao lado do presidente brasileiro, mas isso é outra história.
Falar em esquerda como algo monolítico é incorreto e perigoso. O "Wall Street Journal" está fazendo advertências sobre Michelle Bachelet, do Chile, lembrando-nos que vem da esquerda socialista. Acontece que ela está sucedendo a outro socialista e os chilenos têm índices de desenvolvimento impressionantes. Estão também advertindo sobre Leonel Fernández, da República Dominicana. Se é certo que a origem de seu partido é socialista, ele também tem políticas para atrair empresas de ponta, e quer mudar as zonas francas da República Dominicana, onde agora ocorrem convenções sobre alta tecnologia. Então penso que hoje a pergunta não é se um candidato à presidência é esquerdista, direitista ou conservador, mas se oferece políticas sensatas ou se, com ele ou com ela, o país terá maiores possibilidades de êxito no século 21. Uma coisa que todos eles têm em comum é que serão escolhidos em eleições democráticas. Essa é uma grande conquista para o hemisfério.
Em 2005, na reunião do Conselho das Américas, em Washington, o palestrante principal foi o chanceler e ex-ministro de finanças de Cingapura. Ele falou dos Tigres Asiáticos e de seus grandes feitos. A primeira pergunta foi de um argentino: "É certo que vocês têm conquistado muita coisa, mas não têm pago o preço da democracia. Algum dia vão fazer isso?" A democracia, embora seja importante, tem o seu custo, e muitas vezes dificulta as decisões das nações. Talvez a Argentina tenha pago o preço maior, pelo menos em termos de talentos humanos. Mas todos os países latino-americanos têm pago esse preço, e agora pode haver dificuldades nas decisões sobre políticas públicas. E concordo que os asiáticos terão de enfrentar isso algum dia.
A democracia foi uma das coisas de que mais nos orgulhamos na Reunião de Cúpula de Miami, em 1994. Saímos do encontro com uma agenda acordada entre todos os 34 países democráticos do hemisfério. Eram 23 iniciativas que os levariam a quatro grandes objetivos: consolidar a democracia, promover a prosperidade econômica, assegurar o desenvolvimento sustentável e eliminar a pobreza. Hoje eu diria que temos várias agendas no hemisfério, e não estamos trabalhando juntos em busca dos mesmos objetivos, das mesmas iniciativas. Por quê? Acredito que a agenda ficou fragmentada, a retórica superou os esforços, houve grande expectativa, e depois muitas pessoas ficaram frustradas com a falta de avanços. Em muitos casos, para lograr os objetivos, os presidentes tinham de fazer reformas domésticas, mas, em vez de utilizar o capital político de que dispunham para reformar o país, usaram-no para mudar a Constituição e se reeleger. Isso aconteceu na Argentina, com Carlos Menem, na República Dominicana, com Hipólito Mejía, e até certo ponto no Brasil, com resultados talvez menos desastrosos do que naqueles dois países.
A agenda também ficou um pouco fora de foco porque demos atenção especial à criação da Alca [Área de Livre Comércio das Américas], que algumas vezes pareceu ser o único objetivo em que estávamos trabalhando. Isso deu certa razão para as pessoas que diziam que para os Estados Unidos só importa o comércio, e não a democracia nem o meio ambiente. Na verdade, olhando os esforços que fizemos, essas pessoas tinham um pouco de razão.
O problema de não trabalhar em todas as reformas e iniciativas – que incluíam ações nas áreas de educação e saúde – é que, quando surgiram novos grupos que queriam participar da atividade política, não havia como responder a suas demandas, não havia como incluí-los. E grupos novos foram aparecendo em todos os países, dos quais talvez os indígenas sejam hoje os mais visíveis.
Na Bolívia, vale a pena discutir a eleição de Evo Morales. Talvez mais importante ainda seja o fato de que a economia boliviana pode ser paralisada por dias e até por semanas pela ação de pessoas que fecham estradas como protesto, seu único meio de participar da política e expressar suas demandas. Na realidade, sua via política é a rua, e não temos como responder a isso, ou pelo menos não sabemos usar o que temos. A meu ver, essa situação oferece uma grande oportunidade para a colaboração entre os dois países que deveriam ser os líderes do hemisfério, que são obviamente Brasil e Estados Unidos. Mas o fato é que em grande medida estamos perdendo a oportunidade.
As relações entre os dois países são muito boas, mas não tão produtivas como poderiam ser. É possível fazer muito mais. Eu sempre dizia, quando estava na embaixada, que há certos mitos na relação entre Brasil e Estados Unidos. Um deles: os norte-americanos pensam que o Brasil não pode ser um aliado fiel, que sempre tem uma agenda oculta. Em contrapartida, o Brasil acredita que, quando algo é bom para os Estados Unidos, deve conter algum elemento ruim para o Brasil. São mitos que têm atrapalhado a agenda conjunta durante os últimos anos, especialmente na área do comércio.
Recentemente participei de um painel sobre a Alca em Miami. Discutimos o que aconteceu com ela, por que não a efetivamos e perdemos o prazo. Um de meus colegas painelistas afirmou que a culpa era do Brasil. Ele até mencionou um artigo de Bob Zoellick, escrito depois da reunião de Cancún, em que o autor dividiu o mundo em países que podem fazer e nações que não querem fazer. Para o painelista, o Brasil é um país que não quer fazer. Diante dessa afirmação, fico com um grande problema porque, quando se trata da Alca, o obstáculo tem sido a agricultura e seus subsídios nos Estados Unidos, que nos recusamos a discutir em termos de hemisfério. Os norte-americanos falam em subsídios somente em termos mundiais. Então, a recusa de incluir tema tão importante na agenda permitiu afirmar que os Estados Unidos foram o país que não quis fazer.
Muitas pessoas nos Estados Unidos estão prestes a tirar a culpa do Brasil pelo fracasso da Alca. Como se pode imaginar, houve uma resposta àquela indagação do painelista, vinda de um representante do governo brasileiro, mas ela revela outro mito. Ele disse: "Ah, você não tem razão em nada. O Brasil tem oferecido reduzir a zero todas as tarifas de produtos industriais e agrícolas imediatamente, o que mostra nosso compromisso com o livre comércio". Bem, sabemos que na Alca houve nove grupos de trabalho, mas apenas dois deles trataram de temas relacionados às tarifas, porque não se pode falar em livre comércio, no século 21, sem incluir os serviços, sem a proteção à propriedade intelectual, medidas para facilitar o comércio e reduzir a burocracia. Então dizer que se apóia o livre comércio porque se fez aquela oferta é um pouco ingênuo, não é? Mas os representantes brasileiros têm insistido tanto sobre isso que penso que até acreditam.
É possível superar esses mitos, mas por várias razões não o queremos. Penso que, em parte, a relutância dos Estados Unidos em discutir a agricultura no hemisfério ocorre porque nos debates globais o Brasil é um grande aliado dos norte-americanos contra a Europa, Japão e Coréia. Então, se os brasileiros puderem solucionar pelo menos a metade de seu problema, negociando com os Estados Unidos, é possível que deixem de ser o aliado de que precisamos no âmbito mundial.
Os mitos também são uma maneira fácil de justificar o fato de que, na realidade, a relação comercial entre Brasil e Estados Unidos não é tão importante, tanto para um país como para o outro. Pode-se observar que alguns investidores ou homens de negócios dos Estados Unidos olham para o Brasil em busca de oportunidades, mas depois resolvem ir para a China, Índia ou outros locais. O Brasil também tem tido muito orgulho da diversidade de seus mercados, os Estados Unidos são só um deles. Um acordo entre nós será muito difícil, a natureza de nossas economias reflete isso. É muito fácil para os norte-americanos fazer acordos com a Costa Rica ou Honduras porque não produzimos bananas. Com o Brasil é muito mais complicado. E é difícil não só negociar, como também, depois, convencer os respectivos congressos a ratificarem o acordo.
No Congresso brasileiro há vários parlamentares que restringiriam negociações na área de comércio exterior. Muitos acreditam que não vale a pena. "Por que vamos nos esforçar? É suficientemente bom como está." Não concordo com essas pessoas e imagino que muitos de vocês também não. Então temos de fazer um esforço para mudar essa mentalidade.
Uma idéia é a possibilidade de Brasil e Estados Unidos fazerem um acordo bilateral em vez de tentarem negociar a Alca. Bilateral quer dizer entre Brasil e Estados Unidos, não entre Mercosul e Estados Unidos. Isso implica uma consideração, no Brasil, sobre as vantagens e desvantagens do Mercosul. Mas não é preciso destruir o Mercosul para negociar com os EUA. Temos relações especiais com o México e o Canadá, mas fazemos muitos acordos independentes com os dois parceiros, e o Brasil poderia achar aí um caminho.
Os Estados Unidos também deveriam pensar numa maneira mais criativa de discutir a agricultura no hemisfério. Talvez por meio de algumas cartas ou acordos à parte, para responder a algumas demandas sem prejudicar os interesses conjuntos que temos na OMC [Organização Mundial do Comércio]. Os negociadores podem fazê-lo porque são pessoas inteligentes e criativas, mas não vão chegar a isso sem apoio político e, na realidade, é isso o que falta. Mais: nenhum país quer fazer nada unilateralmente. Os Estados Unidos deveriam mostrar mais liderança, pois somos a economia mais poderosa do mundo. Na realidade não é tanto uma falha do Executivo, porque George Bush tem feito muita coisa para promover o livre comércio, mas lá no Congresso os interesses das bases sempre predominam. Também existem coisas que o Brasil poderia fazer sem essa parceria. Uma vez afirmei que gostaria de ver o país eliminando a palavra "reciprocidade" do vocabulário, porque há coisas que o beneficiam e que é possível fazer unilateralmente. Não é preciso que haja alguma coisa para se ganhar imediatamente, pois os benefícios vêm da abertura da economia em si. Há muitos exemplos disso, até na China. Abrir a economia traz desenvolvimento e crescimento. Uma das áreas seria a de facilidades para os negócios.
Em novembro falei para altos executivos de uma grande empresa norte-americana de software. Essa companhia tem optado por estabelecer centros regionais em várias partes do mundo, e escolheu a China, a Rússia e a Índia. A meu ver, o Brasil deveria ser o centro regional para a América Latina, mas preferiram o Chile, porque, apesar do grande mercado, há entraves burocráticos a superar. Além disso, especialmente no caso de uma empresa de software, é muito importante o respeito pela propriedade intelectual, embora não seja a única consideração a fazer.
Todos sabemos que, quando se fala em competitividade no hemisfério, a falta de qualidade da educação é uma das coisas que mais prejudicam. O Brasil tem agora 97% das crianças em idade escolar e 75% dos adolescentes nas escolas, mas, como sempre mostram os estudos do Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento] ou do Banco Mundial, a qualidade dessa educação só é superior à de países subsaarianos.
Várias coisas podem ser feitas para fortalecer a competitividade do hemisfério. A educação é só uma delas. Sabemos que é preciso reduzir a burocracia, criar competitividade de verdade e não trocar o monopólio estatal pelo privado. Estamos cientes de que é necessário reformar o sistema tributário, baixar as tarifas. O problema está na implementação e na vontade política para fazer isso.
Uma das manchetes publicadas após a recente Cúpula de Buenos Aires dava conta de que Bush não ganhou nada porque os países do Mercosul dificultaram a agenda. Não se trata de vitória de um lado e derrota do outro, não é um jogo de futebol. Somos todos vítimas, não ganhadores ou perdedores. Vítimas da falta de progresso, e os mais prejudicados são os mais pobres. Talvez seja a última oportunidade para a América Latina, porque o mundo está perdendo a paciência. Estão dizendo (escuto muito isso): "Ah, são esses países de novo?" E ainda: "Esses países (como se toda a região fosse igual) têm tido ciclos de crescimento e depois suas economias caem de novo, como se fosse uma montanha-russa. Não vamos investir se não tivermos alguma garantia de estabilidade política, da estabilidade dos governos e das sociedades".
Quando se fala em opções para a América Latina, a grande pergunta é: qual o papel do Estado no desenvolvimento? Ele deveria tomar conta de tudo? Deveria ser o motor do crescimento? O papel do Estado deveria ser o de estabelecer um clima apropriado para o setor privado, para que este gere empregos e faça investimentos.
O motor do crescimento é o governo ou são vocês? Acho que são vocês, que devem tomar o controle da situação e expressar suas preferências. Será a maneira de evitar que sejamos todos vítimas.