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REVISTA E - março 2006

No reino da noite



O professor de língua e literatura árabe da Universidade de São Paulo (USP) Mamede Mustafa Jarouche é um homem cheio de histórias para contar. A começar pelas que envolvem seu próprio nome: “Era para ser Mohamed”, conta. “Mas meu pai achou que seria esquisito para os brasileiros com os quais eu iria viver e resolveu ‘abrasileirar’. Ficou Mamede mesmo.” Pois esse filho de libaneses é responsável pela primeira tradução do árabe para o português de um dos maiores livros de histórias da humanidade: As Mil e Uma Noites. Ao todo serão seis volumes, dois deles já lançados pela Editora Globo, contendo as mais de 200 histórias contadas pela famosa personagem Scherazade ao marido para salvaguardar a própria vida. Isso porque o rei com quem havia se casado tinha o hábito de matar as esposas na manhã seguinte à noite de núpcias. Com ela foi diferente, devido à curiosidade que suas narrativas despertavam nele.
Em conversa com o Conselho Editorial da Revista E, Jarouche falou da cultura árabe e muçulmana, dos caminhos que percorreu para juntar todas as histórias e de qual delas mais gosta. A seguir os melhores trechos:



A Arábia Saudita de hoje não é representativa do que foi a história, a cultura, a literatura árabes no seu período de ouro, do século 8 até o 14. Época em que abrigou uma civilização pujante, importante e nada repressiva, baseada na descoberta, na criatividade e na inventividade. Não é à toa que alguns dos principais cientistas, filósofos, médicos e demais figuras de prestígio na história da humanidade estavam ali. Assim como a difusão do papel e da própria escrita. Não há nenhuma civilização que tenha uma quantidade tão grande de manuscritos quanto a árabe e muçulmana. Ela tem, por exemplo, uma literatura erótica muito grande, forte e interessante. Sua poesia é algo muito bem trabalhado, sua narrativa, sua ficção. Tudo isso me fez tentar brigar contra a imagem contemporânea que se tem do Islamismo no ocidente, e que é alimentada por muitos muçulmanos canhestros, mas que não pode ser considerada representativa do que foi a civilização muçulmana. Um líder fundamentalista hoje não retrata nada, é apenas um elemento, uma criatura degenerada por circunstâncias idem e que não representa a história e a cultura daquele mundo. Foi isso que me aproximou da literatura. Eu, por exemplo, não estudo o mundo árabe contemporâneo. Mas o conheço e posso dizer que hoje não existe ali nenhuma contribuição significativa do ponto de vista científico. Os poucos cientistas árabes de destaque desenvolveram a carreira no Ocidente. Não é possível pensar em um grande filósofo árabe na atualidade porque ele não existe. O que temos, hoje? Sem dúvida há excelentes poetas e escritores, acadêmicos e estudiosos de valor, grandes filólogos. Mas é pouco, comparado ao que já foi. Se recuarmos para os séculos 9 ou 10, será possível ver que os principais nomes eram do Oriente. Poderíamos até dizer que a situação brasileira não é muito diferente, mas o Brasil não tem um milênio e meio de história, nem – por mais que isso nos mortifique como brasileiros – jamais teve muita importância no cenário internacional. É por isso que prefiro me fixar no que se chama vulgarmente de filé-mignon de uma civilização. No caso da civilização muçulmana, embora não esteja morta, eu prefiro estudar o mundo antigo. Foi essa aproximação que me levou paulatinamente a me aprofundar nesse assunto. Formei-me na USP em árabe e português, depois fiz doutorado em literatura brasileira. Comecei a lecionar árabe na USP em 1992. Foi mais ou menos nessa época que nasceu o projeto de traduzir obras da literatura árabe para o português. Nota-se que no mundo, em geral, elas não são bem conhecidas, e no Brasil muito menos. Não há quase traduções diretas nem indiretas. No bojo disso tudo nasceu o projeto de traduzir As Mil e Uma Noites. Comecei a me aprofundar nessa tradução em 2000. Fui ao Cairo [capital do Egito], fiquei um ano pesquisando e estudando por lá. Quando voltei, comecei a fazer esse trabalho de tradução, que, aliás, ainda não terminei. Já saíram dois volumes, faltam quatro. Inicialmente, a Editora Globo me pediu para entregar tudo até o final de 2008. Espero conseguir.



Narrativa primordial?
Em As Mil e Uma Noites, o rei descobre que é traído pela esposa, fica ensandecido e adota o seguinte procedimento: casa-se de noite e manda matar a mulher pela manhã. É uma espécie de sonho masculino levado à bestialidade e realizado por meio do crime – ou seja, passar a noite com uma mulher e se livrar dela na manhã seguinte. Scherazade decide então se casar com o rei para impedi-lo de continuar matando mulheres.
O senso comum diz que As Mil e Uma Noites é uma narrativa primordial, isto é, que sempre existiu e é anterior à história. É quase um texto sem uma história de constituição – de repente, esse livro existe, tem sua materialidade; logo, sua especificidade. Ninguém nunca parou para se questionar a respeito do modo de constituição do texto. As primeiras questões que eu me propus advieram disso. Cheguei a encontrar referências, por exemplo, de que a história teria parentesco com histórias indianas, com fábulas persas, com o Velho Testamento. Tudo balela. Comecei a investigar os vestígios do livro e descobri que em nenhuma outra cultura anterior à árabe, e em nenhum outro lugar do mundo, houve um livro chamado As Mil e Uma Noites ou Mil Noites. Ou seja, trata-se de um fruto da cultura árabe letrada, o que quer dizer que é posterior ao século 8 d. C. Isso significa que não é uma narrativa que existiu desde sempre, ela tem um lugar histórico.
Fui pesquisar sobre esses escritos na cultura árabe porque não há nada sobre eles em nenhuma outra cultura. Primeiro, eu encontrei referências a um pedaço de pergaminho [espécie de ancestral do papel e um dos principais suportes da escrita na Antiguidade] todo rasgado e corroído, mas que, por sorte, está datado: corresponde a 879 d. C., se bem me lembro. Ali se pode ler o seguinte: “Livro que contém história de mil noites”. Depois segue: “Disse Dinazad: Ó minha irmã, conte-me a história de...”, e o restante foi comido pelas traças. Mas de qualquer forma, esse papel permite concluir que houve no século 9 d. C. um texto chamado Mil Noites em que uma personagem chamada Dinazad pede a outra personagem – que é feminina – que lhe conte histórias. Mas quais são essas histórias não é possível saber porque as traças não deixaram.




A história preferida
Na verdade, uma história não necessariamente corresponde a uma noite. Uma história pode se estender por 20, 40, 50 noites, por exemplo. Ao todo, o livro deve ter umas 200 histórias, incluindo as sub-histórias – por vezes há uma história dentro da outra. Gosto muito de uma que conta sobre um sujeito que foi parar num castelo com 40 mulheres. Ele chega ao local em que vivem essas belíssimas princesas e elas lhe dizem que ele pode escolher uma delas a cada noite, que pode gozar de todo conforto, usufruir de tudo de bom quanto existia ali; enfim, que ele pode fazer o que quiser no castelo, menos entrar num determinado aposento. E é justamente ali, depois de muita peripécia e reflexão, que o infeliz entra. É uma história que me propõe uma espécie de sentimento universal, que é a insatisfação humana. A situação do homem é pintada como perfeita, tem tudo, vive numa grande mordomia. No entanto, existe um único tabu. A partir do instante em que uma das mulheres lhe diz que ele pode fazer o que quiser menos entrar no tal recinto, a gente sabe que é isso que ele vai fazer. A chave é universal, uma generalidade sobre o ser humano que é essa busca sempre além daquilo que se tem, mesmo que sua situação seja perfeita. E quando ele entra no quarto, perde tudo, inclusive um olho.


 

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