No reino da noite

O professor de língua e literatura árabe da Universidade
de São Paulo (USP) Mamede Mustafa Jarouche é um homem cheio
de histórias para contar. A começar pelas que envolvem seu
próprio nome: Era para ser Mohamed, conta. Mas
meu pai achou que seria esquisito para os brasileiros com os quais eu
iria viver e resolveu abrasileirar. Ficou Mamede mesmo.
Pois esse filho de libaneses é responsável pela primeira
tradução do árabe para o português de um dos
maiores livros de histórias da humanidade: As Mil e Uma Noites.
Ao todo serão seis volumes, dois deles já lançados
pela Editora Globo, contendo as mais de 200 histórias contadas
pela famosa personagem Scherazade ao marido para salvaguardar a própria
vida. Isso porque o rei com quem havia se casado tinha o hábito
de matar as esposas na manhã seguinte à noite de núpcias.
Com ela foi diferente, devido à curiosidade que suas narrativas
despertavam nele.
Em conversa com o Conselho Editorial da Revista E, Jarouche falou da cultura
árabe e muçulmana, dos caminhos que percorreu para juntar
todas as histórias e de qual delas mais gosta. A seguir os melhores
trechos:
A Arábia Saudita
de hoje não é representativa do que foi a história,
a cultura, a literatura árabes no seu período de ouro, do
século 8 até o 14. Época em que abrigou uma civilização
pujante, importante e nada repressiva, baseada na descoberta, na criatividade
e na inventividade. Não é à toa que alguns dos principais
cientistas, filósofos, médicos e demais figuras de prestígio
na história da humanidade estavam ali. Assim como a difusão
do papel e da própria escrita. Não há nenhuma civilização
que tenha uma quantidade tão grande de manuscritos quanto a árabe
e muçulmana. Ela tem, por exemplo, uma literatura erótica
muito grande, forte e interessante. Sua poesia é algo muito bem
trabalhado, sua narrativa, sua ficção. Tudo isso me fez
tentar brigar contra a imagem contemporânea que se tem do Islamismo
no ocidente, e que é alimentada por muitos muçulmanos canhestros,
mas que não pode ser considerada representativa do que foi a civilização
muçulmana. Um líder fundamentalista hoje não retrata
nada, é apenas um elemento, uma criatura degenerada por circunstâncias
idem e que não representa a história e a cultura daquele
mundo. Foi isso que me aproximou da literatura. Eu, por exemplo, não
estudo o mundo árabe contemporâneo. Mas o conheço
e posso dizer que hoje não existe ali nenhuma contribuição
significativa do ponto de vista científico. Os poucos cientistas
árabes de destaque desenvolveram a carreira no Ocidente. Não
é possível pensar em um grande filósofo árabe
na atualidade porque ele não existe. O que temos, hoje? Sem dúvida
há excelentes poetas e escritores, acadêmicos e estudiosos
de valor, grandes filólogos. Mas é pouco, comparado ao que
já foi. Se recuarmos para os séculos 9 ou 10, será
possível ver que os principais nomes eram do Oriente. Poderíamos
até dizer que a situação brasileira não é
muito diferente, mas o Brasil não tem um milênio e meio de
história, nem por mais que isso nos mortifique como brasileiros
jamais teve muita importância no cenário internacional.
É por isso que prefiro me fixar no que se chama vulgarmente de
filé-mignon de uma civilização. No caso da civilização
muçulmana, embora não esteja morta, eu prefiro estudar o
mundo antigo. Foi essa aproximação que me levou paulatinamente
a me aprofundar nesse assunto. Formei-me na USP em árabe e português,
depois fiz doutorado em literatura brasileira. Comecei a lecionar árabe
na USP em 1992. Foi mais ou menos nessa época que nasceu o projeto
de traduzir obras da literatura árabe para o português. Nota-se
que no mundo, em geral, elas não são bem conhecidas, e no
Brasil muito menos. Não há quase traduções
diretas nem indiretas. No bojo disso tudo nasceu o projeto de traduzir
As Mil e Uma Noites. Comecei a me aprofundar nessa tradução
em 2000. Fui ao Cairo [capital do Egito], fiquei um ano pesquisando e
estudando por lá. Quando voltei, comecei a fazer esse trabalho
de tradução, que, aliás, ainda não terminei.
Já saíram dois volumes, faltam quatro. Inicialmente, a Editora
Globo me pediu para entregar tudo até o final de 2008. Espero conseguir.
Narrativa primordial?
Em As Mil e Uma Noites, o rei descobre que é traído pela
esposa, fica ensandecido e adota o seguinte procedimento: casa-se de noite
e manda matar a mulher pela manhã. É uma espécie
de sonho masculino levado à bestialidade e realizado por meio do
crime ou seja, passar a noite com uma mulher e se livrar dela na
manhã seguinte. Scherazade decide então se casar com o rei
para impedi-lo de continuar matando mulheres.
O senso comum diz que As Mil e Uma Noites é uma narrativa primordial,
isto é, que sempre existiu e é anterior à história.
É quase um texto sem uma história de constituição
de repente, esse livro existe, tem sua materialidade; logo, sua
especificidade. Ninguém nunca parou para se questionar a respeito
do modo de constituição do texto. As primeiras questões
que eu me propus advieram disso. Cheguei a encontrar referências,
por exemplo, de que a história teria parentesco com histórias
indianas, com fábulas persas, com o Velho Testamento. Tudo balela.
Comecei a investigar os vestígios do livro e descobri que em nenhuma
outra cultura anterior à árabe, e em nenhum outro lugar
do mundo, houve um livro chamado As Mil e Uma Noites ou Mil Noites. Ou
seja, trata-se de um fruto da cultura árabe letrada, o que quer
dizer que é posterior ao século 8 d. C. Isso significa que
não é uma narrativa que existiu desde sempre, ela tem um
lugar histórico.
Fui pesquisar sobre esses escritos na cultura árabe porque não
há nada sobre eles em nenhuma outra cultura. Primeiro, eu encontrei
referências a um pedaço de pergaminho [espécie de
ancestral do papel e um dos principais suportes da escrita na Antiguidade]
todo rasgado e corroído, mas que, por sorte, está datado:
corresponde a 879 d. C., se bem me lembro. Ali se pode ler o seguinte:
Livro que contém história de mil noites. Depois
segue: Disse Dinazad: Ó minha irmã, conte-me a história
de..., e o restante foi comido pelas traças. Mas de qualquer
forma, esse papel permite concluir que houve no século 9 d. C.
um texto chamado Mil Noites em que uma personagem chamada Dinazad pede
a outra personagem que é feminina que lhe conte histórias.
Mas quais são essas histórias não é possível
saber porque as traças não deixaram.
A história
preferida
Na verdade, uma história não necessariamente corresponde
a uma noite. Uma história pode se estender por 20, 40, 50 noites,
por exemplo. Ao todo, o livro deve ter umas 200 histórias, incluindo
as sub-histórias por vezes há uma história
dentro da outra. Gosto muito de uma que conta sobre um sujeito que foi
parar num castelo com 40 mulheres. Ele chega ao local em que vivem essas
belíssimas princesas e elas lhe dizem que ele pode escolher uma
delas a cada noite, que pode gozar de todo conforto, usufruir de tudo
de bom quanto existia ali; enfim, que ele pode fazer o que quiser no castelo,
menos entrar num determinado aposento. E é justamente ali, depois
de muita peripécia e reflexão, que o infeliz entra. É
uma história que me propõe uma espécie de sentimento
universal, que é a insatisfação humana. A situação
do homem é pintada como perfeita, tem tudo, vive numa grande mordomia.
No entanto, existe um único tabu. A partir do instante em que uma
das mulheres lhe diz que ele pode fazer o que quiser menos entrar no tal
recinto, a gente sabe que é isso que ele vai fazer. A chave é
universal, uma generalidade sobre o ser humano que é essa busca
sempre além daquilo que se tem, mesmo que sua situação
seja perfeita. E quando ele entra no quarto, perde tudo, inclusive um
olho.
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