Respeitável público!
Companhias que misturam técnicas circenses e recursos de dramaturgia buscam novas formas de expressão
Levante a mão quem tenha se esquecido de imagens como a do corajoso trapezista e do hábil malabarista, anunciados por um garboso mestre-de-cerimônias, ou a de algum animal exótico, ou ainda dos doces e fantásticos palhaços. Difícil, não? Essas e outras lembranças de adultos e crianças ao longo dos anos mostram como o circo, com a estética exuberante de seus espetáculos, foi se consolidando no país como uma de suas mais populares manifestações artísticas. Essa paixão não vem de hoje e resistiu às diversas fases pelas quais passou a estrutura da apresentação circense, do modelo mais tradicional até chegar a versões mais recentes, em que a dramaturgia desempenha papel de relevo.
No início eram os ciganos, que saíam pelas Capitanias Hereditárias brasileiras, nos anos 1700, chamando a atenção do público com estrepolias realizadas em estruturas muito parecidas com a do chamado circo de pau fincado – versão mais simples, em que uma coluna central de madeira sustenta a lona.
Antônio Torres, em seu livro O Circo no Brasil (Fundação Nacional das Artes e Atração Produções Ilimitadas, 1998), explica que em 1727 frei Antônio de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, pede instruções ao Santo Ofício sobre como lidar com esses ciganos. Ainda segundo Torres, no século 19 o panorama repressivo já não era tão evidente. “O circo desembarcava num porto importante (Rio de Janeiro, Santos, Salvador etc.), fazia a festa e depois partia para recônditas paragens.” Foi por essa época, 1837, que, de acordo com Torres, chegou ao Brasil o primeiro elefante. Ele desembarcou para trabalhar num circo. “Havia muito de épico em sua aventura desbravadora. Em cada destino, inumeráveis desafios: trilhas remotas, caminhos de burros, atoleiros, barreiras, montanhas inóspitas, entraves burocráticos, preconceitos. Com obstinação e bravura, abriu estradas e enfrentou toda sorte de dificuldades. A seu modo, mapeou o Brasil.”

Estranhos no ninho Desde esses primeiros formatos, a tradição circense construiu uma de suas principais características, sendo passada de pai para filho. “De mestre para discípulo”, como diz a pesquisadora Alice Viveiros de Castro, colaboradora de Antônio Torres em O Circo no Brasil e autora de O Elogio da Bobagem – Palhaços no Brasil e no Mundo (Família Bastos Editora, 2005), um projeto patrocinado pela Petrobrás. Esse modelo sustenta até hoje o grande romantismo e a magia que envolve as artes sob a lona, mas na década de 1980, com o circo em processo de decadência – ressaca de seu grande apogeu nos anos 1940 e 1950 –, jovens atores que não eram de famílias tradicionais de circo começaram a dar um novo rumo à história. Era mais um movimento do teatro em direção ao circo do que o contrário, mas que rendeu frutos – alguns chamam de circo novo e outros, como Alice Viveiros de Castro, preferem circo contemporâneo. “Esses atores começaram a freqüentar escolas de circo e, fascinados, descobriram um mundo novo e maravilhoso”, conta a pesquisadora. “Só que eles queriam fazer circo com a sua cara, do seu jeito. E eles gostavam de rock, jogavam capoeira, queriam brincar com os chavões da trapezista, do apresentador falando ‘respeitável público’ e do malabarista dançando mambo. Daí começaram a brincar com isso tudo.”
Um dos primeiros a entrar na brincadeira foi o ator Jairo Mattos. Íntimo do universo do circo até hoje – “de vez em quando eu ainda faço o meu palhaço, o Chimarrão”, conta –, Jairo largou a escola de teatro para “fugir” com o circo. “Era um circo de Campinas chamado Tenda Tela Teatro, que tinha uma lona toda branca e fazia espetáculos baseados em textos de Maiakovski (1893-1930) e Meyerhold (1874-1940) [autores russos que se aproximaram da estética circense em seus trabalhos]”, lembra o ator. Já interessado na proposta do Tenda Tela Teatro, Jairo resolve, na mesma época, meados dos anos 80, montar o próprio circo. “Chamava Metrópole Arte Circo”, conta. “A gente ficou um tempo se apresentando pela periferia de São Paulo.” Formava-se aí o embrião de um novo (ou simplesmente outro) jeito de fazer circo. “Nós não falávamos em circo novo porque ainda não havia esse rótulo, mas a gente já montava os espetáculos tradicionais de circo – trapézio, acrobacia etc. – com uma cara teatralizada, tinha figurino, cenário, uma estrutura de luz.” Um dos envolvidos no trabalho do circo de Campinas em São Paulo foi Zé Wilson Moura Leite, que veio a criar pouco depois a Picadeiro Circo Escola, de onde saíram nomes como Hugo Possolo (do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões), Rodrigo Matheus (do Circo Mínimo) e Alexandre Roit – que já participou de espetáculos tanto dos Parlapatões quanto do Circo Mínimo. Somando essas figuras a companhias como o Grupo La Mínima, o Pia Fraus, o Linhas Aéreas e a Nau de Ícaros – de São Paulo – e mais Teatro do Anônimo (foto ao lado) e Intrépida Trupe – do Rio de Janeiro –, o resultado é não a totalidade, mas uma boa parcela dos artistas que formam o chamado circo contemporâneo, somando-se aí a contribuição da Escola Nacional de Circo da Fundação Nacional de Arte (Funarte), criada em 1982 e a única mantida pelo Ministério da Cultura.
Paspalhões, mínimos e intrépidos Entre as características desse movimento, é difícil afirmar categoricamente o que o diferencia do circo tradicional. A mistura de linguagens não é novidade – afinal, a dança, a música e o teatro sempre estiveram presentes no picadeiro – desde a época em que o circo encantou os modernistas, nas primeiras décadas do século 20, com palhaços como Piolim (Abelardo Pinto), nascido dia 27 de março, data em que hoje se comemora o dia do circo (veja boxe No picadeiro modernista). A inexistência de animais nos espetáculos poderia ser um ponto concreto de comparação, mas essa opção também não é exclusiva, tampouco recente – assim era com o Metrópole Arte Circo, de Jairo Mattos, e assim é com o atual Circo Roda Brasil, patrocinado pela Companhia de Concessões Rodoviárias (CCR), que uniu os Parlapatões ao Pia Fraus. Então, o que há de novo no circo novo? “A busca por uma outra forma de realizar proezas”, responde Alice Viveiros de Castro. “Um malabarista contemporâneo sabe o valor de equilibrar o maior número de claves ou bolas assim como um tradicional, mas está mais interessado em descobrir uma nova maneira de apresentar essa sua habilidade, um jeito mais ‘cênico’ de jogar e aparar os objetos.” Para a pesquisadora, enquanto o circo tradicional valoriza a dificuldade do número, a versão contemporânea se preocupa em “descobrir novas maneiras de exibir ao público as inúmeras proezas circenses”.

Na prática, esse jeito “mais cênico” pode ser identificado num componente teatral que esses novos circenses têm aproveitado bastante: a dramaturgia. “Há grupos realizando pesquisas nesse sentido”, conta Jairo Mattos. “O La Mínima, por exemplo, faz isso com bastante intensidade. Os Parlapatões, então, trabalham preferencialmente assim – e têm inclusive um dramaturgo, que é o Hugo Possolo. Já o Circo Mínimo, quando não cria, traz gente de fora para desenvolver um trabalho.” Para Alexandre Roit, o grande benefício do casamento das técnicas circenses com a dramaturgia é a capacidade de potencializar o diálogo com a platéia. “O circo sempre foi uma manifestação de comunicação imediata e instantânea”, afirma Roit. “Isso é inegável. E se for feito de uma maneira inteligente, unir as técnicas circenses à dramaturgia pode potencializar o conteúdo do que se quer discutir.”
A Intrépida Trupe (foto ao lado), do Rio de Janeiro, tem interesse nessa intensificação. Com base em um tema, uma história ou um mito – os de origem grega são os preferidos, possivelmente pela popularidade –, o grupo carioca enriquece seus mortais com um enredo. “Por exemplo, em Kronos buscamos inspiração na mitologia grega, no próprio mito de Kronos, deus do tempo e pai de Zeus”, conta Cláudio Baltar, integrante da companhia. “Esse espetáculo tinha uma estrutura mais narrativa, enquanto imagens e elementos de dança e circo se alternavam na composição das cenas. Já em Flap!, partimos do mito de Ícaro e Dédalo, seu pai, que inventou asas para voar, representando, com essa metáfora, os limites da ambição humana. As imagens e evoluções compunham a representação desse sonho.” Hugo Possolo credita esse interesse pela pesquisa a uma transformação tanto das linguagens teatrais quanto circenses, que ele considera natural. “O circo tem se adequado a outras arquiteturas”, diz. “No caso dos Parlapatões, por exemplo, nós tivemos a herança do teatro de rua. Então, quando a gente vai para o palco italiano, que é muito formalizado, a gente procura estabelecer o diálogo sem a tal da quarta parede, a gente invade a platéia.” Nos espetáculos dos Parlapatões, a dramaturgia é componente forte, adaptada ou criada pelo próprio Hugo. “Existe na estrutura uma dramaturgia que permite que você abra para o improviso em alguns momentos”, explica. “Isso pode estar estabelecido já no texto ou pode surgir ao longo dos ensaios. Existem atores com certas características cômicas, que sabem explorar determinados elementos. Enfim, é um processo no qual a dramaturgia encontra várias formas de ser produzida.”
Alice Viveiros de Castro conclui analisando que a construção de um número artístico – seja de circo, seja de teatro, seja de apresentações que unam os dois – sempre envolve uma dramaturgia, “mas isso não faz com que os grupos de circo contemporâneo sejam iguais”, explica. “Há grupos que são mais teatrais do que outros. Há grupos de trapezistas e outros mais de palhaços. Acho estranho falar sobre isso como se ‘circo contemporâneo’ fosse algo monolítico.”
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Para aprender e se divertir
Cada vez mais populares, as escolas de circo têm atraído sobretudo crianças e adolescentes
"Eu fui para a escola de circo porque tinha uma coisa que estava na mídia chamada Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes [espetáculo dirigido por Cacá Rosset em 1985]", conta o ator Alexandre Roit, formado pela Picadeiro Circo Escola, que já participou de espetáculos dos Parlapatões Patifes e Paspalhões e do Circo Mínimo. "Ou seja, eu fui para o circo por causa da mídia e não porque eu pensei e refleti que, como formação de artista, ir para o circo seria muito bom." O que se vê nas muitas escolas de circo espalhadas por São Paulo é algo mais ou menos parecido: muitos jovens optando pelo circo na hora de escolher uma atividade física, hobby ou ocupação fora da sala de aula. Por mais que os especialistas, estudiosos e amantes do circo afirmem que ele anda mal da lona e precisando de subsídios, sobretudo do Estado, parece mesmo que o picadeiro está na moda. "A gente precisa preservar nosso patrimônio, não pode deixar de dar visibilidade a nosso circo", reclama Hugo Possolo, dos Parlapatões. Apesar das reivindicações, é inegável que as escolas de circo têm ganhado espaço, e não apenas como um fato local. "É um fenômeno mundial", diz Roit. "E é bom porque muita gente que normalmente não se interessava por circo pode vir a prestar atenção nisso por causa dessas escolas. Tem aspectos positivos esse 'estar na moda', eu acho que até no sentido de formar público." Hugo Possolo vai mais além e vê nisso um movimento social. "Há diversas escolas [de circo] no país que aproximam o jovem com dificuldades na sua relação de cidadania, que assim pode ser reinserido na sociedade. O circo é muito mais atraente para esse jovem e para essa criança porque ele tem um híbrido do esporte, tem o desafio pessoal do uso do corpo, e ao mesmo tempo tem a sensibilidade das outras artes."
Segundo Alessandra Brantes, da Coordenadoria de Circo da Fundação Nacional das Artes (Funarte), São Paulo conta com algumas das mais tradicionais escolas de circo do país. Entre eles, a Picadeiro Circo Escola, o Centro de Formação Profissional em Artes Circenses (CEFAC) - ligado à Central do Circo -, a Academia Brasileira de Circo - ligada ao Circo Espacial -, o curso de circo da Escola Livre de Teatro e o Galpão do Circo.
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No picadeiro modernista
Grupo de artistas e intelectuais responsáveis pela Semana de 22 viram no circo uma das mais autênticas manifestações artísticas brasileiras
"Os únicos espetáculos teatrais no Brasil que a gente ainda pode freqüentar são o circo e a revista. Só nestes ainda tem criação", afirmou Mário de Andrade em depoimento reproduzido por Alice Viveiros de Castro no livro O Elogio da Bobagem - Palhaços no Brasil e no Mundo (Família Bastos Editora, 2005). Ainda segundo o autor de Macunaíma, o motivo de a lona abrigar o único núcleo gerador de ineditismo no teatro brasileiro da época era justamente o fato de seus criadores desenvolverem sua arte longe dos olhos da elite e da crítica, num ambiente de liberdade sem igual, que levava "à originalidade verdadeira e à criação exata". A preocupação em resgatar alguma "tradição efetivamente nacional" não era a dos artistas circenses, mas sim dos modernistas. E aquela manifestação artística popular foi ao encontro das expectativas do grupo de intelectuais. Os ícones desse fascínio eram os palhaços - sobretudo Chicharrão e Piolin (foto acima)."O poeta franco-suíço Blaise Cendrars, quando chega pela primeira vez ao Brasil, a convite de Paulo Prado, ajunta às suas muitas ligações com a história do modernismo brasileiro o mérito de ter apontado o valor artístico do mestre circense, do genial improvisador de gestos, o palhaço Piolim (Abelardo Pinto)", escreve a professora de teoria literária e literatura comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Maria Augusta Fonseca, em Oswald de Andrade, 1890-1954, Biografia (Art Editora, Secretaria de Estado da Cultura, 1990). "Os jornais da época anunciam os espetáculos de Piolim no barracão do largo Paiçandu e noticiam a moda instituída pelos intelectuais de festejar o circo, comparecendo aos espetáculos com amigos e visitantes." Para Hugo Possolo, do grupo Parlapatões Patifes e Paspalhões, o que mais impressionava os modernistas era a capacidade de comunicação com o público que o circo estabelecia. "Os modernistas queriam popularizar a arte, coisa que de fato não conseguiram a princípio. E enquanto Maiakovski (1893-1930), Meyerhold (1874-1940) [autores russos que se aproximaram da estética circense em seus trabalhos] e os futuristas faziam uma leitura sobre o futurismo e o dadaísmo, e sua ligação com o circo, no Brasil o que aconteceu foi diferente: os intelectuais puderam enxergar mais o chão, o que era palpável. Não é à toa que o Abaporu, de Tarsila do Amaral, tem um pé tão grande. Ele é tão firmado na terra brasilis como o circo se firma no chão."
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Circo no Sesc? Tem sim, senhor...
Espetáculos tradicionais e contemporâneos fazem parte da programação das unidades
 Entre as várias manifestações artísticas incentivadas e oferecidas ao público pelo Sesc São Paulo, o circo sempre marcou presença. Em janeiro, por exemplo, o Sesc Pinheiros realizou o Circo na Praça. Durante o mês, adultos e crianças puderam conferir a magia circense em espetáculos como Charlatolices e Cenas Circenses.
Enquanto o primeiro, uma criação coletiva do grupo Los Patos, apresentou o resultado de suas pesquisas sobre os charlatões de rua – artistas ambulantes que fazem inúmeras peripécias para vender seus produtos e sua arte –, o segundo, apresentado pelo grupo Circodélico, mostrou um trabalho mais voltado para a linguagem do chamado circo novo. Foram números de malabarismo, chicote, boxe entre palhaços, facas e seqüências aéreas realizados em espaços alternativos. Já o Sesc Santo André apresentou em fevereiro a programação É Tempo do Circo!, parte das atividades do Sesc Verão 2006. As atrações misturaram circo tradicional e contemporâneo, trazendo desde números clássicos de trapézio, cama elástica, malabares sobre monociclos e palhaços em pernas-de-pau, até espetáculos dos Parlapatões, Patifes e Paspalhões – que apresentaram também O Bricabraque, solo de Raul Barretto com texto e direção de Hugo Possolo.
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