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Entrevista

REVISTA E - março 2006

 


Fábio Lucas


O escritor e ensaísta Fábio Lucas nasceu em Esmeraldas, Minas Gerais, em 1931, e se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1953. Dez anos depois, tornava-se doutor em economia e história das doutrinas econômicas pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da mesma universidade. Chegou a São Paulo em 1966 e tornou-se membro da Academia Paulista de Letras em 1997 – sendo também membro da Academia Mineira de Letras desde 1960. É presidente do Conselho da União Brasileira de Escritores de São Paulo (no quinto mandato, desde 2002), e foi diretor do Instituto Nacional do Livro (1985 e 1986). Apontado como um dos mais importantes críticos literários do Brasil, o autor também visitou a ficção, publicando, em 1996, o romance A Mais Bela História do Mundo, pela Global Editora (leia conto do autor, O Zelador do Céu, na edição de janeiro de 2005 da Revista E, disponível no site www.sescsp.org.br). Em entrevista à Revista E, Fábio Lucas analisou a importância de figuras como Guimarães Rosa e Clarice Lispector para a literatura brasileira e deu pistas de quem possivelmente serão os próximos nomes fortes da produção nacional. A seguir, trechos.



Como o senhor avalia a literatura brasileira contemporânea?
Eu a vejo com muito otimismo. Principalmente porque hoje se torna difícil falar da literatura brasileira em termos gerais. Até então, o complexo Rio–São Paulo dominava toda a produção e ao mesmo tempo as notícias literárias, de tal sorte que mesmo as áreas periféricas se alimentavam dessa informação. Em qualquer lugar do Brasil, de Porto Alegre até Manaus, liam-se suplementos literários que falavam mais ou menos dos mesmos livros. Ocorre que está havendo no Brasil uma descentralização muito forte, cultural e literária, que nos obriga a um esforço maior para o conhecimento daquilo que é feito fora do eixo Rio–São Paulo. É surpreendente esse prisma brasileiro. O assunto sobre a diversidade cultural do país foi explorado já de certa forma por Gilberto Freyre, que incidiu sobre o regionalismo, e por Vianna Moog, que publicou um livro que é uma interpretação do Brasil como um conjunto de ilhas culturais. Agora temos também, além da produção descentralizada, outro aspecto: a produção editorial forte em alguns estados, como, por exemplo, o Rio Grande do Sul. Esse estado tem anualmente a sua feira do livro [a Jornada Literária de Passo Fundo] e há ocasiões em que apresenta livros que se esgotam e que não chegam sequer a atravessar a fronteira do estado. Em Belo Horizonte, onde fui há pouco tempo, vi que há pequenas editoras produzindo em escala modesta, mas diversificando a produção e com muito bom gosto do ponto de vista gráfico. A descentralização e a produção em unidades menores, todavia significativas, é o aspecto otimista da literatura brasileira.



O volume do que se tem editado é maior, mas essa quantidade tem sugerido ao senhor uma qualidade?
Não. Há um mecanismo mercadológico na escolha de temas e de público. Escolhe-se o público urbano com algum poder econômico. Isso é atrapalhado pelo público universitário. Há professores muito capacitados na universidade brasileira e há professores que fazem as suas escolhas. São eles que lideram uma diversificação muito grande. Muito embora, em vez de o jornalismo buscar na universidade suas informações, esteja havendo uma inversão: alguns setores de mestrado estão se alimentando da informação jornalística. Nós vemos, por exemplo, obras escolhidas para vestibular que são obras já vitoriosas nos formadores de opinião literários. Isso, a meu ver, é uma inversão de posição porque, uma vez que a universidade brasileira já conseguiu formar um público de professores e de alunos de nível qualitativo superior, precisamos chamar a atenção sobre essa facilidade com que os meios de comunicação de massa às vezes inserem suas preferências e motivam os professores a só consumir obras daquele nível. Há algumas décadas que a nossa ficção, por exemplo, é dominada por novelas policiais em grande quantidade, por exploração erótica e, em terceiro lugar, por uma espécie de ética de auto-ajuda ou de vitória no mercado, livros de preparação para as pessoas se inserirem no mundo mercantil.



O senhor acha que isso é resultado da indústria cultural que coloca goela abaixo dos leitores esse tipo de visão ou é uma demanda do mercado?
Isso é bidimensional, porque os leitores procuram algo e são induzidos a procurar esse algo. Ao mesmo tempo, os fornecedores produzem obras adequadas a essa demanda e essa relação circular é prejudicial porque inibe a possibilidade de um autor que esteja fora do padrão estourar. Aliás, há um sociólogo português chamado Boaventura Santos que analisa muito esse aspecto do paradigma cultural, isto é, ele acha que nós estamos vivendo numa época em que o paradigma proposto está vencido, mas não existe outro paradigma para se propor. Então, estamos vivendo numa espécie de entropia, de um caos na demanda, na esfera cultural. Digo isso porque, no Brasil, outro aspecto curioso da cultura é que a música popular brasileira se tornou vitoriosa e, sob certo aspecto, alimenta um comércio muito grande. Ela acabou sendo apropriada pelo tom da música internacional e ao mesmo tempo influenciando as outras artes, principalmente a literatura. Quando se fala em poesia, por exemplo, buscam-se principalmente os grandes compositores, os letristas que no grande mercado literário brasileiro tomaram o lugar dos escritores.



O letrista ganhou status de poeta?
Na área da literatura evidentemente. Como há um grande comércio interdisciplinar entre as artes de um modo geral, o que nós temos acessível é o mercado sempre dominado por um padrão, um cânone que alimenta cada vez mais o desejo do mercado e das pessoas que buscam literatura como entretenimento. Essa idéia de tornar tudo entretenimento, inclusive o ensino, está levando o Brasil a perder uma chance de criar, por exemplo, uma grande geração de cientistas, de inventores e de escritores. Isso porque se canonizou um determinado tipo de cultura, e fica difícil para quem não está dentro dos créditos entrar no mercado ou numa editora. É interessante que estejamos comemorando o cinqüentenário de Grande Sertão: Veredas [de João Guimarães Rosa]. Esse livro foi a primeira grande vitória de um autor fora do cânone na história brasileira, que causou um espanto muito grande porque foi publicado no mesmo ano de Corpo de Baile [também de Guimarães Rosa]. Ou seja, duas obras de fôlego imenso. Aquilo perturbou muito o juízo, os que estavam dentro do cânone fizeram anedotas incontáveis, como dizer que ele precisava ser traduzido para o português. Não foi bem recebido, principalmente, por aqueles escritores que já tinham o seu público. Ironizavam a adesão do meio universitário àquela obra e de alguns críticos mais exigentes. Diziam que era uma onda que iria passar. Além de a obra do Guimarães ter quebrado o cânone até então existente, de todos os escritores de que eu me lembre ele foi o primeiro que não teve uma queda logo depois de seu falecimento. A demanda e o interesse por sua obra continuaram crescendo sem parar.



O senhor acha que a literatura brasileira é muito jornalística?
O jornalismo, quando começou, adotou uma linguagem que era exuberantemente literária. Isso tornava o estilo pesado, ainda mais porque o jornal era para ser consumido no dia. Foi necessário que uma geração de jornalistas criasse uma linguagem mais objetiva e mais direta para que o leitor logo se apropriasse da informação e se satisfizesse com aquilo, presumindo-se que no dia seguinte viriam informações diferentes. Fazia-se uma literatura jornalística para durar um dia, nada mais que isso. O coloquial entrou na linguagem e a literatura jornalística passou a ser mais espontânea e com certa graça. O jornalista poderia ter um estilo diferente, no caso de um colunista, mas na verdade a mensagem de que ele era portador dizia respeito a uma demanda do dia. Como o processo jornalístico se acelerou muito, pela evolução do mercado e das técnicas de produzir o jornal, cristalizou-se também uma linguagem jornalística dos cadernos, do manual de redação, que codificam aquilo que deve ser próprio para o jornal. Ora, como é uma linguagem de veloz comunicação, não deve ser um padrão para o escritor porque o escritor, ao fazer uma obra mais requintada, leva não só um ano, mas dois ou dez. O tempo de criação às vezes não comporta esse estilo jornalístico de impressionar rapidamente o leitor ou de captar sua atenção para uma leitura veloz. Isso é um aspecto, o outro é que essa literatura está ficando muito igual. Os chamados escritores populares, que usam palavrões e expressões populares, até mesmo os que fazem uma espécie de psicologismo refinado, acabam caindo naquela idéia de que é preciso comunicar com rapidez e, portanto, adotar um cânone jornalístico que abranja todos os consumidores do objeto, ou seja, o livro. Eu acho que são vícios que devem ser corrigidos porque o escritor escreve devagar quando tem consciência de seu produto e porque dentro de cada um há uma aspiração à eternidade. Todo o escritor no fundo sonha em sobreviver à própria existência biológica. Esse é um marco com o qual o escritor desafia os deuses.



O senhor acredita que essa “literatura jornalística”, e seu êxito de público e crítica, é algo típico de nossa época?
Acho que sim. O tempo vai peneirar essas informações para mostrar quais têm duração para todo o sempre e quais foram operadas por influência da moda da época. É o que acontece com as figuras da televisão no Brasil, por exemplo. Grandes personalidades de alta figuração no veículo resolveram trazer a sua notoriedade na capa de um livro e tiveram êxito. É preciso saber se o tempo vai ser generoso com esses escritores. Porque são escritores, a meu ver, improvisados, uma vez que o ofício que ocupa a maior parte de sua atividade mental não é a escrita para o livro. Outros vieram da música popular. Há volumes de letras de músicas que são poemas complexos, alguns muito bons, mas eu não sei se a coleção toda vai afrontar o tempo, quando passar a moda, quando a pessoa deixar de ser aquele cantor ou compositor que no momento tem todas as honras da publicidade. Aliás, esse é o grande tema que nós trouxemos do século 20, a publicidade. É preciso que as pessoas conheçam o produto, que se leve o produto a todos, que todos consumam o produto indicado pela publicidade. A publicidade criou uma linguagem que também influenciou alguns produtores de poesia, por exemplo. Creio que se trata de equívocos do nosso período. Não sei se isso vai ter a capacidade de ser armazenado e cultuado, como Homero, Cervantes ou Camões, sem que o interesse se perca.


E a que o senhor credita esse equívoco?
Certamente nós somos capazes de fazer uma lista de dez, 20, 50, 100 bons escritores de prosa no Brasil e outra de belos poetas brasileiros. É muito importante assinalar que quando se fazem as tais relações dos melhores contos e melhores poesias se tem sempre em mente aqueles que estão com a face já estampada nos meios de comunicação de massa. Se essa mesma lista for feita contra a corrente, com aqueles que não estão nessas listas, é possível ver aí escritores que são melhores e até mais interessantes que aqueles que estão sob o foco da publicidade. Por isso que eu acho que deveria haver algum jornal ou uma revista de puro aspecto literário que tivesse como propósito selecionar e divulgar autores de todas as procedências do Brasil – apesar de ser difícil manter isso com a imprensa que temos hoje. Se isso fosse feito com certo rigor, certa beleza e atração tipográfica, poderíamos criar uma publicação de efeito nacional. Pode-se achar que essas publicações acabariam falecendo por falta de recursos, ou seriam devoradas pela mercantilização, mas o que está acontecendo é que os autores traduzidos, mas que nos chegam já com a publicidade feita, estão tomando o lugar do escritor brasileiro.



Essa questão resvala na clássica discussão acerca da identidade do brasileiro?
Penso que há uma visão colonialista em achar que, ao imitar uma pessoa qualquer dos Estados Unidos, por exemplo, boa ou má, há mais chance de aparecer no mundo. Isso é de um provincianismo lamentável. Alguns escritores e críticos falam muito mal de Jorge Amado, mas ele furou as barreiras internacionais porque levava um estilo de contar uma vivência no interior da Bahia que nunca tinha chegado a esses lugares. Essa complexidade cultural que é o Brasil era inteiramente desconhecida, porque não é só índio, nem negro, nem branco, nem só mestiço. É muita coisa entrelaçada para caracterizar.



O senhor concorda que essa complexidade cultural não aparece no romance brasileiro de hoje?
Não surge porque ou se faz romance de classe alta – que são aqueles escritos por pessoas que estão pensando na produção a ser aproveitada na telenovela, uma espécie de romantismo refinado – ou se cai num populismo rebaixado que torna o povo exótico e não natural. Há no Brasil uma mescla tão grande que deveria ser aproveitada e levada à literatura de uma forma conveniente, com uma linguagem literária de alto efeito comunicativo, como foi o caso de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. A Clarice é um fenômeno muito próprio, ela tinha tudo para escrever de uma forma européia por ter vindo da Rússia, mas ela cria tipos e situações que só poderiam existir no Brasil. A Hora da Estrela, por exemplo, conta a história de uma nordestina – a própria Clarice misturava seu sotaque de origem com o sotaque nordestino, sua fala já tinha aquela confluência de dois ambientes – que migrou para o Rio de Janeiro. E ao mesmo tempo faz isso criando uma narrativa em voz masculina. Se nós pegarmos os contos dela, a todo o momento temos situações em que o Brasil aparece muito fortemente. Essa escritora também não recebeu os aplausos suficientes, nem do público nem da crítica, a ponto de ela não ter sequer um editor único. Ela foi jornalista e era um sacrifício mantê-la como jornalista porque os leitores não queriam saber da coluna dela. Hoje ela é lida nos grandes centros culturais do Ocidente com fúria, com um fervor enorme. É uma escritora que exporta um estilo. Esse é um fenômeno que deve ser cogitado: essa propriedade que o Brasil tem de criar grandes nomes, mas que não são aplaudidos na primeira tentativa.



O senhor acha que hoje temos nomes assim?
Eu estou lendo um romance de um rapaz chamado Luís André Nepomuceno, A Lanterna Mágica de Jeremias (7 Letras, 2005), que aborrece quando começa. Depois você vai sendo envolvido pelo livro, que é muito denso. Eu o conheço. Ele fez uma tese sobre Petrarca [Francesco Petrarca, 1304-1374, escritor e poeta italiano] e sobre o petrarquismo no Brasil. Esse rapaz procurou uma coisa que é rara: estudar como a literatura clássica influenciou o Brasil. Eu nunca sonhei que essa pessoa fosse se tornar um ficcionista. Quando peguei o livro, verifiquei a maturidade com que ele encaminha os problemas, com uma segurança muito grande de linguagem, no ponto a que ele queria chegar. Outro escritor que faz poesia e ficção é Ronaldo Fernandes. Recentemente decidi ler o romance dele, O Viúvo (Editora Brasília, 2005). Fiquei encantado com esse autor. Pensei em como o Brasil deu saltos. Falta tempo é de ler todos, há muita coisa boa por aí que não está sendo notada. Esses dois principalmente, porque são os mais recentes, eu acho que merecem estudos demorados, lentos e consagradores.



A crítica busca se renovar e clarear o material que tem sido publicado?
Eu tenho lido muitos autores brasileiros, quase sempre universitários. O que eu noto é certa repetição. A fonte eterna é o Walter Benjamin, cuja obra é cheia de contradições, ele não tem um pensamento formalizado nem uma doutrina literária. Ele tem relâmpagos de inteligência, um atrás do outro. E principalmente a área acadêmica é muito aberta aos fluxos vindos da França, depois da Alemanha. O estruturalismo foi um furor tremendo. Depois veio Bakhtin. Aí vieram outras influências, como Roland Barthes. Isso tudo ecoa no Brasil como uma espécie de lugar para se situar no mundo e falta um pensamento que seja nascido no Brasil, que venha do brasileiro e seja dirigido ao brasileiro. A crítica brasileira tem muito receio de não citar grandes nomes, isso ainda é um peso do colonialismo intelectual, a falta de vigor para afirmar as coisas sem as muletas da cultura eurocêntrica e agora “estadunidense”. Essa necessidade da muleta está tornando vagaroso o processo pelo qual o ensaio brasileiro prime pela versão nacional do que há de humano em tudo. A visão brasileira para o resto do mundo. Com essa idéia de ser sempre caudatário de um fornecedor externo, o que acontece é que o escritor brasileiro se vê tolhido de exprimir as próprias riquezas e de criar uma linguagem que seja inconfundível. Nisso Guimarães Rosa foi extraordinário, porque havia ali uma língua própria, e, segundo essa mesma convicção, uma língua que não pode ser traduzida. Apesar de ter tido grandes tradutores – o próprio Guimarães Rosa ajudou na tradução para o italiano, por exemplo –, perde-se substancialmente quando ele é vertido para outra língua. Acho que só um brasileiro está capacitado a entender totalmente a obra de Guimarães. Acho que isso ocorre com todos os outros grandes poetas. Há um pensamento de um americano que diz que, quando uma obra é passada de um idioma para outro, o que se perde é a poesia.



A grande imprensa está uniformizada?
Está, mas há uma diferença: no Rio de Janeiro, bem ou mal, o Jornal do Brasil e o Globo têm, aos sábados, um suplemento literário mais ou menos como era antigamente, com vários livros e vários comentaristas. Em São Paulo, o suplemento de cultura tem hegemonia de autores estrangeiros, quase sempre norte-americanos. A Folha tem o Mais!, que é uma mistura muito grande de ciência com literatura e é um grupo que privilegia certos autores ou certos companheiros. Antigamente, o suplemento literário oferecia ao leitor uma gama muito grande de opções, numa época em que a literatura brasileira tinha baixa produção. Hoje, que a produção é elevada e diversificada, não há informantes para o leitor, que tem de caçar ali e aqui. Por isso que eu acho importante a literatura alternativa, com pequenos jornais e revistas e circulação própria. De qualquer forma, eles se intercomunicam. Uma vez li um desses jornais alternativos de Brasília que dava uma lista de mais de cem pequenas publicações brasileiras. O autor que publica por conta própria naturalmente se socorre daqueles veículos, que dão a chance de ser comentados ou transcritos, coisa que a grande imprensa não faz. É um volume grande e alguns autores já se impuseram nesse circuito, pela sua importância e capacidade de acesso a essas publicações. Acho que o Brasil está merecendo uma revista que circule sem preconceitos regionais nem de grupos.

 

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