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Memória
Foto: Adriana Vichi
Registros da intimidade revelados ao grande público, como cartas, bilhetes e anotações, ajudam a entender vida e obra de expoentes de uma época
Tudo começou na França, em 1968, quando um grupo de pesquisadores ligados à Biblioteca Nacional francesa recebeu um grande acervo do poeta alemão Henrïch Heine (1797-1856). Uma documentação tão extensa que aguçou a curiosidade dos especialistas. Iniciou-se, então, um estudo do tal material que levou a interpretações da produção do autor. E mais, o fato levou a figura do escritor a ser considerada no processo do estudo literário. “Até os anos 70 o que importava era a obra e não o autor”, explica o professor Marcos Antonio de Moraes, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). “E, a partir dessa época, foi-se afinando o interesse do conhecimento por outros escritores, a ponto de no decorrer das décadas de 70 e 80 vários grupos já estarem preocupados em compreender o processo de criação de nomes como Émile Zola, Proust, Flaubert etc., por meio, também, do acervo de anotações e esboços.” Têm início as atividades de uma área do conhecimento que viria a se dedicar exclusivamente à pesquisa daquilo que antes costumava ficar no fundo das gavetas ou esquecido nos baús. É a crítica genética, uma ciência que, aliada à crítica literária, tem como grande objeto de estudo o manuscrito. O material, embora por definição diga respeito àquilo que foi escrito à mão, refere-se também, por extensão de sentido, a toda e qualquer versão original de um texto – escrito à mão, datilografado ou até mesmo digitalizado – e ainda a bilhetes, marginálias [conjuntos de notas inseridas pelo leitor nas margens de uma página], fichas ou cartas. Enfim, a tudo que originalmente, ou inicialmente, era particular e que por sua importância documental se revela de interesse da humanidade.
Documentos do “eu”
No entanto, de todo material estudado pela crítica genética, um em particular desperta uma curiosidade que ultrapassa o âmbito dos especialistas e encontra eco no interesse dos leitores comuns: as cartas. O motivo? O mais simples possível, pela intimidade que elas revelam. “Por meio da carta de um determinado escritor ou artista, é possível perceber o seu processo de criação e é possível datar certas obras”, afirma o professor Marcos de Moraes. “Mas o interesse do público comum é mesmo pelo que ela pode revelar da vida de uma personalidade das artes ou da literatura. A carta aguça o lado voyeur que todos nós temos de querer saber da vida do outro, o que é natural quando se trata de uma pessoa conhecida.” Para Moraes, a carta pode ainda colocar autor e leitor num mesmo plano, dissolvendo os mitos de inacessibilidade que surgem ao redor de algumas figuras. “É como se eu dissesse: ‘Puxa vida, a Clarice Lispector também pensa como eu em relação a determinada coisa’”, exemplifica o professor. “Ou, de repente, ‘Nossa, como Oscar Wilde sofreu!’. As cartas podem fazer com que as pessoas percebam que sua vivência se encontra com a de alguém que elas valorizam tanto. É um jogo de aproximação.” Definida pela professora Munira H. Mutran, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em seu livro Álbum de Retratos (Humanitas, FFLCH-USP, 2002) como um “monólogo escrito, que relata, confessa algo”, a carta oferece ainda a possibilidade de descoberta histórica. “A gente pode, por meio desse e de outros documentos do ‘eu’, contar a pequena história”, analisa a professora Munira. “Aquela do dia-a-dia, o que se comia no século 19, por exemplo.” Além de, claro, descobrir o que comia Clarice Lispector, Oscar Wilde ou Mário de Andrade. Enfim, grandezas e miudezas ocultas de pessoas cuja obra geralmente é que fala por elas.
Manuel dear
Por exemplo: o que será que Sigmund Freud, o pai da psicanálise, realmente pensava de relações interpessoais, como a amizade? Um estado de co-dependência que se estabelece entre os seres humanos para a própria satisfação ou algo assim? Pode ser. No entanto, o que o leitor comum talvez não saiba é que Freud, mesmo interessado nas profundezas da psique do homem, trocou, por 30 anos, amigável e frutífera correspondência com o religioso suíço Oskar Pfister, pastor protestante engajado na cura das almas por meio da comunhão com Deus. É isso mesmo. Graças ao livro Cartas entre Freud & Pfister (1909 –1939) (Ultimato Editora, 1998), traduzido para o português por Karin Hellen K. Wondracek e Ditmar Junge, descobre-se que o médico vienense especializado em doenças mentais tinha um amigo padre. E sobre Mário de Andrade? O que se sabe além de que ele escreveu Macunaíma e participou ativamente do movimento modernista? Volumes como Correspondência – Mário de Andrade & Manuel Bandeira (IEB, Edusp, 2000), organizado pelo professor Marcos Antonio de Moraes, e Querida Henriqueta – Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa (José Olympio Editora, 1990), organizado por Abigail de Oliveira Carvalho, revelam que Mário prezava os amigos e os tratava com um carinho que contrastava com seus óculos redondos de armação pesada e com uma postura reservada, discreta – marca da vida pública do autor de Paulicéia Desvairada. Para ele, o amigo Manuel Bandeira, poeta pernambucano que vivia no Rio de Janeiro, era “Manelucho”, “Manuel dear” [querido, em inglês] e até “Manu”. Já a poeta mineira Henriqueta Lisboa, também grande amiga, não recebia uma só mensagem sua que não iniciasse com uma prova de entusiasmo – “interrompo o serviço para lhe escrever, estou carecendo”, como diz em carta de 20 de setembro de 1941 – ou que não terminasse com algo do tipo “com abraço mais carícia do Mário”, como em carta de 1º de junho de 1942. Interessante também é saber que o célebre escritor irlandês James Joyce, autor do polêmico romance Ulisses, derramava-se em gracejos à amada Nora Barnacle, chamando-a de “meu anjo” e “minha namoradinha”, como se pode ler em Cartas a Nora.
Um dândi sombrio
Entre as correspondências mais famosas e reveladoras da história, no entanto, não se pode deixar de citar a carta que o escritor Oscar Wilde escreveu, mas acabou não enviando, ao (ex) amigo lorde Alfred Douglas, ou Bosie, como o chamava. A missiva de 130 páginas relata todo o desapontamento do autor com relação à nefasta personalidade de Bosie, que, mesmo tendo sido pivô da prisão do escritor – o pai de Bosie acusou Wilde de ser homossexual, crime na época –, o jovem mostrou pouco se importar com os rumos que a vida do amigo teria. “Enquanto você esteve comigo você foi a absoluta ruína da minha arte”, diz o autor a certa altura da carta. Para completar mais tarde: “Não fosse a piedade e afeição que senti por você e os seus, não estaria agora chorando nesse lugar horrível”. A carta, lançada em livro com o nome de De Profundis (LPM, 1998) é considerada pelos críticos a melhor peça de Wilde. “Ele tinha muitas máscaras”, analisa a professora Munira H. Mutran. “Uma delas era a do dândi, que ele começou a usar por volta de 1880 – com aquelas roupas finas, o girassol na lapela etc. E ele adorava a beleza, só que na prisão ele comia em pratos feitos de folha de lata. Ou seja, de repente, ele cai num mundo horroroso e sem graça. E a carta mostra um ponto de vista completamente diferente sobre ele, um homem mais triste e sombrio.” O Wilde de De Profundis seria mais sincero que o cínico autor de O Retrato de Dorian Gray, um dos mais conhecidos de seus livros? “A gente não sabe o quão sinceras as pessoas são consigo mesmas”, responde a professora. “E Wilde tinha fingido para si próprio durante tanto tempo que fica difícil tirar todas as camadas. Mas, sem dúvida, essa carta dele é uma das mais importantes da literatura.”
Lições para a posteridade
Outros envelopes que se abriram para o mundo, e revelaram um conteúdo igualmente importante para descortinar nuances de personalidade e preocupações literárias do seu autor, tinham como remetente o poeta de língua alemã Rainer Maria Rilke, e como destinatário um colega iniciante, de nome Franz Xaver Kappus. Reunidas sob o título de Cartas a um Jovem Poeta, a coletânea, organizada pelo próprio Kappus, data de 1953, mas pode ser conferida numa reimpressão lançada pela Editora Globo em 2004. “Nas palavras dirigidas a Franz Xaver Kappus, que lhe pediu socorro num momento decisivo da vocação, Rilke expõe as bases do seu processo criativo”, escreve o também poeta Nei Duclós no prefácio, mostrando a importância do material não só para Kappus, mas para toda a posteridade. “Sem dúvida, cartas e documentos manuscritos revelam muito sobre seus autores, assim como sobre seus interlocutores”, reforça o presidente da Biblioteca Nacional, localizada no Rio de Janeiro, Pedro Corrêa do Lago. “Em muitos casos, esses documentos apresentam novos dados sobre o pensamento e a vida de personagens da história, servindo como uma espécie de nova peça em um quebra-cabeça biográfico. Outras vezes, revelam facetas surpreendentes e inesperadas, exatamente por se tratar de documentos não destinados à divulgação pública, nos quais seus autores abordam temas e questões íntimas, quase sempre ausentes em suas obras.”
Os rascunhos de Chico Buarque
Exposição no Sesc Pinheiros traz manuscritos do compositor
Quando um homem entra para a história de um país por meio da palavra – impressa em livros ou transformada em música –, não é surpresa que sua escrita e mesmo registros de caligrafia constituam verdadeiros objetos de desejo para fãs e admiradores. Saber que algumas das músicas que embalaram os sonhos de uma geração, como A Banda (1966), Construção (1971) ou Apesar de Você (1970), nasceram num guardanapo de papel ou folha de caderno, e que suas letras foram criadas, recriadas, rasuradas, tiveram determinadas palavras grifadas, enfim, testemunharam as dúvidas do criador é, no mínimo, emocionante. E são justamente esses manuscritos que formam um dos módulos mais atraentes da exposição Chico Buarque: o Tempo e o Artista, que fica no Sesc Pinheiros até 13 de março. Parte do acervo exposto pertence à Biblioteca Nacional (BN), localizada no Rio de Janeiro, e outra parte foi reunida por Zeca Buarque Ferreira, sobrinho de Chico e curador da mostra. O conjunto exposto, no entanto, não se limita a originais da produção musical e literária do autor. O visitante pode voltar no tempo e encontrar histórias em quadrinhos da época de garoto feitas à mão pelo compositor, um rascunho do discurso de formatura do colégio e até um singelo bilhete escrito para a avó em 1952, antes de viajar para a Itália, no qual o pequeno Chico, então com 8 anos, diz: “Se quando eu chegar aqui e você já estiver no céu, lá mesmo veja que eu serei um cantor de rádio”.
Nas palavras de Pedro Corrêa do Lago, presidente da BN, o projeto evidencia também a necessidade de “ampliar a captação de material documental contemporâneo e atender ao interesse do público brasileiro pela atividade dos expoentes culturais da segunda metade do século 20”. Já Zeca Buarque conta, em texto publicado no catálogo da mostra, que o trabalho é resultado de um “mergulho intenso” em documentos, textos e fotografias que representam aspectos importantes da vida e da obra de Chico.
Escrita eletrônica
E-mails e blogs abastecerão o futuro de informações?
Ao longo dos anos, o hábito de escrever foi lentamente caindo em desuso, até que uma inesperada reviravolta da tecnologia trouxe o costume de volta. Mas ele não era mais o mesmo. O computador e a internet reacenderam a comunicação com o outro por meio da palavra escrita. E-mails, programas de troca instantânea de mensagens, como o MSN, e os blogs (espécie de diários virtuais) são os mais usados pelos que preferem escrever a falar ao telefone. Mas será que eles substituem a carta? “Eu não acredito nisso”, responde categórica a professora Munira H. Mutran, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). “O e-mail é mais para informar alguma coisa, rapidamente. Eu continuo mandando cartas para os meus amigos, manuscritas.” A discussão, porém, não fica somente no gosto por esse ou aquele meio de diálogo. Quando se coloca a questão do ponto de vista do registro histórico por meio de cartas e demais manuscritos, que representantes terá a era que abolir o papel? “Dentro dessa relação entre a escrita manual e escrita no computador, é importante a gente ver o que a crítica genética nos ensina”, recomenda o professor de teoria literária Roberto Zular, da FFLCH-USP. “Quanto nós somos determinados pelos processadores de texto que usamos? Hoje, por exemplo, a regra da maioria dos escritores é não revisar sua produção no computador. Eles imprimem, fazem suas alterações na impressão e voltam ao monitor.” O que se espera é que, de fato, todos sigam essa regra. Caso contrário, ficará difícil, no futuro, decifrar o nosso tempo sem o auxílio dos nossos rascunhos.
O caminho inverso
A literatura se apropria do clima de intimidade gerado pela troca de correspondências para contar histórias memoráveis
Por um lado, as cartas trocadas por escritores e intelectuais no passado, quando reunidas em livros, nos oferecem o prazer e a surpresa de uma boa ficção. No entanto, por outro, algumas obras famosas lançaram mão dos recursos do gênero epistolar para construir a fantasia. É o caso de Ligações Perigosas, romance do século 18, publicado em 1782 e o único do francês Pierre Choderlos de Laclos (1741-1803) – que o diretor inglês Stephen Frears transpôs para as telas do cinema em 1988 – e de Werther, que o alemão Johann Wolfgang von Goethe escreveu em 1774. Em ambos, o enredo não se apresenta na forma de uma história contada por um narrador. No lugar disso, cartas fictícias vão criando, uma a uma, o cenário. “Nesses casos, a carta ganha um estatuto ficcional”, explica Roberto Zular, professor de teoria literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). “O romance, em boa parte, se constitui desde o século 18, fazendo com que as práticas de escrita ganhem o estatuto ficcional. E colocar as cartas como parte de um romance é dar a elas esse estatuto. O que bagunça um pouco a clara diferença que existia entre o campo da correspondência e o da ficção.” Segundo Zular, uma das principais características de um romance que se utiliza desse gênero é que o leitor se insere no enredo como se fosse uma terceira pessoa. “Como se aquilo não estivesse destinado a ele”, retoma o professor. “Quem lê tem de ir construindo a situação a partir da relação entre os personagens e as cartas que passam a circular. E não há um narrador, mas vários, que são as pessoas que escrevem as cartas.”