Postado em 01/03/2005
Foto: Adriana Vichi
Registros da intimidade revelados ao grande público, como cartas, bilhetes e anotações, ajudam a entender vida e obra de expoentes de uma época
Tudo começou na França, em 1968, quando um grupo de pesquisadores ligados à Biblioteca Nacional francesa recebeu um grande acervo do poeta alemão Henrïch Heine (1797-1856). Uma documentação tão extensa que aguçou a curiosidade dos especialistas. Iniciou-se, então, um estudo do tal material que levou a interpretações da produção do autor. E mais, o fato levou a figura do escritor a ser considerada no processo do estudo literário. “Até os anos 70 o que importava era a obra e não o autor”, explica o professor Marcos Antonio de Moraes, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). “E, a partir dessa época, foi-se afinando o interesse do conhecimento por outros escritores, a ponto de no decorrer das décadas de 70 e 80 vários grupos já estarem preocupados em compreender o processo de criação de nomes como Émile Zola, Proust, Flaubert etc., por meio, também, do acervo de anotações e esboços.” Têm início as atividades de uma área do conhecimento que viria a se dedicar exclusivamente à pesquisa daquilo que antes costumava ficar no fundo das gavetas ou esquecido nos baús. É a crítica genética, uma ciência que, aliada à crítica literária, tem como grande objeto de estudo o manuscrito. O material, embora por definição diga respeito àquilo que foi escrito à mão, refere-se também, por extensão de sentido, a toda e qualquer versão original de um texto – escrito à mão, datilografado ou até mesmo digitalizado – e ainda a bilhetes, marginálias [conjuntos de notas inseridas pelo leitor nas margens de uma página], fichas ou cartas. Enfim, a tudo que originalmente, ou inicialmente, era particular e que por sua importância documental se revela de interesse da humanidade.
No entanto, de todo material estudado pela crítica genética, um em particular desperta uma curiosidade que ultrapassa o âmbito dos especialistas e encontra eco no interesse dos leitores comuns: as cartas. O motivo? O mais simples possível, pela intimidade que elas revelam. “Por meio da carta de um determinado escritor ou artista, é possível perceber o seu processo de criação e é possível datar certas obras”, afirma o professor Marcos de Moraes. “Mas o interesse do público comum é mesmo pelo que ela pode revelar da vida de uma personalidade das artes ou da literatura. A carta aguça o lado voyeur que todos nós temos de querer saber da vida do outro, o que é natural quando se trata de uma pessoa conhecida.” Para Moraes, a carta pode ainda colocar autor e leitor num mesmo plano, dissolvendo os mitos de inacessibilidade que surgem ao redor de algumas figuras. “É como se eu dissesse: ‘Puxa vida, a Clarice Lispector também pensa como eu em relação a determinada coisa’”, exemplifica o professor. “Ou, de repente, ‘Nossa, como Oscar Wilde sofreu!’. As cartas podem fazer com que as pessoas percebam que sua vivência se encontra com a de alguém que elas valorizam tanto. É um jogo de aproximação.” Definida pela professora Munira H. Mutran, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em seu livro Álbum de Retratos (Humanitas, FFLCH-USP, 2002) como um “monólogo escrito, que relata, confessa algo”, a carta oferece ainda a possibilidade de descoberta histórica. “A gente pode, por meio desse e de outros documentos do ‘eu’, contar a pequena história”, analisa a professora Munira. “Aquela do dia-a-dia, o que se comia no século 19, por exemplo.” Além de, claro, descobrir o que comia Clarice Lispector, Oscar Wilde ou Mário de Andrade. Enfim, grandezas e miudezas ocultas de pessoas cuja obra geralmente é que fala por elas.
Por exemplo: o que será que Sigmund Freud, o pai da psicanálise, realmente pensava de relações interpessoais, como a amizade? Um estado de co-dependência que se estabelece entre os seres humanos para a própria satisfação ou algo assim? Pode ser. No entanto, o que o leitor comum talvez não saiba é que Freud, mesmo interessado nas profundezas da psique do homem, trocou, por 30 anos, amigável e frutífera correspondência com o religioso suíço Oskar Pfister, pastor protestante engajado na cura das almas por meio da comunhão com Deus. É isso mesmo. Graças ao livro Cartas entre Freud & Pfister (1909 –1939) (Ultimato Editora, 1998), traduzido para o português por Karin Hellen K. Wondracek e Ditmar Junge, descobre-se que o médico vienense especializado em doenças mentais tinha um amigo padre. E sobre Mário de Andrade? O que se sabe além de que ele escreveu Macunaíma e participou ativamente do movimento modernista? Volumes como Correspondência – Mário de Andrade & Manuel Bandeira (IEB, Edusp, 2000), organizado pelo professor Marcos Antonio de Moraes, e Querida Henriqueta – Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa (José Olympio Editora, 1990), organizado por Abigail de Oliveira Carvalho, revelam que Mário prezava os amigos e os tratava com um carinho que contrastava com seus óculos redondos de armação pesada e com uma postura reservada, discreta – marca da vida pública do autor de Paulicéia Desvairada. Para ele, o amigo Manuel Bandeira, poeta pernambucano que vivia no Rio de Janeiro, era “Manelucho”, “Manuel dear” [querido, em inglês] e até “Manu”. Já a poeta mineira Henriqueta Lisboa, também grande amiga, não recebia uma só mensagem sua que não iniciasse com uma prova de entusiasmo – “interrompo o serviço para lhe escrever, estou carecendo”, como diz em carta de 20 de setembro de 1941 – ou que não terminasse com algo do tipo “com abraço mais carícia do Mário”, como em carta de 1º de junho de 1942. Interessante também é saber que o célebre escritor irlandês James Joyce, autor do polêmico romance Ulisses, derramava-se em gracejos à amada Nora Barnacle, chamando-a de “meu anjo” e “minha namoradinha”, como se pode ler em Cartas a Nora.
Entre as correspondências mais famosas e reveladoras da história, no entanto, não se pode deixar de citar a carta que o escritor Oscar Wilde escreveu, mas acabou não enviando, ao (ex) amigo lorde Alfred Douglas, ou Bosie, como o chamava. A missiva de 130 páginas relata todo o desapontamento do autor com relação à nefasta personalidade de Bosie, que, mesmo tendo sido pivô da prisão do escritor – o pai de Bosie acusou Wilde de ser homossexual, crime na época –, o jovem mostrou pouco se importar com os rumos que a vida do amigo teria. “Enquanto você esteve comigo você foi a absoluta ruína da minha arte”, diz o autor a certa altura da carta. Para completar mais tarde: “Não fosse a piedade e afeição que senti por você e os seus, não estaria agora chorando nesse lugar horrível”. A carta, lançada em livro com o nome de De Profundis (LPM, 1998) é considerada pelos críticos a melhor peça de Wilde. “Ele tinha muitas máscaras”, analisa a professora Munira H. Mutran. “Uma delas era a do dândi, que ele começou a usar por volta de 1880 – com aquelas roupas finas, o girassol na lapela etc. E ele adorava a beleza, só que na prisão ele comia em pratos feitos de folha de lata. Ou seja, de repente, ele cai num mundo horroroso e sem graça. E a carta mostra um ponto de vista completamente diferente sobre ele, um homem mais triste e sombrio.” O Wilde de De Profundis seria mais sincero que o cínico autor de O Retrato de Dorian Gray, um dos mais conhecidos de seus livros? “A gente não sabe o quão sinceras as pessoas são consigo mesmas”, responde a professora. “E Wilde tinha fingido para si próprio durante tanto tempo que fica difícil tirar todas as camadas. Mas, sem dúvida, essa carta dele é uma das mais importantes da literatura.”
Outros envelopes que se abriram para o mundo, e revelaram um conteúdo igualmente importante para descortinar nuances de personalidade e preocupações literárias do seu autor, tinham como remetente o poeta de língua alemã Rainer Maria Rilke, e como destinatário um colega iniciante, de nome Franz Xaver Kappus. Reunidas sob o título de Cartas a um Jovem Poeta, a coletânea, organizada pelo próprio Kappus, data de 1953, mas pode ser conferida numa reimpressão lançada pela Editora Globo em 2004. “Nas palavras dirigidas a Franz Xaver Kappus, que lhe pediu socorro num momento decisivo da vocação, Rilke expõe as bases do seu processo criativo”, escreve o também poeta Nei Duclós no prefácio, mostrando a importância do material não só para Kappus, mas para toda a posteridade. “Sem dúvida, cartas e documentos manuscritos revelam muito sobre seus autores, assim como sobre seus interlocutores”, reforça o presidente da Biblioteca Nacional, localizada no Rio de Janeiro, Pedro Corrêa do Lago. “Em muitos casos, esses documentos apresentam novos dados sobre o pensamento e a vida de personagens da história, servindo como uma espécie de nova peça em um quebra-cabeça biográfico. Outras vezes, revelam facetas surpreendentes e inesperadas, exatamente por se tratar de documentos não destinados à divulgação pública, nos quais seus autores abordam temas e questões íntimas, quase sempre ausentes em suas obras.”
Quando um homem entra para a história de um país por meio da palavra – impressa em livros ou transformada em música –, não é surpresa que sua escrita e mesmo registros de caligrafia constituam verdadeiros objetos de desejo para fãs e admiradores. Saber que algumas das músicas que embalaram os sonhos de uma geração, como A Banda (1966), Construção (1971) ou Apesar de Você (1970), nasceram num guardanapo de papel ou folha de caderno, e que suas letras foram criadas, recriadas, rasuradas, tiveram determinadas palavras grifadas, enfim, testemunharam as dúvidas do criador é, no mínimo, emocionante. E são justamente esses manuscritos que formam um dos módulos mais atraentes da exposição Chico Buarque: o Tempo e o Artista, que fica no Sesc Pinheiros até 13 de março. Parte do acervo exposto pertence à Biblioteca Nacional (BN), localizada no Rio de Janeiro, e outra parte foi reunida por Zeca Buarque Ferreira, sobrinho de Chico e curador da mostra. O conjunto exposto, no entanto, não se limita a originais da produção musical e literária do autor. O visitante pode voltar no tempo e encontrar histórias em quadrinhos da época de garoto feitas à mão pelo compositor, um rascunho do discurso de formatura do colégio e até um singelo bilhete escrito para a avó em 1952, antes de viajar para a Itália, no qual o pequeno Chico, então com 8 anos, diz: “Se quando eu chegar aqui e você já estiver no céu, lá mesmo veja que eu serei um cantor de rádio”.
Nas palavras de Pedro Corrêa do Lago, presidente da BN, o projeto evidencia também a necessidade de “ampliar a captação de material documental contemporâneo e atender ao interesse do público brasileiro pela atividade dos expoentes culturais da segunda metade do século 20”. Já Zeca Buarque conta, em texto publicado no catálogo da mostra, que o trabalho é resultado de um “mergulho intenso” em documentos, textos e fotografias que representam aspectos importantes da vida e da obra de Chico.
E-mails e blogs abastecerão o futuro de informações?
Ao longo dos anos, o hábito de escrever foi lentamente caindo em desuso, até que uma inesperada reviravolta da tecnologia trouxe o costume de volta. Mas ele não era mais o mesmo. O computador e a internet reacenderam a comunicação com o outro por meio da palavra escrita. E-mails, programas de troca instantânea de mensagens, como o MSN, e os blogs (espécie de diários virtuais) são os mais usados pelos que preferem escrever a falar ao telefone. Mas será que eles substituem a carta? “Eu não acredito nisso”, responde categórica a professora Munira H. Mutran, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). “O e-mail é mais para informar alguma coisa, rapidamente. Eu continuo mandando cartas para os meus amigos, manuscritas.” A discussão, porém, não fica somente no gosto por esse ou aquele meio de diálogo. Quando se coloca a questão do ponto de vista do registro histórico por meio de cartas e demais manuscritos, que representantes terá a era que abolir o papel? “Dentro dessa relação entre a escrita manual e escrita no computador, é importante a gente ver o que a crítica genética nos ensina”, recomenda o professor de teoria literária Roberto Zular, da FFLCH-USP. “Quanto nós somos determinados pelos processadores de texto que usamos? Hoje, por exemplo, a regra da maioria dos escritores é não revisar sua produção no computador. Eles imprimem, fazem suas alterações na impressão e voltam ao monitor.” O que se espera é que, de fato, todos sigam essa regra. Caso contrário, ficará difícil, no futuro, decifrar o nosso tempo sem o auxílio dos nossos rascunhos.
A literatura se apropria do clima de intimidade gerado pela troca de correspondências para contar histórias memoráveis
Por um lado, as cartas trocadas por escritores e intelectuais no passado, quando reunidas em livros, nos oferecem o prazer e a surpresa de uma boa ficção. No entanto, por outro, algumas obras famosas lançaram mão dos recursos do gênero epistolar para construir a fantasia. É o caso de Ligações Perigosas, romance do século 18, publicado em 1782 e o único do francês Pierre Choderlos de Laclos (1741-1803) – que o diretor inglês Stephen Frears transpôs para as telas do cinema em 1988 – e de Werther, que o alemão Johann Wolfgang von Goethe escreveu em 1774. Em ambos, o enredo não se apresenta na forma de uma história contada por um narrador. No lugar disso, cartas fictícias vão criando, uma a uma, o cenário. “Nesses casos, a carta ganha um estatuto ficcional”, explica Roberto Zular, professor de teoria literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). “O romance, em boa parte, se constitui desde o século 18, fazendo com que as práticas de escrita ganhem o estatuto ficcional. E colocar as cartas como parte de um romance é dar a elas esse estatuto. O que bagunça um pouco a clara diferença que existia entre o campo da correspondência e o da ficção.” Segundo Zular, uma das principais características de um romance que se utiliza desse gênero é que o leitor se insere no enredo como se fosse uma terceira pessoa. “Como se aquilo não estivesse destinado a ele”, retoma o professor. “Quem lê tem de ir construindo a situação a partir da relação entre os personagens e as cartas que passam a circular. E não há um narrador, mas vários, que são as pessoas que escrevem as cartas.”