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Arte
Ocupando cada vez mais o cenário urbano, o grafite e outras técnicas de intervenção aumentam o alcance da arte de rua
Manhã de janeiro, em um dia qualquer da semana. O grafiteiro José Augusto Capella, o Zezão, sai pelas galerias subterrâneas da cidade para grafitar as paredes de túneis sobre os quais a cidade pulsa. Mas qual a utilidade de pintar um local que ninguém vai ver, um lugar escondido embaixo do concreto? Essa é a primeira pergunta que vem à cabeça de quem escuta o grafiteiro falar de suas incursões ao mundo desconhecido de São Paulo. Ele responde: “Reconheço que é sinistro. É um lugar escuro, fedido, no qual geralmente não sei onde estou pisando”. Parece uma atividade arriscada. E, segundo o artista, é mesmo. “Protejo-me como posso, uso roupas adequadas e presto atenção no clima. Se pego uma chuva lá embaixo, por exemplo, corro o risco de ser engolido por um ‘tsunami’. Mas faço isso para deixar a minha marca. Daqui a alguns anos, pretendo formar uma galeria subterrânea somente com meus desenhos”, explica. Ex-pichador, morador do Pari, bairro da Zona Norte paulistana, Zezão usa a cidade como suporte há uma década. Já foi preso três vezes por ser flagrado com o spray na mão, subiu em trens, prédios, tudo para deixar a sua marca na caótica paisagem paulistana. Chegou mesmo a cair na margem do Rio Tietê, enquanto tentava escrever “come lixo” numa escavadeira. No entanto, num desses movimentos inesperados da vida, o que começou na clandestinidade hoje é profissão. O protesto marginal de Zezão burlou o crivo da ordem – ou, quem sabe, foi absorvido por ele – e chegou ao establishment, à elite. Hoje, o grafiteiro, com status de artista, ganha dinheiro vendendo telas, dando aulas sobre a técnica e fazendo trabalhos para empresas como a Nike, o McDonald’s e, quem diria, até o BankBoston. Mas, apesar disso, ele jura fidelidade às ruas: “Foi onde tudo começou, é de onde saiu minha arte e para onde sempre volto”.
Juventude nômade
Assim como Zezão, um batalhão de jovens imprime seu rastro pela cidade por meio da pintura e de desenhos. A antropóloga da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Rita de Oliveira define essas manifestações como típicas das metrópoles, lugares onde, segundo ela, os jovens circulam muito. “A juventude é nômade por excelência. Primeiro você sai do seu quarteirão, depois vai para outro bairro e depois para outro. Com 20 anos, se quer ganhar a cidade. O garoto da Zona Norte vai à Zona Sul e lá deixa sua marca: ‘ZN’. É a marca de onde ele veio, onde ele está.”
E as técnicas existentes para “marcar” a cidade estão se diversificando. Atualmente, adesivos (o sticker) e pinturas na parede feitas por meio de molduras vazadas (o estêncil) disputam espaço com o grafite quando o assunto é “intervenção” na paisagem da cidade. Para essa geração pós-grafite, as modalidades podem ser diferentes, mas a idéia é a mesma: expressar-se nos diversos espaços, disponíveis ou não para isso. “Trata-se, na verdade, de variações sobre o mesmo tema”, comenta Rita. “Uma pode ser considerada mais bonita, outra mais agressiva. Mas todas fazem parte do mesmo processo.”
No entanto, tais intervenções geram polêmica. A começar pela amplitude do conceito de intervenção urbana. Do grafite ao sticker, muitas manifestações podem ser consideradas intervenção. Só que todas são ilegais, assim como a pichação, considerada inclusive uma forma de vandalismo. Mas, para quem entende a rua como espaço público, torna-se legítimo o ato de usá-la também para esse fim? “Somos comparados com os pichadores, mas compramos essa briga”, afirma Eduardo Saretta, 29 anos, do grupo especializado em sticker SHN e que esteve nas oficinas que o Sesc Pinheiros promoveu para ensinar várias técnicas desse tipo de intervenção (veja boxe O Sesc e a cidade). “O que fazemos hoje, de certa forma, nasceu da pichação, assim como o grafite. A sociedade tem de entender que pichação é um índice de desequilíbrio social. Pichar não pode, mas a caçamba de entulho pode, construir prédios que não têm a menor coerência com o espaço também pode, poluição visual gerada por uma publicidade desordenada idem. O vândalo é o moleque que escreve seu nome no meio disso tudo?”, indaga Eduardo. Quanto à ilegalidade de usar a cidade como suporte para seus stickers, o discurso também está pronto: “Se pode publicidade, por que não posso colar meu adesivo em um poste? Usamos os mesmos meios que a publicidade, mas não queremos vender nada, fazemos antipublicidade”, afirma. O colega de um outro grupo, o Base V, Danilo Oliveira, 23 anos, faz coro à reivindicação: “Se ninguém fala nada da placa de ‘Vendo ouro’, por que não posso colar meus adesivos?”
Polícia do grafite
A despeito das discussões acerca da legalização desse tipo de intervenção, Danilo e Eduardo apontam São Paulo como um celeiro mundial para a arte de rua e contam que, em comparação com outras cidades do mundo, como Milão e Londres, a repressão aqui é bem “mais leve”. “Não temos uma ‘polícia do grafite’ como algumas cidades européias têm, nem tantas câmeras pelas ruas”, diz Eduardo. “Além disso, o sticker é mais seguro, mais rápido e mais limpo. Você chega ao local, gruda na parede e pronto.” A única vez em que Eduardo e seus colegas do SHN passaram por problemas foi quando tentaram fazer uma intervenção para celebrar o “dia de não comprar nada”. Seria uma manifestação que passaria quase despercebida, se não fosse dentro de uma loja da rede McDonald’s. “Quando entramos ninguém entendia o que estava acontecendo. Depois veio o gerente e a polícia, que foi supereducada. Acabamos entregando adesivos em vez de colar na parede”, conta. Às vezes, porém, a lógica invertida de usar publicidade para não vender nada acha seu lugar exatamente no mercado. Como Zezão e seus trabalhos para a Nike, outros hoje são pagos por diversas marcas-símbolo da cultura de massa para fazer o que aprenderam nas ruas. Seriam os representantes da antipublicidade a serviço do marketing? O norte-americano Shepard Fairey, considerado precursor dos stickers, é um deles. No início dos anos 90, Fairey era só um universitário que havia criado um adesivo no qual se via uma imagem em preto e branco do campeão de luta livre Andre the Giant com a inscrição “Obey giant” (obedeça ao gigante). A imagem foi parar em camisetas e pôsteres, tornando-se famosa não só nos Estados Unidos como no mundo inteiro. Atualmente, Fairey coloca sua criatividade à disposição de empresas como Pepsi e Universal Studios, e vende suas peças em galerias de arte. Coisas do mundo moderno.
Democracia das ruas
As intervenções com stickers podem acontecer em grupos ou como uma manifestação solitária. Danilo, do Base V, por exemplo, sempre tem um adesivo no bolso. “Por onde passo, colo os meus adesivos. Seja num ônibus, seja em um poste. A rua é o único lugar que não se passa pelo crivo de ninguém”, afirma. Não depender de nenhum tipo de crítica ou índice de popularidade para expor trabalhos é também um dos aspectos que mais atraem Fernanda Talavera, a Fefê, recém-formada em artes plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), na arte de rua. “Gosto da idéia de mostrar meu trabalho a todo tipo de gente, sem os entraves de uma galeria. Na rua só preciso de luz e de um bom lugar para colar. Ou seja, faço em pleno dia. Nunca fui importunada. Pelo contrário, tem gente que pára e diz que é bonito”, conta ela. Na sua fase atual, Fefê tem feito colagens com papéis recortados em forma de letras que juntas “viram” bichos. Porém, se, por um lado, nas paredes públicas estão a liberdade de criação e a possibilidade de ver uma obra chegar a um número muito maior de pessoas, por outro, elas exigem desapego total ao que foi criado. “Quem põe seu trabalho na rua sabe que é efêmero”, diz Eduardo Saretta, do SHN. “Posso colar o adesivo e dois minutos depois vir um moleque e escrever em cima ‘Paula, te amo’. Acho mais legal ainda.”
Oficinas de cores
Projetos ensinam técnicas da arte de rua
Três das unidades do Sesc embarcaram na onda da arte em espaços públicos e promoveram oficinas sobre as diversas técnicas atuais e intervenções na cidade. No Sesc Carmo, o artista plástico Eymard Ribeiro coordenou, em janeiro, o projeto Cores da Cidade, que, com tintas e pincéis, envolveu crianças e adolescentes do Baixo Glicério, centro de São Paulo, num verdadeiro trabalho de recuperação da região. Os jovens pintaram e grafitaram os abandonados bancos de madeira de uma praça e aprenderam como preservar o local onde moram. “Inicialmente eram 11 bancos e dez crianças”, conta Eymard. “No fim, havia 90 pessoas.” Os participantes do projeto, assim como demais moradores, se animaram e propuseram ainda mais trabalhos. “As pessoas tendem a cuidar mais do patrimônio quando tem a mão delas ali”, conta o artista plástico e arte-educador que tem um trabalho parecido no Projeto Aprendiz, na Vila Madalena, em São Paulo.
Já o Sesc Ipiranga colocou à disposição dos artistas de rua o Mural do Quintal, uma grande parede de 23 metros de comprimento por 7 de altura, para intervenções que utilizam diversas técnicas. Os interessados devem inscrever seus trabalhos na Área de Convivência. A própria equipe de técnicos seleciona as propostas, e os trabalhos ficam expostos por 40 dias. Para inaugurar o local, está em cartaz até 8 de março a exposição Signos Gráficos, de Augusto Sampaio. A mostra traz uma série de 100 xilogravuras que, juntas, formam um imenso painel.
Na unidade Pinheiros, o Sesc promoveu, em fevereiro, uma semana de oficinas que ensinaram os segredos do estêncil, grafite, sticker e colagem, convidando os próprios artistas a dar as aulas. O projeto Rua: Espaço Grátis contou com participantes dos grupos Base V, SHN e Coringa, e ainda os artistas Fernanda Talavera, Alex Kaleb, Pops e Zezão. Além das oficinas, todos eles se reuniram para fazer uma intervenção que juntou os estilos. O trabalho em conjunto resultou em um painel exposto no 2º andar da unidade.
Manifestação urbana
Grafite, estêncil e sticker são febre mundial
Grafite – A palavra é de origem italiana e significa “escritas feitas com carvão”. No final da década de 60, jovens do Bronx, em Nova York, nos Estados Unidos, incrementaram a técnica usando tintas em spray. Entre os artistas que se destacaram, estão os norte-americanos Jean-Michel Basquiat e Keith Haring, que expôs seu trabalho na XVII Bienal Internacional de São Paulo, em 1983, exercendo forte impacto entre os grafiteiros no Brasil. A Bienal seguinte consagrou os brasileiros Alex Vallauri, Matuck e Zaidler.
Sticker – Denominado por muitos como pós-grafite, é um adesivo que traz desenhos ou mensagens. Vem ganhando adeptos nos últimos anos, sobretudo, após a popularização da internet, que permite trocar imagens com artistas do mundo inteiro. Mas a técnica não é recente. Por exemplo: em 1978, o artista multimídia Tadeu Jungle chamou a atenção ao colar pelas paredes de São Paulo e distribuir 1.000 adesivos com as inscrições “Fure fila”, “Faça figa” e “Fuja do faro da fera”, numa referência bem-humorada a palavras de ordem do movimento estudantil.
Estêncil – Trata-se de uma das técnicas usadas no grafite, em que, por meio de uma máscara vazada, é possível imprimir a imagem. As máscaras de estêncil permitem também criar um grafite em série.
Conheça alguns sites em que é possível encontrar mais informações sobre a arte de rua
SHN (www.fotolog.net/shn)
Base V (www.basev.has.it)
Obey Giant (www.obeygiant.com)
Choque Cultural (www.choquecultural.com.br)
Street Stickers (www.streetstickers.co.uk)