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Cinema
Legado da Vera Cruz, que nos anos 50 levou o cinema nacional para telas do mundo, revela sua verdadeira importância para a trajetória da sétima arte no Brasil
No campo das artes, a primeira metade do século 20 no Brasil foi marcada pelo esforço de intelectuais e artistas brasileiros em mudar a cena cultural do País. A efervescência dessas iniciativas teve como cenário a cidade de São Paulo, uma das capitais que mais cresceram no mundo durante o século passado – com especial intensidade no chamado período pós-guerra. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a cidade foi tomada pelo sonho da criação de um grande pólo cultural no hemisfério sul. Nessa época, final da década de 40, foram fundados, por exemplo, o Museu de Arte Moderna, o MAM, e o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, dois dos mais importantes da América Latina. Este último, construído por iniciativa de Assis Chateaubriand, magnata das comunicações, dono de emissoras de TV, estações de rádio e jornais. Além do jornalista, outros grandes fomentadores das artes surgem em São Paulo, como o empresário italiano Ciccillo Matarazzo, e seu conterrâneo Franco Zampari, que, trazido ao Brasil pelo amigo empresário, transformaria a história do teatro e do cinema brasileiros (veja boxe Um homem das artes). Entre os feitos, a modernização do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e a criação dos estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, menina dos olhos cuja trajetória será contada no projeto Vera Cruz – Imagens e História do Cinema Brasileiro, em cartaz a partir de 1º de março no Sesc Ipiranga. O evento resgata fatos e figuras desse momento áureo da produção cinematográfica nacional por meio de uma exposição de fotos e cartazes, além da exibição de algumas das produções mais importantes dos estúdios (veja boxe Glórias e divas). A programação conta ainda com um show de Renato Consorte, ator da Vera Cruz, e uma palestra com Sérgio Martinelli, professor de cinema e organizador do livro que emprestou o nome à exposição, editado pela Abooks, em 2002. “Precisamos rever o legado da Vera Cruz e seu verdadeiro papel no cinema brasileiro”, diz Martinelli. “Desde sua grande crise, em 1954, uma idéia que ficou mal resolvida, e que foi reforçada pelo pessoal do Cinema Novo, é a de que a Vera Cruz teria sido um projeto falido, coisa ultrapassada. A grande surpresa é descobrir que ela nunca faliu, produziu até 1976, e funciona até hoje como distribuidora”, revela.
Ascensão e queda
Em 1949, Zampari, com o apoio de alguns empresários paulistas, toma a frente de uma proposta ambiciosa: industrializar a produção nacional seguindo os moldes dos grandes estúdios de Hollywood. Assim como havia feito no TBC, Zampari não poupou esforços, tirando proveito do momento oportuno pelo qual passava o Brasil na época. O professor de cinema Carlos Augusto Calil, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), explica: “Havia uma lei – a 790, que entrou em vigor naquele ano – que isentava de impostos a importação de equipamentos cinematográficos destinados a estúdios e laboratórios. Foi então que os proprietários dos laboratórios procuraram Zampari para propor sociedade. Zampari já sabia montar um espetáculo no palco. Agora só faltava descobrir a melhor maneira de levá-lo às telas”. Inicialmente três estúdios foram construídos num terreno de 100 mil metros quadrados em São Bernardo do Campo, região do ABC, em São Paulo – que pertencia a Ciccillo Matarazzo. Até 1954, foram produzidos 18 filmes nesse complexo. De lá saíram divas e obras que conquistaram prêmios internacionais. Esse ambiente atraiu profissionais de vários cantos do mundo.
Com o slogan “Do planalto abençoado para as telas do mundo”, Zampari reuniu os melhores talentos da sétima arte. Sua primeira providência foi contratar Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro que circulava com prestígio pelo cinema europeu na época. O montador Oswald Hafenrichter, o diretor de fotografia Henry Fowle e o engenheiro de som Erik Rasmussen também engrossaram a equipe. Vieram ainda diretores como os italianos Ugo Lombardi – pai da atriz Bruna Lombardi –, Adolfo Celi, o anglo-argentino Tom Payne e o português Fernando de Barros, que se casou com Maria Della Costa.
No entanto, se a vinda dos estrangeiros imprimia o ar cosmopolita e profissional buscado pela Vera Cruz, era, ao mesmo tempo, o que a tornava alvo de críticas. Passou a não ser muito bem vista a quase total ausência de brasileiros em cargos importantes. A Vera Cruz constantemente era acusada de não retratar o Brasil nas telas em nome dessa temática cosmopolita, argumento entoado também, uma década mais tarde, pelo pessoal do Cinema Novo, de Glauber Rocha. A fase gloriosa da companhia acabou em 1954, cinco anos, 18 produções e uma imensa dívida depois. “O Banco do Estado de São Paulo foi um credor impiedoso”, esclarece o professor de cinema Sérgio Martinelli. “Os 18 filmes produzidos até então estavam começando a gerar lucro. O Cangaceiro [filme de 1952, dirigido por Lima Barreto] era um sucesso internacional. Mas de repente acabou o dinheiro e junto com ele também todas as linhas de crédito.”
Sem saída, Zampari entregou os estúdios ao banco. Iniciou-se então a fase da Brasil Filmes, alternativa encontrada por Abílio Pereira de Almeida, um dos cineastas da Vera Cruz. Nesse período, continuou-se produzindo dentro dos estúdios, porém eram filmes mais baratos e rápidos, distantes do ideal de Zampari. A Brasil Filmes passou, nessa época, a se encarregar da distribuição de seus lançamentos, parte do processo que a sua antecessora ignorou, ficando à mercê de distribuidoras internacionais. Hoje, os estúdios da Vera Cruz pertencem à Prefeitura de São Bernardo do Campo, e lá foram filmados sucessos nacionais recentes como Carandiru (2002), de Hector Babenco, e Sábado (1994), de Ugo Giorgetti, e clássicos como O Beijo da Mulher Aranha (1985), também de Babenco, que conquistou um Oscar, o de melhor ator, para o norte-americano William Hurt.
O sonho de Zampari durou apenas cinco anos, mas os ecos da iniciativa podem ser ouvidos até hoje. “Seja no chamado cinema publicitário paulista – muito premiado –, seja na mentalidade profissional dos cineastas contemporâneos, que valorizam o conhecimento e a utilização das tecnologias a seu dispor”, analisa o professor de cinema Carlos Augusto Calil. “Além disso, ela provou que o cinema brasileiro poderia conquistar o público interno de alto a baixo, sem segmentações.” Ainda segundo Calil, o nome para esse grande passo do cinema nacional não poderia ter sido outro – “Vera Cruz, a terra prometida”, diz ele. Se lembrarmos que foi esse um dos primeiros nomes que o Brasil recebeu dos portugueses – quando, em 1500, na visão do colonizador era uma terra virgem e cheia de possibilidades –, a analogia parece mais que pertinente.
Um homem das artes
Franco Zampari foi o grande nome por trás da Vera Cruz e do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)
Em 1948, Zampari instituiu o profissionalismo no teatro brasileiro – até então raro entre nós – ao modernizar artística e organizacionalmente o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Esforços não foram poupados, a nova concepção de teatro trazida pelo italiano concentrava os melhores técnicos, os mais avançados equipamentos e os mais talentosos atores. Só para citar um exemplo da excelência que se pretendia atingir, era proibido que qualquer contra-regra alugasse ou tomasse emprestado algum objeto de cena para as produções do TBC. Tudo era produzido nas oficinas do próprio teatro. Como resultado de tanto cuidado, crítica e público passaram a ver espetáculos com uma qualidade técnica bem superior àquela que todos estavam acostumados. No palco, nasciam figuras como Paulo Autran, Tônia Carrero e Renato Consorte. “Entrei no TBC como parte daquele elenco maravilhoso, que fez, em 1949, uma renovação do teatro brasileiro”, relembra Consorte, um dos primeiros atores do TBC e, posteriormente, da Vera Cruz, em depoimento publicado no livro Vera Cruz – Imagens e História do Cinema Brasileiro (Abooks, 2002). “Se no teatro antigo havia figuras principais e o resto era resto, no TBC todo mundo recebia a mesma atenção.” O TBC foi iniciativa de Zampari, mas vale também lembrar que o êxito da iniciativa deveu-se muito a uma espécie de mecenato que vigorava na alta sociedade paulistana da época. “Embora as bilheterias fossem muito boas, por exemplo, não cobriam os altos custos dos espetáculos”, conta Débora Zampari, esposa de Franco, também em depoimento que faz parte do livro. “O Franco financiou tudo, e nossos amigos, quase todos muito ricos, ajudavam.” Segundo Débora, o TBC era “um hobby caro” que Zampari bancava com todo prazer.
Glória e divas
Veja alguns dos filmes que farão parte do projeto Vera Cruz – Imagens e História do Cinema Brasileiro
Em seus anos de ouro, de 1949 a 1954, e sob a administração do italiano Franco Zampari, a Vera Cruz produziu 18 filmes, dezenas de estrelas e galãs, além de alguns enormes sucessos de bilheteria, com direito a prêmios internacionais – caso de O Cangaceiro (1952), de Lima Barreto, que foi premiado em Cannes. Isso sem contar a inesquecível atuação de Tônia Carrero em Tico-Tico no Fubá (1951), biografia do músico Zequinha de Abreu, autor da famosa música que deu nome ao filme. A Vera Cruz deixou nas telas a genialidade de intérpretes como Cacilda Becker, Paulo Autran, Cleyde Yáconis, Jardel Filho e muitos outros. O elenco era formado pela fina flor dos atores brasileiros e não faltaram mulheres belas. No entanto, segundo o pesquisador e professor de cinema Sérgio Martinelli, divas mesmo, somente três: Marisa Prado, Tônia Carrero e Eliane Lage. Suas performances na Vera Cruz poderão ser conferidas na minimostra gratuita que invade as telas no início do mês de março e faz parte do projeto Vera Cruz – Imagens e História do Cinema Brasileiro, do Sesc Ipiranga. A programação completa pode ser encontrada no Em Cartaz desta edição.
O Cangaceiro (1952) – Nono filme da companhia e sua primeira grande consagração mundial, com a premiação do diretor Lima Barreto no Festival de Cannes. Aborda o conflito entre dois cangaceiros para recuperar uma professora raptada. Essa mistura de faroeste nordestino com drama romântico, épico e histórico, tornou-se um clássico do cinema brasileiro, criando um gênero, o filme de cangaço. Com Alberto Ruschel e Marisa Prado.
Dias 2 e 10 de março, às 20 horas, e 24, às 18 horas.
Sai da Frente (1952) – A quinta produção da Vera Cruz envereda pelo gênero “popularesco” da comédia. O filme mostra um dia atrapalhado na vida do dono de um caminhão bem velho. Ao fazer uma mudança de São Paulo para Santos, ele se envolve em inúmeras confusões com burocratas, policiais e motoristas de carro. Inesquecível interpretação de Mazzaropi. Dirigido por Abílio Pereira de Almeida.
Dias 10 de março, às 18 horas, 12, às 15 horas, e 24, às 20 horas.
Na Senda do Crime (1953) – Nesse drama policial, quatro jovens assaltam uma casa grã-fina, levando o dinheiro e um colar. O chefe do bando, ao mesmo tempo que esconde o que foi roubado, começa a disputar com um milionário o amor de uma vedete. Com Cleyde Yáconis e Miro Cerni. Dirigido por Flaminio Bollini Cerri.
Dias 11 de março, às 18 horas, e 24, às 15 horas.
Caiçara (1950) – A primeira produção da Vera Cruz narra o drama de uma jovem que se casa com um homem autoritário em uma aldeia de pescadores. Prêmio de melhor filme brasileiro no Festival de Punta del Este, em 1951. Dirigido por Adolfo Celi. Com Eliane Lage e Mário Sérgio.
Dias 10 de março, às 15 horas, 12, às 20 horas, e 25, às 11 horas.
A Família Lero-Lero (1953) – Em sua 13ª produção, a Vera Cruz continua investindo na comédia popularesca. Trata-se da história de um funcionário público atormentado pelos inesgotáveis desejos de sua família, na qual ninguém trabalhava. Com Walter D’Ávila e Renato Consorte. Dirigido por Alberto Pieralisi.
Dias 11 de março, às 15 horas, 12, às 18 horas, e 25, às 16 horas.
É Proibido Beijar (1954) – Comédia sofisticada, considerada bastante americanizada. Um reles cronista social de São Paulo vê-se envolvido com a filha de um rico milionário, que se disfarça de atriz hollywoodiana. Dirigido por Ugo Lombardi. Com Tônia Carrero e Mário Sérgio.
Dias 11 de março, às 20 horas, e 25, às 14 horas.