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Fotos: Carlos Pedreañez

 

A artista plástica Maria Bonomi conversou com o conselho editorial da Revista E sobre sua obra e os objetivos que norteiam seu trabalho em mais de 50 anos de atividade. Sonhos, arte pública e política cultural estiveram na pauta. Confira alguns trechos:

 

Um cenário para Borges

Sérgio Ferrara [que dirigiu, entre outras peças, Tarsila] e eu decidimos fazer alguma coisa a partir da nossa paixão por Jorge Luis Borges [célebre escritor argentino], que é também paixão pela biblioteca, pelos livros, pela imaginação. Começamos a procurar pessoas que quisessem escrever, procuramos vários autores. E de repente encontramos um louco maravilhoso, o Ignácio de Loyola Brandão [que fala mais sobre esse projeto em entrevista publicada na edição de junho de 2004 da Revista E], e fechamos com ele. Envolvemos o Jorge Schwartz [professor de literatura da Universidade de São Paulo] também. Loyola foi de uma humildade incrível. Ele, um escritor de tanto talento, simplesmente faz dez versões do texto. Ele foi depurando, interiorizando, e fez uma obra fantástica, um monumento. Partiu de 200 e tantas páginas para 47, que é o espetáculo, que vai se chamar A Última Viagem de Borges e será uma imersão fisiológica justamente para vivenciar qual é a grande fantasia possível do escritor. E eu fiquei encarregada da cenografia, que vai ter um lado fantástico, vai dar para sonhar bastante. É teatrão onírico, teatrão do mágico.

 

Arte pública

Não dá mais para pensar em fazer uma obra na calma do teu quarto e dar para colecionador, por exemplo, que vai ficar olhando para ela. De repente, eu me aproximei muito de certas pessoas que procuravam o sonho, o convívio. Eu não acredito que o desenvolvimento da arte se dê de outra maneira que não por meio da arte pública. Eu acho que é o único caminho. Arte pública, arte coletiva. É lógico que você não pode pegar uma obra no ateliê, colocar no meio da praça e dizer que é arte pública. Não é, porque não foi pensada para aquele local. De repente estoura aqui uma possibilidade de a arte se tornar realmente uma experiência de percurso, de convívio e não uma coisa colocada em determinado lugar. É o grande caminho da arte. Não podemos mais ficar olhando o nosso umbigo, principalmente no Brasil, onde nós convivemos com a tragédia. Não vamos fingir que somos uma platéia elitizada, preparada, que está fazendo suas aquarelas e vivendo suas memórias gloriosas da Semana de 22. Não dá. O problema é ficar segurando a sintonia com o público, tem de ser por aí, como deve ser o jornalismo, a literatura, o cinema, o teatro. Há que se vivenciar isso. E é esse o processo que tenho seguido nos últimos seis anos e no qual me encontro agora. É uma questão de olhar, de afeto e, sobretudo, de emoção. E também de tesão, se não tem tesão não adianta. A gente se move na arte motivada de dentro para fora porque, senão, não é possível. O que é chamado de fashion, glam [termo utilizado na língua inglesa para glamour] etc. tem também esses ingredientes, é claro. Mas tem de doer, se não machuca não é bom. Seja arte experimental, seja a arte como bem de consumo. E o ato de consumir arte pode ser feito de muitas maneiras, não somente possuindo uma obra. Também isso, mas olhando, convivendo com ela, fazendo questão da transformação do entorno. Trabalhar criando referências, aliviando o espaço publicitário. Na hora em que você pára de discutir uma coisa, ela fica com uma cara estranha, ela fica com um lado só. As coisas não têm o outro lado porque ninguém diz, ninguém fala. Se não houver um ponto de discussão, se não houver um fórum de discussão, não há bom nem ruim.

 

Outras epopéias

A idéia desse trabalho realizado para a Estação da Luz [Epopéia Paulista, um enorme painel feito por Maria Bonomi, inaugurado em dezembro] veio com um briefing. Eu fui orientada a olhar para a história da estação, e também a incluir uma homenagem ao Nordeste, já que tantas pessoas de lá vieram para São Paulo. E pediram cimento colorido, pigmentado, já que meus painéis são sempre de concreto cinza, salvo um que está no Memorial da América Latina. Eu dividi aquele espaço em três níveis. E, daí, entrei na memória da Estação da Luz e de todos os objetos perdidos durante 100 anos. Tive acesso aos arquivos e os representei no painel. Milhares de pessoas trabalharam comigo, gravaram esses objetos. Tem dentadura, sapo, raiz, cadeira de rodas, véu de noiva, rolou tudo. É um mundo. E nós fomos recuperando isso e simbolizando. O próximo passo desse trabalho que norteou o Epopéia Paulista acontecerá numa casa, na frente da escola de música Tom Jobim [Centro de Estudos Musicais Tom Jobim, ou Universidade Livre de Música, próximo da Estação da Luz], que era um grande prostíbulo de três andares e que vai se transformar num ateliê, abrigando dez artistas por ano, cinco do interior e cinco de São Paulo, que vão trabalhar visualmente o entorno do local. É importante que tenha essa convivência lá. É importante que as pessoas se sintam atraídas por alguma coisa que não está em todo lugar. O insólito. E isso vai acontecer lá. Eu vou só fazer a curadoria.

 

Facilitar o sonho

Eu sinto que o povo tem uma grande sede de convívio com a arte, porque tem a necessidade de sonho. A realidade não está dando mais. Essa questão do direito de sonhar, desse momento da transposição do homem que chega a uma outra instância, é uma necessidade quase política. Quem não facilitar o sonho, quem não facilitar essa forma de alívio, quem não der essas saídas é suicida. Tem de transformar o olhar. Essa é uma obrigatoriedade que a gente tem. É um trabalho social que pode ser feito em direção a uma poética. Temos de buscar essas pessoas. Onde é que elas estão dentro delas mesmas? Vamos interromper um pouco isso. O homem pode ser mais sensível, é o destino dele. Só que, de repente, ele se vê cheio de crack na cabeça, sem sequer conseguir andar em linha reta. Tudo bem, tínhamos Van Gogh, que viajava etc. Mas Van Gogh foi Van Gogh. A arte hoje em dia tem de ser política. E é uma política de arte. E nós não podemos chegar tarde. O mundo inteiro está fazendo isso. Percebeu a dívida? Não podemos excluir pessoas de sua própria sensibilidade, ou negar meios a elas de se encontrarem num outro plano. Mesmo que optem por outras coisas, elas devem ter a chance. É como você ter acesso à saúde, à higiene, à alfabetização.

 

Cultura do efêmero

Eu sei de eventos que custam mais do que uma biblioteca, ou mais do que uma obra de arte pública, que são coisas que realmente transformam. Essa idéia de evento consome muita grana, e isso num País pobre, onde é preciso que sejam feitas coisas que não conseguimos fazer. Na minha opinião, a gente teria de ter cada vez menos eventos e cada vez mais fatos culturais. As verbas deveriam ser dirigidas para coisas que permanecem. Esforços para que as coisas acontecessem física e permanentemente. Sair do cultural-efêmero para o cultural-substância – uma situação que até pode incluir o efêmero, mas não somente ele. Eu tenho muito medo da cultura efêmera, que é um pouco a tendência de Brasília hoje. Vamos fazer os grandes festivais. E daí? E depois? Por que não, então, mais espetáculos de longa temporada e mais salas de espetáculos? Por que não uma verba para bibliotecas, orquestras e longas temporadas de concertos populares? Onde é que se pode falar disso? Na internet? Onde é que eu vou ser ouvida? E justamente num momento em que o ministro da Cultura é um músico. Essas coisas são contradições muito grandes que são duras de digerir. Há um Brasil de costas para o Brasil. E é o Brasil cultural. É algo que sentimos na carne. Nós individualmente iríamos além, se as entidades estivessem participando.

 

A artista plástica Maria Bonomi esteve presente na reunião do conselho editorial da Revista E em 21 de janeiro de 2005