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Em Pauta
Ilustração: Marcos Garuti
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como parte da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), os brasileiros engordaram ao longo das últimas três décadas e o motivo não é necessariamente o aumento da qualidade de vida. Novos e piores hábitos alimentares levaram o País a um quadro no qual 38,6 milhões de pessoas estão acima do peso recomendado, e 10,5 milhões são obesas. Em artigos exclusivos, o pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Evaristo E. de Miranda e o chefe do Centro de Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, Mauro Fisberg, analisam o fenômeno.
Prato cheio - por Evaristo E. de Miranda
Estão sobrando alimentos no Brasil. O País tem mais obesos do que subnutridos, segundo divulgou o IBGE a propósito da POF, a Pesquisa de Orçamentos Familiares, realizada entre 2002 e 2003. Para um agrônomo, essas informações são literalmente um “prato cheio”. Dos 95,5 milhões de brasileiros com 20 anos ou mais, apenas 4% têm déficit de peso, incidência considerada normal pelos especialistas, já que há pessoas naturalmente magras. Esses mesmos resultados alertam para outro problema na saúde dos brasileiros: a obesidade. São 38,5 milhões de brasileiros acima do peso, o que representa 40,6% da população de adultos. Destes, 10,5 milhões são obesos. Os dados não abordaram o tema das crianças nem de seus hábitos alimentares, muito menos o quanto eles podem determinar uma vida adulta com saúde. Eles ilustram a realidade da segurança alimentar, pouco destacada pela mídia. Onde estariam os 53 milhões de pessoas famintas evocadas na última eleição presidencial?
É fácil observar por que o prato está “cheio”. A agricultura brasileira produz cerca de 130 milhões de toneladas de grãos/ano. Se for considerada a produção de alimentos consumidos in natura (frutas, legumes, verduras...), raízes e tubérculos (batata, mandioca, inhame...), cereais (arroz, trigo, milho...), leguminosas (feijões, soja, amendoim...) e outros alimentos, o total ultrapassa em muito os 200 milhões de toneladas. Sem mencionar os produtos do extrativismo, muito significativos em culinárias locais, como açaí, buriti, diversos palmitos etc. Nem toda essa produção é destinada diretamente ao consumo humano ou ao mercado interno, além de conter proporções variadas de proteínas, carboidratos e oleaginosos comestíveis. Mesmo assim, são números muito expressivos.
A população projetada pelo IBGE para 2005 é de 184 milhões de habitantes. Comparando-se população e produção agrícola, a disponibilidade potencial de alimentos de origem vegetal por habitante é superior a 1 tonelada por ano! Isso representa uma segurança alimentar quatro vezes superior ao estipulado pela OMS [Organização Mundial da Saúde, órgão da Organização das Nações Unidas, ONU], da ordem de 250 quilos de grãos por habitante/ano. Graças aos avanços científicos e a outros fatores, a produção agrícola segue crescendo mais do que a população, no Brasil e no mundo. E melhorando em qualidade.
É o caso do feijão. No Brasil, seu consumo vem caindo a cada ano. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 1965, o consumo alcançava 25 quilos/habitante/ano. Hoje, está na faixa de 14 a 15 quilos. O Brasil ainda é um dos maiores consumidores, perdendo apenas para alguns países da África, com média anual de 50 quilos por habitante. Graças a pesquisa agropecuária, não só a produtividade dos feijoeiros tem aumentado: estão surgindo variedades biofortificadas, com maiores teores de ferro, proteína, vitaminas, sais minerais e fibra solúvel. O percentual de fibras no feijão pode variar de 16% a 33% e o consumo diário de 30 gramas de feijão garante 28% das necessidades de ferro do organismo. Segundo a FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura], 130 gramas de feijão são suficientes para atender a 100% das necessidades de ferro do homem. A pesquisa agropecuária também tem melhorado as características culinárias das novas variedades em termos de sabor, textura de caldo, cor e tempo de cozimento, cada vez mais curto, abaixo de 30 minutos. Economia de tempo, combustível, impacto ambiental e dinheiro.
Além do arroz, feijão, pão e macarrão, o prato do brasileiro também anda cheio de carnes. Os brasileiros comem cada vez mais proteínas animais. Um bom exemplo é a carne de frango. Para 2005, a demanda é de mais de 6 bilhões de toneladas. O consumo atual é de 33 quilos de carne de frango por habitante, bem superior ao do de feijão. Em 1990, esse consumo era de 14,2 quilos. A aquisição domiciliar de carnes aproxima-se de 40 quilos/habitante/ano, o que exclui o consumo fora do domicílio – muito significativo em regiões economicamente mais desenvolvidas –, bem como o alimento adquirido pronto para consumo. O IBGE levantou quase 1 quilo per capita anual só para o frango assado, empanado etc. levado para ser consumido em casa. Nas proteínas animais, ainda deveria ser considerada a caça e toda a coleta de peixes e crustáceos, na Amazônia, Centro-Oeste e litoral. Agregando-se coxinhas e espetinhos, quibes e esfihas, presuntos e salames, toda carne consumida nas churrascarias, os pedaços de frango, bifes e hambúrgueres servidos em refeitórios, merendas escolares, restaurantes, redes de fast-food etc., o consumo médio dos brasileiros ultrapassa 1 quilo por semana. Nada mal. E nesse sentido vai bem a alimentação dos brasileiros.
As proteínas animais não se limitam às carnes e incluem outros alimentos, como ovos, leite e derivados (manteiga, iogurtes, queijos etc.). O Brasil captou em beneficiadoras e indústrias mais de 14 bilhões de litros de leite, dos mais de 22 bilhões produzidos em 2004. A produção de ovos em 2004 foi de cerca de 1,5 bilhão de dúzias. Proteína animal completa, o ovo contribui na alimentação dos brasileiros, incorporado aos mais diversos produtos alimentares (bolachas, macarrões, sorvetes, doces, pães etc.). Sem falar nos 6 milhões de codornas e seus ovinhos.
Com o prato cheio, com segurança alimentar e uma população bem alimentada, será mais fácil para o Brasil atingir as famosas Metas do Milênio, adotadas na Conferência das Nações Unidas de Copenhague, em 1995 [Conferência da ONU sobre o Desenvolvimento Social, ou Cúpula Social], por 189 países. Seremos ajudados pela produção agrícola, pelo barateamento dos alimentos e pela educação. Entre as metas beneficiadas estão as que buscam, entre 1990 e 2015, reduzir em dois terços a mortalidade infantil e em três quartos a taxa de mortalidade materna. A meta de reduzir pela metade a população vivendo em condições extremas de pobreza também poderá ser atingida, se depender dos agricultores e da tecnologia agrícola nacional. Uma outra meta do milênio visa universalizar o acesso à educação e isso tem a ver com obesidade, de crianças e adultos.
Os dados do IBGE, do agronegócio, da produção agrícola, e o aumento dos obesos mostram que está “sobrando” comida no Brasil. Ao contrário de tantos países da África e América Latina, no Brasil a segurança alimentar é uma realidade consolidada. Os hábitos alimentares da população se alteraram. O consumo alimentar per capita continuará aumentando significativamente em conseqüência do desenvolvimento econômico e da redução constante do preço dos alimentos. Cresce o poder de compra de alimentos pelas famílias, mesmo quando sua renda fica constante. Aliás, a obesidade não faz muita distinção de renda: 12,7% das pessoas que ganhavam entre 50 e 100 reais eram obesas. Entre os que recebiam acima de 1.000 reais, o percentual de obesos era de 11,7%. Daí a importância de universalizar e melhorar a educação. Quem sabe chegará o dia em que a preocupação da já educada população brasileira será apenas a de controlar seu peso, colocando menos comida no prato, com mais critério e consciência? Contradizendo, enfim, a afirmação bíblica de que “todo o trabalho do homem é para a sua boca” (Eclesiastes 6,7).
Evaristo E. de Miranda é agrônomo, doutor em ecologia e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
A alimentação infantil nos dias de hoje - por por Mauro Fisberg
O Brasil, como vários países em desenvolvimento, está passando por uma mudança importante no aspecto nutricional. A redução da desnutrição e o aumento da obesidade são fatos registrados na comunidade científica e que impactam a população leiga. Há muito poucos anos, a obesidade, mesmo que crescente, não era vista como problema; antes, os dados mostravam uma proporção de quatro desnutridos para um obeso; nos anos 90 a proporção chegava a um para um e essa informação era entendida não pelo aumento da obesidade, e sim pela clara redução da desnutrição. Dados mais recentes mostram que 40% da população adulta brasileira apresentam excesso de peso. Somente nos últimos dez anos começamos a notar importante aumento da obesidade em todos os níveis sociais, econômicos e em todas as classes. Outro fator que deve ser lembrado é que atualmente mudou a idade da população afetada, e os dados mostram que crianças e adolescentes estão envolvidos com esse problema. Calcula-se que aproximadamente 20% a 25% das crianças brasileiras apresentem excesso de peso na faixa etária entre 7 e 14 anos.
A origem dessa situação deve-se a uma mudança de hábitos de vida, com o aumento do sedentarismo, a diminuição de condições que permitiam que as crianças brincassem na rua e o aumento do uso de jogos eletrônicos, TV e computadores. Ao mesmo tempo, o hábito alimentar moderno, com a falta de disciplina, de horários, o aumento das porções, especialmente de alimentos ricos em gordura e açúcares, contribui para o processo de engorda das nossas crianças.
A incorporação de padrões alimentares de outras sociedades, como a americana, leva a um aumento importante do consumo de fast-food, e especialmente ao aumento das porções servidas – tamanhos gigantes de refrigerantes, porções de batatas fritas, hambúrgueres e o conceito de free-refill (reposição gratuita da comida em caso de solicitação do cliente mediante alguma irregularidade).
A indústria de alimentos prontos tem dedicado muita atenção ao público infantil, com uma propaganda maciça nos órgãos de comunicação, como a televisão, de produtos tradicionalmente associados a guloseimas. Talvez a inserção dessa propaganda nos programas infantis seja o mais danoso, já que há pouca defesa da criança contra o merchandising desenfreado. Como dizer que uma apresentadora infantil não está correta, se ela indica o uso de um determinado produto, mesmo que inadequado?
A maioria dos pediatras e nutricionistas, em algum momento de sua prática clínica, provavelmente já deparou com uma criança que não come. As queixas sobre tal situação, representadas comumente pelas mães como “Doutor, meu filho não quer comer”, tornam-se quase sempre o tema central das consultas pediátricas de pais de crianças de 2 a 6 anos.
Afetando todos os níveis socioeconômicos e culturais, a recusa alimentar pode representar um fato comum e típico do desenvolvimento normal da criança, como uma maneira de expressão e/ou reação das dificuldades emocionais no âmbito familiar. Na maioria dos casos, trata-se de distúrbios comportamentais, os quais são passíveis de prevenção e tratamento. Dessa maneira, na abordagem da questão da seletividade na infância, os principais aspectos a ser considerados são os motivos que levam a criança a esse comportamento. Buscar e entender o porquê de a criança escolher o que quer comer, e não simplesmente a rotular como “birrenta, teimosa e seletiva”, é o primeiro passo para se propor uma conduta mais adequada.
Não é tarefa fácil para os pais de hoje o controle da alimentação infantil. Lutar contra conceitos pseudomodernos, a falta geral de disciplina, a propaganda, e a ânsia pelo consumo de alimentos cada vez mais “engordativos” é uma difícil resolução. Cabe a todos, pais, sociedade, indústria e governos, o combate aos maus hábitos de vida e à alimentação inadequada.
Mauro Fisberg é coordenador do Núcleo de Qualidade de Vida da Universidade São Marcos e chefe do Centro de Adolescência da Universidade Federal de São Paulo