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Ficção Inédita

Sílvio Fiorani

 

Ilustração: Marcos Garuti

 

Ali descansam em paz saudosos Oldsmobiles, Packards, Studebakers. Vocês se lembram deles?

No Reader’s Digest dos anos 50, garantia-se:

 

Quando Vossa Senhoria fizer seu primeiro passeio no maravilhoso, novo e diferente Studebaker Land Cruiser, disponha de muito tempo, porque uma hora de viagem neste elegante, confortável e belo automóvel parecer-lhe-á apenas um breve momento.

 

Descansam ali também Mercuries, Buicks, Pontiacs e até mesmo um Ford Edsel. Ah, o Edsel:

 

Mais um carro de classe acaba de surgir. Nunca houve um automóvel como o Edsel. Seja qual for o ponto de vista por que se considere, este é sem dúvida o automóvel de maior luxo e distinção.

 

São os nossos velhos e queridos carros, marcas de um tempo que, não obstante suas vicissitudes, suas contradições, somos tentados a recordar com nostalgia. Foi na época em que estavam ainda inventando o mundo cor-de-rosa das fitas da Metro. Esses velhos carros que as intempéries vão pouco a pouco deteriorando estavam, não se pode negar, entre as coisas que aquele universo contraditório tinha de melhor. Havia então um claro componente de afetividade entre o homem e a máquina; e, assim, rever um modelo igualzinho àquele em que a gente andou há tanto tempo atinge em cheio nosso incurável saudosismo. No cemitério de automóveis a que me refiro, há um modelo idêntico ao que meu pai chegou a possuir; da mesma cor, com todo o friso e a cintilância a que tínhamos então direito. Ele aparece em muitas fotos 6x9 de nosso álbum de família, posando, por assim dizer, ao lado das pessoas da casa. Ele fez parte de alguns de nossos momentos inesquecíveis. Há quem se lembre dele quase como de uma pessoa viva, dotada de sentimentos. Vê-lo nas fotos é, muitas vezes, como se estivéssemos vendo um de nossos antigos animais de estimação.

Dado, portanto, o quadro de nossas antigas relações, um velho cemitério de automóveis pode hoje se apresentar como um retrato desolador do passado. Muito mais, se se tratar de um cemitério já abandonado a sua sorte, esquecido em definitivo. Até o alambrado que o cerca está seriamente corrompido pelo tempo. Na falta de espaço, esses gloriosos ancestrais das frias e impassíveis máquinas de hoje foram amontoados de qualquer jeito, depois de tratados com truculência. Só a muito custo se consegue andar entre eles, e o que se pode constatar é que em muitos lugares a pintura de boa qualidade resistiu bravamente à ação do tempo. É claro que, ao ser arrastados, sofreram sérios danos, mas em certos pontos a lataria ficou intacta, e dá mostra ainda daquelas formas generosas tão familiares. A visão de tais despojos inspira, mais que tudo, desolação, e fere o sentimento de ternura que chegamos a devotar às coisas que nos pertenceram.

O que mais impressiona é o silêncio. Silenciaram-se definitivamente nossas queridas máquinas. Aos mais atentos, não é muito difícil sentir o verdadeiro peso dessa quietude apenas interrompida, de quando em quando, pelo vento. Tão funda a calma ali, tão persistente, que parece deliberada. Sim, deliberada. Pelo menos é o que se sente. E o silêncio parece se impor, parece nos acusar, nos responsabilizar por alguma falta que tenhamos cometido. Ah, a nossa crescente volubilidade. Quando olhamos frente a frente os faróis que há tempo se apagaram, não podemos deixar de sentir pelo menos um ligeiro desconforto, uma quase indefinível sensação de culpa.

Durante o dia, há alguma vida a distância. O local é isolado, mas, ao longe, vê-se que começam a ser construídas as casas de um novo bairro. À noite, no entanto, cessam todos os movimentos. Nada se ouve ali. De madrugada, a desolação parece ainda maior. Há mesmo muito silêncio. Apenas de vez em quando é possível ainda ouvir-se, entre as ferragens, em meio à ruína, o som breve, débil e inexplicável de alguma buzina.

 

Sílvio Fiorani é autor, entre outros, de Entre os Reinos de Gog e Magog (Editora Siciliano, 1994)