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Situação epidêmica

Não existem soluções mirabolantes

PAULO SÉRGIO PINHEIRO


Paulo Sérgio Pinheiro /
Foto: Gabriel Cabral

O professor Paulo Sérgio Pinheiro, especialista em direitos humanos e estudos da violência, esteve presente no dia 20 de maio de 2004 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre violência urbana no Brasil.
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.

Tudo o que vou dizer de negativo tem seu lado positivo também. E quando cito uma corporação - o Judiciário, os políticos, o Ministério Público, os advogados, os empresários, os parlamentares -, evidentemente muitas vezes me refiro somente aos elementos que cometem delitos. Vou apontar problemas, mas também boas práticas, e demonstrar que valeu a pena o regime democrático e a tentativa de reconstrução do Estado de direito.

Em primeiro lugar, há o caráter epidêmico da violência. O Brasil não tem déficits políticos. O país pode ser considerado, no continente latino-americano, aquele que levou mais longe o aperfeiçoamento eleitoral e o acesso pelo voto aos cargos públicos. Vejam a experiência do sistema eletrônico - comparem com a da Flórida na eleição do presidente George W. Bush -, que está sendo exportado para vários países. O Brasil se inclui também entre os cem com maior participação popular nas eleições. É claro que o voto aqui é compulsório, mas deixemos isso de lado e digamos que há um expressivo grau de participação popular. Apesar disso, uma pesquisa recente da Corporación Latinobarómetro, publicada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), mostrou que só 36% dos entrevistados se reconhecem como democratas, ficando em 15º lugar numa classificação encabeçada pelo Uruguai, com índice de 71%. Os brasileiros ficaram nitidamente abaixo da média de democratas entre os países latino-americanos, que é de 43%. O que é mais inquietante: o percentual dos entrevistados que afirmaram preferir um regime autoritário, desde que resolva os problemas econômicos, é de 27%, superior à média (26%). Estamos, portanto, abaixo dos que gostam da democracia e acima dos que preferem uma boa ditadura.

Essa atitude dos brasileiros parece deixar patente que, apesar do advento do governo civil em 1985 e do constitucional após 1988, nenhum deles até agora conseguiu pôr fim aos altos níveis de violência estatal legal. Digo legal porque o Estado tem o monopólio da violência física legítima. Só ele pode decidir a quem cabe recorrer à violência ou não. Há uma flagrante incapacidade do Estado de assegurar o direito à vida. Ao contrário, no contexto da explosão do crime, como em conflitos sociais agudos na cidade e no campo, os agentes estatais continuam a cometer graves violações de direitos humanos, o que complica tudo. Apesar de ser hoje não mais a oitava mas a 15ª economia industrial do mundo, o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta, com enorme e crônica concentração de renda, numa situação que, sem ser a causa única, realimenta uma violência epidêmica e a vitimização concentrada na maioria da população pobre e afrodescendente.

"Violência" é uma palavra complicada, porque no sentido primário ela diz respeito a uma agressão física como roubo a um banco, mas também é empregada de outras formas difíceis de conceituar. Então o que usamos é a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que lançou faz dois anos, com nossa colaboração, o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, que pode ser acessado facilmente no site da organização. Segundo essa definição, violência é o uso intencional da força física ou do poder real ou potencial contra si próprio, contra outras pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

O Brasil não tem o dom da originalidade; temos um patamar fora de série, mas não somos patológicos em relação à violência. Em 1999, quase 1,7 milhão de pessoas foram intencionalmente mortas por outras ou se suicidaram, segundo o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Nesse total estima-se em 520 mil o número de homicídios (sem incluir as mortes em guerras), ou seja, um índice geral de 8,8 por 100 mil habitantes. Os homens, muito mais mortíferos que as mulheres, foram responsáveis por 77% de todos esses casos. Em 2000, as vítimas preferenciais são os jovens. Aqui também não somos originais. Em 2000 estima-se que houve globalmente 199 mil homicídios de jovens, 9,2 por 100 mil habitantes, e quase 10% dessas mortes ocorreram no Brasil: 17.792. Com menos de 3% da população mundial, o Brasil responde por 11% de todos os homicídios do planeta.

Em 20 anos, de 1980, com uma população de cerca de 120 milhões, a 2000, com 170 milhões (crescimento de 43%), quase 600 mil brasileiros foram assassinados. Nesse mesmo período, a taxa de mortalidade por homicídio cresceu 130%, passando de 11,7 mortos para 27 por 100 mil habitantes, índices muitas vezes maiores do que os de qualquer outra economia industrial que precede o tamanho e o PIB brasileiros. Os Estados Unidos, por exemplo, o mais violento dos países do G-7, têm uma taxa anual de 11 homicídios por 100 mil habitantes. Entre os jovens no Brasil, de 15 a 24 anos, a taxa chega a 95,6 assassinatos por 100 mil.

Falo muito em homicídio porque esse é um bom indicador. Além de ser o mais grave, é o menos sub-representado, porque é complicado esconder ou enterrar cadáver, queimar ossos. Os registros de óbito, tanto nos órgãos municipais como no Sistema Único de Saúde (SUS), são bem próximos da realidade. O furto é hoje uma categoria totalmente sub-representada, pois ninguém vai reclamar do furto de um Swatch na delegacia, nem mesmo de um Rolex. E até roubos não são registrados, porque as pessoas temem que haja retaliação por parte dos criminosos.

O Brasil é, então, um país violento? Não é. Podemos dizer que metade dos homicídios, 58%, ocorre em 1,8% das cidades com 20 mil habitantes, e 74% dessas cidades campeãs em homicídios estão só em três estados: Pernambuco, com 28%, São Paulo, com 26%, e Rio de Janeiro, com 20%. É claro que essas taxas variam segundo condições de moradia, sexo e idade. Com a colega Nancy Cardia, há cinco anos fizemos a georrepresentação da violência em São Paulo. Tentamos sobrepor mapas de vários indicadores sociais e os eventos da violência. Verificamos que o homicídio também tem uma dimensão racial, pois é a principal causa de morte entre pessoas de cor preta (o termo não é politicamente correto, mas vem do recenseamento, em que as pessoas se auto-identificam como pretas, pardas, brancas, amarelas ou indígenas).

Um bom programa de informação sobre mortalidade em São Paulo, o Proaim, tem sobrevivido a todas as administrações, o que é um recorde neste país. Se compararmos pretos, pardos e brancos, em 2003, entre os 64 mil moradores de São Paulo que morreram, 46.071 foram classificados como brancos pelos responsáveis pelo registro de óbito, 10.331 como pardos e 3.084 como pretos. Entre os brancos, apenas 5,3% foram vítimas de homicídios. Entre os pretos, 11,7% foram assassinados. Há, portanto, uma incidência racial.

Outro apontamento é o mito de que crianças e jovens em São Paulo estão matando adoidado. Não é verdade. É pequeníssima a participação de menores de 18 anos na autoria de crimes graves em São Paulo. Eles são responsáveis por cerca de 1% dos homicídios dolosos, com intenção de matar. Estão envolvidos em 1,5% do total dos roubos. E em 2,6% dos latrocínios. Pensamos que toda quadrilha tem assaltantes mirins, mas isso não corresponde à verdade. Apesar do que se ouve na televisão ou se lê nos jornais, o número de latrocínios permanece estável no Brasil nos últimos 20 anos, algo próximo de 10%. Desses 10%, 1,5% a 2% são praticados por menores. É claro que a percepção da população não é essa. Na pesquisa de dezembro de 2003, 84% defendem a redução da maioridade penal. É um tema muito controverso. O presidente Fernando Henrique Cardoso, felizmente, fez uma declaração formal: "No meu governo não vai passar nenhuma redução, pois vou vetar". O presidente Luiz Inácio Lula da Silva até agora não falou nada. Dos 9.150 homicídios dolosos registrados em 2003, 0,97% tiveram a participação de adolescentes. De janeiro a dezembro de 2002 foram 95 casos.

O terceiro apontamento são as disfunções do aparelho de segurança. No Banco Central ou no Ministério do Planejamento, estamos no Primeiro Mundo em termos de capacitação de funcionários e de instrumentos de análise. Mas na maior parte das delegacias no Brasil não chegamos ainda ao século 20, talvez estejamos no século 18 em termos de atraso e de mau funcionamento. O que é fascinante no Brasil é isto: no mesmo país a bela e a fera. É isso que nos dá certa graça - não somos um completo Haiti mas não somos propriamente uma Noruega. Isso nos dá dinamismo e mantém nossa esperança.

Quanto às torturas, vimos recentemente aquelas fotos de prisioneiros humilhados no Iraque. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a aplicação sistemática desse tipo de tortura acontece aqui. Nunca vi fotos, mas conheço os relatos. Um relatório recente sobre as recomendações feitas durante a missão do relator especial das Nações Unidas mostra que continua a haver uma deficiência de implementação de políticas públicas para combater a prática sistemática de tortura no Brasil. É claro, o governo federal criou o SOS Tortura, um número para receber ligações como o Disque Denúncia. Para se ter uma idéia, entre outubro de 2001 e outubro de 2002 houve 1.345 denúncias. Foram abertos 300 processos, pouquíssimos julgados, talvez dois. As queixas são quase sempre reclassificadas como abuso de autoridade. A tortura foi criminalizada logo depois daquele incidente ocorrido na Favela Naval em 1997, em Diadema (SP).

Por que a tortura continua a existir? Talvez a prolongada exposição à violência de boa parte da população explique por que 24% dos paulistanos admitem a tortura. Bem, 24% é pouco, mas o número dos que não a toleram em nenhuma circunstância baixou de 78% para 72%. Há uma pesquisa do DataFolha que mostra os bairros mais favoráveis à tortura. Evidentemente, são aqueles mais sujeitos à violência e com maior parcela dos homicídios. Justamente aqueles cujos direitos pensamos que estamos defendendo acreditam que estamos protegendo os criminosos. Não é bem assim, nos casos mais complicados as mães vêm pedir ajuda. O mesmo chefe de família ou mãe que se declara a favor da pena de morte e da tortura e acredita que os direitos humanos existem para proteger criminosos vem pedir ajuda se um dos filhos é morto ou torturado. Isso, felizmente, não é maniqueísmo pleno.

As mortes provocadas pela polícia são outra disfunção brasileira. Tomo isso como indicador de ineficiência, pois em nenhuma das 15 democracias de maior PIB as polícias matam. Nos Estados Unidos, desde os anos 1970 não se mata. Aqui o governo democrático não tem demonstrado capacidade para reformar as instituições e proteger seus cidadãos, nem para responsabilizar os agentes culpados das violações. É evidente que o Estado brasileiro deixou de ignorá-las. Ao contrário do que acontecia no regime autoritário, não existe um Destacamento de Operações Internas - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), felizmente isso terminou. Eu acreditava que o presidente Ernesto Geisel fosse contra a tortura, mas para meu desgosto e depressão, na entrevista que ele deu para o Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, disse que a tortura era boa, útil em alguns casos extremos, da mesma maneira que nos Estados Unidos, logo depois de 11 de setembro, vários juristas importantes acharam que um pouquinho de tortura na hora certa iria funcionar.

É claro que o Estado populista também não se importou muito com a questão. Não era só o governo, a universidade e a sociedade civil também davam pouca atenção a isso.

Como ponto positivo, tanto o governo federal como os estaduais têm tido um papel decisivo na construção da accountability, a responsabilização dos funcionários públicos. Muitas instituições estatais, em vez de salvaguardar o Estado de direito, têm de fato contribuído para miná-lo ou enfraquecê-lo através do uso de táticas brutais e letais para lidar com a violência. Muitos policiais tendem a ver o Estado de direito mais como obstáculo do que como efetiva garantia da segurança pública, uma certa concepção de guarda de fronteira para proteger alguns grupos contra outros.

Vou terminar este tema mórbido dizendo que a execução sumária de pessoas por policiais é epidêmica no Rio de Janeiro e em São Paulo. O total de mortos por policiais no estado de São Paulo no primeiro trimestre de 2003 chegou a três por dia. Esse número decresceu depois do massacre do Carandiru. Para se ter uma idéia, em 1998 no Rio de Janeiro houve 355 mortes, e na gestão Garotinho 1.195. Em São Paulo, em 1996 foram 239, e 868 em 2003. E vamos chegar a mil até o final deste ano. É evidente que houve esforços positivos, o governador Geraldo Alckmin instalou a comissão de letalidade da polícia, e foi criada a ouvidoria da polícia, que aliás fez uma pesquisa extraordinária em 2000, mostrando que 51% dos 595 mortos em 2001 haviam sido baleados pelas costas.

Um dado totalmente favorável aos policiais é saber onde eles morrem. Entre 1991 e 2002, morreram 237 policiais militares em serviço. Mas, nos "bicos", eles morrem como moscas. Somos totalmente contrários a isso, é preciso ter salários dignos e regulamento que impeça esse tipo de trabalho. Em São Paulo há certa tolerância, porque não se paga o salário adequado.

Quanto aos grupos de extermínio, os esquadrões da morte criados no regime autoritário continuam infestando todos os estados. E só ficamos sabendo daqueles que têm mais de uma pessoa, porque aparecem na televisão, nos "programas do sangue" que precedem os jornais. E eles existem com a conivência das autoridades. Honra seja feita, isso não acontece em relação ao governo de São Paulo. O que há são policiais militares envolvidos. Há muita coisa positiva, as ouvidorias de polícia têm funcionários com mandato para receber queixas. A de São Paulo era ótima, na atual gestão foi um pouco esvaziada. Mas no Pará a ouvidora é da oposição e o relacionamento com o governador é uma maravilha. Em Minas Gerais, no Rio Grande do Sul, em 22 estados e no Distrito Federal há defensorias públicas, assistência legal gratuita. São Paulo foi pioneiro na instalação de centros de proteção a vítimas, desde o governador Franco Montoro.

O programa de proteção a testemunhas do Ministério da Justiça é um sucesso. Desde a sua criação no final dos anos 1990 até hoje foram atendidas cerca de 800 testemunhas e só morreram duas - uma por suicídio e outra por morte natural. Foram implantados centros de mediação e resolução de conflitos, os Balcões de Direitos em São Paulo, o Fórum Metropolitano de Segurança Pública e o Disque Denúncia, que recebeu entre outubro de 2000 e fevereiro de 2003 cerca de 100 mil telefonemas e ajudou a encontrar no mesmo período 12 seqüestrados, 20 cativeiros, 2.597 responsáveis por furto, estelionatários e traficantes, 289 carros roubados e 503 armas. É um sucesso, bancado por uma parceria da Universidade de São Paulo, de empresários e de federações empresariais.

Vejamos a questão da corrupção. As quadrilhas criminosas não caíram de pára-quedas nos morros do Rio de Janeiro nem na periferia de São Paulo. Sua implantação foi lenta, gradual e segura, às claras. Os governantes e todos nós acompanhamos a instalação desse pessoal. No Rio de Janeiro, onde nasci, nas casas de meus parentes, no Cosme Velho, nas Laranjeiras, todo mundo hoje está na mira, tudo cercado. Os espaços foram escolhidos pelo tráfico da maconha e depois da cocaína em razão da alta densidade demográfica, falta de acesso para a polícia, mão-de-obra barata e população abandonada pelo governo. Esse lento processo de implantação prosseguiu com a corrupção da estrutura policial. É barato corromper policial. Juiz e ministro é mais complicado. Não sou eu que digo, é a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do crime organizado. Candidatos políticos se beneficiaram das caixinhas dos bandos de traficantes. Através do controle da máquina governamental, seus apaniguados nomeados para cargos públicos consolidavam a impunidade dos grupos criminosos. A corrupção mais dispendiosa foi estendida ao Judiciário para concessão de habeas corpus e compra de sentenças. Como cereja no bolo, também com todo o respeito, o sistema financeiro há décadas vem acolhendo gostosamente a lavagem de dinheiro do tráfico. Temos uma lei boa, mas a aplicação ainda é precária.

Isso eu chamaria, e proponho o tema para debate, um Estado associado, não um Estado paralelo, que é bobagem. Não há nenhum paralelismo, mas inserção plena. Esse Estado associado foi acompanhado de procedimentos filantrópicos, por meio de migalhas de benemerência para os pés-de-chinelo, chefetes do tráfico nos morros, que passaram a controlar e aterrorizar o cotidiano dos moradores das favelas. Outras investidas foram feitas pela principal coluna vertebral do crime organizado em todo o país, o jogo do bicho. Achamos tudo isso muito engraçadinho, Vila Isabel, parece que esses banqueiros são os sucessores do barão de Drummond. Não. São assassinos, homicidas, estão envolvidos até o pescoço com o narcotráfico, assumiram o controle favorecendo também escolas de samba sediadas nas favelas, clubes de futebol, uma validação simbólica. E agora há o caso dos bingos, as pessoas nervosas com a proibição. Bingo é lavagem de dinheiro, eles são testas-de-ferro dos traficantes. Felizmente, o presidente Lula acordou para isso, mas por total incompetência da articulação com os parlamentares a medida foi derrubada e os bingos estão aí soltando foguete. Falam em desempregados, mas 80% daqueles que foram protestar em Brasília não têm carteira assinada.

A corrupção pode ser expandida para outros setores. Por exemplo, no caso da concessão de habeas corpus, nas gravações da Operação Diamante citaram vários magistrados, como o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Vicente Leal de Araújo. Traficantes envolveram a cônjuge do ex-deputado Pinheiro Landim, que continua freqüentando colunas sociais, e no final do ano passado a Câmara começou a examinar a questão. O ministro Vicente Leal está em casa gozando uma saudável aposentadoria. Ninguém foi processado. Não sabemos como essa quadrilha atuava. O que se sabe é que dos 386 pedidos de liminares em habeas corpus despachados no STJ durante o recesso de 20 de dezembro até 1º de janeiro, 50 eram relativos a crimes de drogas entorpecentes. Como faziam? Os advogados dos traficantes costumavam aproveitar as férias do Judiciário para tentar decisões favoráveis dos magistrados de plantão em medidas liminares que normalmente seriam encaminhadas a relatores e às turmas nos casos de recursos ao tribunal. Isso é o que sabemos. Aconselho a leitura das conclusões da CPI do crime organizado, que sugeriu medidas pontuais a todos os governos dos estados. Quase nenhum deles fez alguma coisa. Tudo no Brasil é espetáculo, o pessoal sai algemado e depois não acontece nada.

Quanto às reformas impossíveis, um governo democrático se sucede a outro e a situação só se degrada e agrava, pois não foram capazes de dar respostas eficazes à violência legal. A classe política utiliza o medo do crime como importante elemento durante as campanhas eleitorais e mostra imobilismo diante das medidas que poderiam contribuir para reduzir os altos níveis de violência interpessoal. Por exemplo, a repressão ao contrabando de armas e ao narcotráfico. Até hoje não existe o tipo penal de crime organizado proposto por José Carlos Dias. Quanto à proibição de armas de fogo e de sua comercialização, saiu uma coisa chocha, me perdoem a vulgaridade. A reforma do Judiciário até hoje não aconteceu. E esse governo o que decidiu? Tenho a maior admiração pelo ministro, mas resolveram começar do zero. Podem escrever: até 2006 não vai sair essa reforma. A federalização da competência em crimes de direitos humanos que está na Constituição foi aprovada pelo Senado. Já se passaram um ano e cinco meses, não sei o que aconteceu.

Temos problemas no acesso à Justiça, o Judiciário não é percebido pela população como a instituição que protege os direitos dos pobres, dos sem poder. O sistema de Justiça criminal tem demonstrado fraqueza em investigar e processar centenas de casos de violência rural.

Alguns sinais positivos: o Plano Nacional de Segurança Pública, preparado pelo ministro José Gregori, foi a primeira tentativa federal de uma iniciativa articulada com os estados. Foi mal monitorado, teve pouca condicionalidade, e muito dinheiro foi pelo ralo. E foi abandonado. Cada governo que entra no Brasil quer inventar a roda, ser original, e especialmente nessa questão da violência é um desastre. Vejam essa hesitação de mandar ou não o exército para as favelas. A Operação Rio 94 foi um fracasso, o exército não é preparado para subir morro. No carnaval puseram as tropas no Rio de Janeiro para proteger o turista, para dar uma sensação de segurança. Não se têm mapas dos morros, das vias de acesso. Não há inteligência, nem infiltração nas quadrilhas. Todo mundo sabe o que é preciso fazer e não se faz. Aquele bate-boca entre o governo do Rio de Janeiro e o federal foi a demonstração de que não há nada de concreto.

Acredito também que a dificuldade de votar as reformas, essa falta de vontade, não é acidental. As reformas são adiadas porque temidas pelos deputados como ameaça de modificação, de alteração dos equilíbrios de poder precários nas relações com aparelhos de Estado, lobbies e financiadores de suas campanhas e bases eleitorais. Quando era apenas sociólogo, o presidente Fernando Henrique falava nos anéis burocráticos, que uniam horizontalmente várias corporações, articulando aparelhos e burocracia. Isso hoje persiste, entrelaçando os legislativos nas esferas federal e estadual, não para organizar tortura ou desaparecimentos, mas para resistir e emperrar a mudança.

O que fazer diante dessa situação? Não há soluções mirabolantes. O requisito maior é consistência e persistência, que têm faltado ao governo federal e a todos os estaduais. Não para fazer homenagem ao governador Alckmin, mas com alguma exceção para São Paulo. De Mário Covas a Alckmin tem havido continuidade. Hoje São Paulo tem o Infocrime, o melhor serviço de informação computadorizado, é tão bom ou melhor que o CompStat de Nova York. É possível saber onde ocorrem as violações, os furtos, os roubos, os homicídios. Isso é competência, é continuidade entre dois governos. Quando falta a persistência, o que perdura são os interesses dos traficantes e do crime organizado, que sempre prevalecem e se expandem. As polícias estaduais estão carcomidas pela corrupção e não vão conseguir atuações exemplares por maior que seja o jogo de cena do governo. Sem a articulação de setores sadios nessas polícias, que são desprestigiados por serem honestos ou por não torturarem, o fracasso está garantido. Pode o governo mandar para o Rio 1,2 mil homens que daqui a algumas semanas o tráfico continuará incólume, pois há necessidade da presença permanente da polícia nas comunidades e de políticas sociais de emergência para tirar esse pessoal do terror do crime e da violência. Infiltração nas quadrilhas, inteligência em forças de trabalho especializadas, isso funcionou no Acre e no Espírito Santo. A prisão do deputado Hildebrando Paschoal aconteceu graças a essa integração.

Os procuradores da República são um milagre brasileiro, algumas pessoas acham que eles avançam certos limites, mas hoje são defensores do estado de direito, nessas investigações são absolutamente cruciais. O atual secretário nacional de Segurança Pública foi um dos chefes da Polícia Federal na atuação exemplar que desbaratou uma quadrilha que estava implantada no Legislativo do Espírito Santo há décadas.

É urgente quebrar a rede de corrupção revelada pela CPI do crime organizado, entre policiais e membros do Judiciário denunciados, funcionários de estatais que se aliam a testas-de-ferro do tráfico e parlamentares eleitos em todos os níveis. É preciso estancar a corrupção que garante o escoamento da droga e de armamentos nas fronteiras, aeroportos, portos e rede viária, através de uma coordenação efetiva entre os governos federal e estaduais. E não operações para inglês ver. E acionar pesadamente os bancos e seus responsáveis, que continuam a lavar dinheiro.

A cada dia que as autoridades se enrolam na retórica do jogo de cena, sem se dar conta de que há uma situação epidêmica, de emergência, mais grave fica a situação. Os traficantes continuam rindo e os consumidores cheirando sua cocaína, de Copacabana ao Leblon, felizes.

 

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