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Professores utilizam o jogo de xadrez como ferramenta pedagógica

HERBERT CARVALHO*


Anatoly Karpov joga contra 20 estudantes /
Foto: divulgação

O programa Xadrez Movimento Educativo, da prefeitura de São Paulo, guarda uma diferença básica em relação a outros destinados a melhorar a qualidade do ensino público no Brasil: não surgiu dos gabinetes das autoridades ou de esferas partidárias instaladas no governo. Nasceu de iniciativas isoladas de professores que gostavam de jogar xadrez e pensaram em ensiná-lo a seus alunos. E, movida pelo entusiasmo desses mesmos alunos - decididos a aproveitar uma oportunidade só oferecida em países socialistas ou pelas mais caras escolas particulares -, a prática atravessou incólume as administrações de Paulo Maluf e Celso Pitta, para atingir seu auge na gestão petista de Marta Suplicy.

No dia 21 de novembro do ano passado, na inauguração do Centro Educacional Unificado (CEU) Inácio Monteiro, uma das escolas com piscina e teatro que estão sendo erguidas na periferia paulistana, ninguém menos que o russo Anatoly Karpov - campeão mundial de xadrez entre 1975 e 1985 - teve de suar a camisa numa sessão de partidas simultâneas contra 20 alunos, representantes de outras tantas escolas da rede municipal.

Após três horas de renhido combate, Karpov venceu a todos, emocionando-se, entretanto, por ver num remoto país da América do Sul grupos de crianças alternarem práticas locais - como a capoeira - com as artimanhas intelectuais do tabuleiro. Algo somente imaginável há algumas décadas, nos países da antiga União Soviética.

Para que esses jovens chegassem a ter o privilégio de medir forças com o ex-campeão mundial, um longo caminho, repleto de obstáculos e questões burocráticas, teve de ser percorrido por alguns professores abnegados.

"Parece escola particular!"

Ana Sílvia de Almeida é uma professora de 40 anos, que há três coordena o Xadrez Movimento Educativo. Foi com muita paciência e tenacidade, qualidades essenciais dos enxadristas, que ela iniciou seu trabalho no projeto em 1998, na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) General Eurico Gaspar Dutra, na Vila Brasilina, Zona Sul, onde dava aulas de geografia para alunos da quinta à oitava série.

"Um dia a coordenadora pedagógica entrou na sala dos professores e perguntou quem sabia jogar xadrez. Apresentei-me, e ela perguntou se eu gostaria de preparar alguns alunos para representar a escola num campeonato", conta Ana Sílvia, que aprendeu o jogo aos 6 anos, com um tio. O passo seguinte foi pesquisar nas salas de aula quantos e quais alunos poderiam ter alguma noção do jogo. Mas os que se apresentaram entre os mais de 300 das oito salas em que lecionava não eram enxadristas. O que eles sabiam jogar, na verdade, era damas.

Para dar as aulas de xadrez, Ana Sílvia levou seu tabuleiro e as peças de casa. "Colocava-o numa mesa redonda na sala dos professores, e as crianças ficavam em volta. Lembro-me de que uma menina disse: 'Puxa, professora! Nossa escola até parece escola particular!' " Como exemplo de interatividade entre o xadrez e o currículo, ela comparava a anotação de uma partida com as coordenadas de um mapa. "Era tudo artesanal, eu desenhava o tabuleiro na lousa", recorda.

Hoje instalada num casarão na Vila Mariana, onde funciona o setor de projetos especiais da Diretoria de Orientação Técnica (DOT) da Secretaria Municipal da Educação, Ana Sílvia exibe alguns números de que muito se orgulha: já são 30 mil crianças que aprenderam xadrez, em quase 300 escolas, orientadas por mais de 600 professores. Pode ser pouco diante de uma rede pública municipal com 1 milhão de alunos matriculados, mais de mil escolas e cerca de 40 mil professores. Mas é muito se comparado com o início do programa, há dez anos: do primeiro torneio escolar municipal participaram apenas cem jogadores, de 12 escolas.

A tarde de sábado do dia 17 de abril de 2004 foi de festa na EMEF Gastão Moutinho, no bairro do Mandaqui, Zona Norte. Com a presença dos pais dos alunos, o descerrar de uma fita marcou a inauguração da sala de xadrez da escola. Decorada com peças recortadas em cartolina e pregadas nas paredes por mães voluntárias, a sala, equipada como um clube de xadrez, representa a coroação - para utilizar um termo do próprio jogo - do trabalho da professora Eugênia Hideko Motoyama Martins de Oliveira, de 53 anos e 23 de magistério.

Quando começou a dar aulas de xadrez, no segundo semestre de 2000, Eugênia contava com seis alunos, um quadro mural imantado e peças que ela própria confeccionara para demonstrar os movimentos. Hoje são 54 os jovens enxadristas de sua escola. José Luís Fernandes Aguiar, aluno que participa do projeto desde o início, é um jovem tão compenetrado que, após dois anos estudando xadrez, pediu à professora algo ainda mais inusitado: aulas de japonês, cujos ideogramas aprendeu a desenhar. Não é de admirar que, com tanta disponibilidade, Eugênia seja adorada pelas crianças, que a ovacionaram quando foi chamada para a cerimônia de inauguração da sala.

Ecologia e artesanato

Sílvia Cristina de Lima Mello, de 40 anos de idade e 15 como professora de ensino fundamental e de educação infantil, há quatro anos desenvolve o projeto Ginástica da Mente, na EMEF Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, em Itaquera, na Zona Leste. "Utilizamos o xadrez como recurso lúdico, para propiciar momentos de integração e ajudar o aluno a ser mais receptivo ao conhecimento. Através de pesquisa e do trabalho com jogos tornou-se possível conciliar a educação física com a ambiental", explica a professora.

Sílvia concebeu uma variação "ecológica" do jogo, com as mesmas regras milenares do xadrez, mas novos personagens. Assim surgiram Chico Mendes e os Benfeitores da Natureza, em que o rei é o mártir dos ambientalistas e patrono da escola. A dama é Gaia, a mãe Terra; o bispo transforma-se no santo protetor dos animais, Francisco de Assis; o cavalo dá lugar ao beija-flor, e as torres são simbolizadas pelo pau-brasil e pela seringueira. Os peões são crianças de todas as raças.

Na quadra esportiva da escola os alunos, devidamente caracterizados, encenam um xadrez humano, deslizando por um tabuleiro gigante fabricado com caixas de papelão - sobra de outro programa, o clientelista Leve Leite - num mutirão que contou com a participação até do vigia da escola. De acordo com a professora Sílvia, o resultado desse trabalho reflete-se em todas as disciplinas: os alunos se mostram mais atentos e interessados, aprendem a trabalhar em grupo, tornam-se sociáveis e cooperativos, ficam até mais calmos e mais amigos uns dos outros.

O professor Pedro Frederico Püttow, de 35 anos e 12 de magistério, combinou xadrez com trabalhos manuais e artesanato na EMEF Padre José de Anchieta, em São Miguel Paulista, também na Zona Leste. A partir da filosofia dos quatro "erres" - reduzir, reutilizar, reciclar e repensar -, ele e seus alunos fizeram jogos de xadrez com tampinhas de refrigerantes. Sua obra-prima é um xadrez em escala gigante confeccionado com a técnica de cestaria, usando jornal velho. Cada peça é elaborada com canudinhos feitos com folhas de jornal, que ganham a aparência de vime. Pedro levou quase um ano para fazer o primeiro jogo completo, com as 32 peças.

Descaso e burocracia

O entusiasmo de professores e alunos contrasta, entretanto, com a má vontade da direção de algumas escolas, por vezes escudada numa ignorância que chega a identificar o xadrez como "jogo de azar". Além disso, o programa padece da crônica falta de recursos materiais e humanos que caracteriza o serviço público em geral e o ensino público em especial. O material didático é precário e xerocado. Na compra de cartilhas ou troféus e medalhas esbarra-se na burocracia.

Cada Coordenadoria Regional de Educação (por sua vez vinculada a uma subprefeitura) tem de fazer a compra de livros, peças ou tabuleiro mural para a respectiva região. O programa estava estruturado de acordo com os 13 Núcleos de Ação Educativa (NAEs), que correspondiam à antiga estrutura das administrações regionais. Teve de ser redimensionado para atender às 31 subprefeituras em que a administração municipal foi dividida.

Enquanto espera apreensiva os desdobramentos políticos das próximas eleições municipais, a coordenadora Ana Sílvia busca estreitar parcerias, como a que mantém com a Kashmir Decorações, empresa fabricante do xadrez gigante (peças de plástico com 33 centímetros de diâmetro e altura entre 45 e 75 centímetros, dispostas em um tabuleiro de 4 metros quadrados). Disponível em algumas escolas, o xadrez gigante permite aliar o exercício físico ao mental.

Outra parceria levou a empresa SerSoft Informática Ltda., responsável pelo site HumorTadela, a criar a identidade visual do programa, simbolizado por um peãozinho que sonha se transformar em dama. A idéia original é de Rebeca, aluna de 6 anos de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI).

Além de professores e alunos, outra fonte de energia para o programa está no apoio dos pais. Quando soube que iriam acabar as aulas de xadrez na Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio (EMEFM) Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Iara Souza enviou para os principais jornais paulistas um "pedido de socorro": "Sou mãe de duas crianças (Pedro, de 10 anos, e Bárbara, de 4) e moradora da Cohab Cidade Tiradentes, o que torna possível desenhar meu perfil socioeconômico. Além do abandono e do descaso com transporte, pavimentação, saúde, enfim, estrutura básica que nós, moradores da periferia, sofremos, um fato novo deixou-me totalmente desamparada. Na escola em que meu filho, sobrinhos e seus amigos estudam foi paralisado o projeto de aulas de xadrez. No bairro não temos praças, cinemas, bibliotecas. Temos, sim, superpopulação. O sucesso em campeonatos faz crescer a auto-estima das crianças, que se tornam multiplicadores de bom senso, respeito, integridade. Peço humildemente que mantenham a estrutura para este e outros projetos, sem os quais nós, pais da periferia, visitaremos nossos filhos e filhas em 'outro xadrez', menos promissor e íntegro".

O professor Égnon Viana, de 37 anos e 14 de magistério, dos quais seis na EMEFM Oswaldo Aranha, manteve o projeto de xadrez em sua escola de 1999 a 2003 e ainda o estendeu para a EMEI Margarida Maria Alves. Associou aspectos do jogo com a alfabetização. Quando a carta de Iara Souza foi publicada, a direção da escola adotou uma solução esdrúxula. Manteve as aulas de xadrez apenas para professores. Diante do boicote sofrido, Égnon pediu transferência e aguarda o momento de levar o xadrez para outra escola.

Para defender o projeto da sanha de burocratas e estendê-lo à rede pública de ensino de outras prefeituras e estados, o Instituto Brasileiro de Memória Jurídica e Social (Memojus) - uma organização não-governamental criada por historiadores, advogados e jornalistas - decidiu adotá-lo. "Vamos montar uma estrutura para manter o projeto em caso de abandono pelo poder público", diz Eunice Nunes, presidente da entidade.

* Herbert Carvalho é jornalista, mestre de xadrez e autor do livro "Tabuleiro da Vida", da Editora Senac São Paulo


Bases epistemológicas

A idéia de que o próprio conhecimento é um jogo de investigação em que se pode ganhar, perder e tentar novamente está na base da utilização de jogos como material de trabalho psicopedagógico. De acordo com a teoria epistemológica do psicólogo e pedagogo suíço Jean Piaget (1896-1980), toda criança passa por três estágios de jogo. O jogo de exercício, repetitivo, é a base para o como das coisas. O jogo simbólico, produtor de linguagens e convenções, lida com o porquê das coisas. O jogo de regra, de caráter coletivo e assimilação recíproca, marca a transição da atividade individual para a socializada.

O xadrez contempla de maneira paradigmática essas três etapas, e por isso mesmo seu ensino nas escolas é defendido por psicopedagogos como Celso Antunes, autor do livro "Jogos para a Estimulação das Múltiplas Inteligências", para quem o jogo é "o melhor caminho de iniciação ao prazer estético, à descoberta da individualidade e à meditação". Na monografia "O Jogo de Xadrez na Escola Pública: Uma Visão Psicopedagógica", Elenita Pompeu defende o ensino do xadrez para alunos e professores (em programas de educação continuada), "com o intuito de resgatar a ética nas relações humanas, estimular habilidades lógico-matemáticas e desenvolver a atenção e a memória". Para ela, o jogo deve ser adotado como parte do currículo no tema transversal ética, previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais.

O neurologista e neurocirurgião mineiro Italo Venturelli, além de recomendar em palestras por todo o Brasil a prática do xadrez para crianças com dificuldades de aprendizado, acrescenta que os benefícios se estendem muito além dos exames acadêmicos ou do êxito profissional. "O xadrez é um exercício mental que ajuda a prevenir doenças degenerativas do cérebro, como o mal de Alzheimer", garante o médico.


Dos bolcheviques aos colégios da elite

No Ocidente, o xadrez surge como um jogo para poucos. Na Idade Média era praticado por religiosos em conventos, depois pela nobreza e a seguir por intelectuais como Jean-Jacques Rousseau, filósofo do Iluminismo.

A primeira tentativa de massificação surge com a Revolução Russa, que se depara com uma contradição: uma reduzida classe operária diante de uma massa de camponeses ignorantes, cujo passatempo nacional são o alcoolismo e a fabricação caseira de vodca.

Nesse quadro, os bolcheviques reconhecem no jogo de xadrez um instrumento para elevar o nível cultural do povo e decidem ensiná-lo nas escolas. Os que se destacam recebem treinamento nos Palácios dos Pioneiros, espalhados até pelos mais diminutos lugarejos. Esse sistema proporciona aos soviéticos quantidade e qualidade que resulta numa hegemonia de décadas sobre o xadrez mundial.

Nos moldes em que foi desenvolvida na ex-URSS, a massificação do xadrez só tem paralelo em Cuba, onde também é matéria escolar. Recentemente, na província de Santa Clara, mais de 13 mil pessoas (na maioria jovens) constituíram o novo recorde mundial de participantes de um único torneio.

No Brasil, o xadrez foi introduzido nos círculos intelectuais no final do século 19 por Machado de Assis. A partir dos anos 1970, ganha os meios de comunicação impulsionado pelo fenômeno norte-americano Bobby Fischer, que em plena Guerra Fria arrebata dos soviéticos o título mundial.

Em 1972, Henrique da Costa Mecking, o Mequinho, torna-se o primeiro grande mestre brasileiro e é instrumentalizado pela ditadura militar. O general Emílio Garrastazu Médici, então presidente da República, afirma que "seremos campeões dos pés à cabeça", numa referência à conquista da Copa do Mundo de 1970. A primeira tentativa de introduzir aulas de xadrez na rede pública ocorre em Osasco, em 1976. Ainda nessa década um torneio escolar promovido pelo jornal "Gazeta Esportiva" reúne centenas de crianças em São Paulo.

De lá para cá as melhores e mais caras escolas particulares de São Paulo passam a oferecer cursos de xadrez e fazem disso um diferencial de marketing. No Liceu Pasteur, o programa existe há quase duas décadas. Um de seus alunos, Fernando Hasegawa, chegou a ser campeão brasileiro na categoria de menores.

O Colégio Albert Sabin ostenta o título de campeão brasileiro escolar por equipes. Sua aluna Larissa Tokinari também já foi campeã brasileira. A exemplo do Liceu Pasteur, parte de suas aulas são ministradas na grade curricular e parte em turmas especiais de treinamento. O professor há mais de 15 anos é o mestre Antônio Carlos Rezende.

No Colégio Bandeirantes as aulas não fazem parte do currículo, o que também ocorre no Dante Alighieri, onde o professor é o mestre Jefferson Pelikian. No Colégio São Luís, as aulas começaram há um ano, ministradas pelo mestre Angel Gutierrez.

O Colégio Augusto Laranja sagrou-se campeão paulista num torneio entre escolas e clubes federados, realizado pela Secretaria de Esportes do Estado em 1993. No Colégio Mackenzie Tamboré, o professor é Wagner Madeira, autor de uma dissertação de mestrado em literatura, na qual relaciona Machado de Assis com o jogo de xadrez.

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