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Um debate sobre o colapso da educação pública no Brasil

SAMUEL PFROMM NETTO


Pfromm Netto / Foto: Gabriel Cabral

No dia 11 de março de 2004, Samuel Pfromm Netto realizou uma palestra no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo com o tema "O Colapso do Ensino Público Fundamental no Brasil".
Pfromm Netto é psicólogo, pedagogo, jornalista, escritor e editor, e tem uma longa experiência em atividades e pesquisas relacionadas com a educação. É autor de cerca de 50 livros, vários deles didáticos, e centenas de artigos, estudos e relatos de pesquisa, publicados no Brasil e no exterior. Especialista em assuntos que envolvem a interface mídia-educação, teve seu trabalho reconhecido por diversas entidades e organizações, com destaque para o prêmio que recebeu da NHK, do Japão, por programas educativos que produziu para a Rádio e TV Cultura de São Paulo.
Publicamos a seguir o texto condensado da palestra e dos debates que a seguiram.

As considerações feitas a seguir referem-se tão-somente ao ensino fundamental, que na terminologia agora vigente dura oito anos e com outros segmentos compõe o conjunto que a lei federal nº 9.394 de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, intitula "educação básica". O ensino fundamental, em tese, deveria corresponder às idades que vão dos 7 aos 14 anos, mas na prática abriga um enorme contingente de alunos "atrasados", com 15, 16 ou mais anos de idade. Bem ou mal, presentemente é de 97% o percentual de crianças e adolescentes brasileiros de 7 a 14 anos que se acham matriculados no ensino fundamental. Note-se, contudo, que é grave entre nós o problema da distorção entre série e idade, pois 41,7% dos alunos, nada menos que quatro entre dez alunos, estudam em séries que não correspondem às suas idades. Em outras palavras, o aluno tem 10 ou 12 anos e ainda está na primeira série do ensino fundamental. Além disso, como as escolas igualmente abrigam cerca de 8 milhões de alunos que não tiveram acesso a elas no momento adequado, o número de matriculados, pouco mais de 35 milhões, é significativamente maior do que o dos 27 milhões de brasileiros de 7 a 14 anos de idade, uma diferença sensível de 8 milhões.

A história melancólica da educação básica no Brasil está em grande parte atrelada a uma outra, não menos sombria: a História da Instrucção Popular em Portugal, como reza o título do livro de dom António da Costa, editado em 1871 em Lisboa, no qual são verberados os erros, as mazelas, o abandono e as fragilidades multisseculares do ensino público na metrópole portuguesa, a que o Brasil se achou ligado de 1500 a 1822. Até então, 1822, éramos portugueses. Perante o quadro melancólico a que se refere dom António, não é de estranhar que o Brasil tenha igualmente padecido o drama persistente de um ensino público insuficiente e de baixo nível, que aqui fez morada desde o Brasil Colônia até os tempos republicanos. Enquanto o ensino público se expandia rapidamente em toda a Europa, a garantia teórica de instrução a todos e de liberdade de ensino, proclamada tardiamente em Portugal, pela primeira vez, pela revolução de 1820, tornou-se na verdade letra morta nos governos seguintes. Em pleno século 20, precisamente em 1950, Portugal apresentava uma das mais altas taxas de analfabetismo do mundo civilizado, próxima da que correspondia ao Brasil.

Como se não bastasse essa herança de infortúnio educacional, somaram-se no Brasil múltiplos fatores para obstaculizar, durante boa parte do século 20, a expansão da rede de escolas e vagas no ensino fundamental público. Até 1971, não iam normalmente além de quatro anos os estudos em nossa escola primária tradicional.

De acordo com estudos de 1972 da Unesco (louvo-me aqui na contribuição preciosa de Esther de Figueiredo Ferraz), em termos de anos de escolarização obrigatória, entre 128 países arrolados em todo o mundo, somente o Laos situava-se abaixo do Brasil. Só de maneira muito penosa e lenta cresceu, na segunda metade do século passado, o percentual de alunos de 7 a 14 anos de idade efetivamente matriculados no ensino fundamental. Esther de Figueiredo Ferraz ressalta a verdadeira "explosão da demanda escolar, alimentada, de 1971 para cá, pela elevação de quatro para oito anos da faixa de escolarização obrigatória".

Não cabe aqui a análise do que significou para o ensino fundamental no país a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, também conhecida como "Lei Darcy Ribeiro", aprovada há quase oito anos. Essa análise é tarefa árdua, que demanda tempo, erudição e visão aguda. Limitemo-nos a assinalar que a referida lei transferiu para os municípios a responsabilidade pelo ensino fundamental e, pelo menos teoricamente, consagrou como princípios norteadores da educação no país a flexibilidade e a autonomia. A lei ressalta, em seu artigo 3º, entre outros pontos essenciais, a "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber", o "pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas", e ainda a "garantia de padrão de qualidade". A julgar pelo que se constata no ensino fundamental, preceitos louváveis como esses contrastam com certas realidades amargas e gritantes de agora, inclusive no que respeita aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) da Secretaria de Educação Fundamental do MEC, divulgados em 1997-98, ou a projetos como o Programa Especial de Capacitação de Professores (PEC), destinado aos professores da rede pública do estado de São Paulo e desenvolvido em 2001 pela Universidade de São Paulo (USP), pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) como "programa especial de licenciatura plena para professores das séries iniciais do ensino fundamental". Nem os PCN nem o PEC paulista parecem ter sido objeto de avaliações, análises e questionamentos independentes, não-sectários, à luz do que se pesquisa e se pratica nos principais centros de investigação científica e ensino que existem no exterior.

No que respeita aos PCN, cabe, aliás, indagar que razões teriam levado seus autores (na verdade, ninguém assume a autoria) a desconhecer e/ou omitir a maior parte dos livros, relatórios, estudos e pesquisas produzidos nos últimos 50 anos no exterior, agarrando-se tão-somente à literatura publicada no Brasil, acrescida de alguns textos disponíveis em espanhol.

Um dos que primeiro nos alertaram sobre essa melancólica hegemonia pedagógica foi o saudoso companheiro, amigo e mestre, o professor da USP João Eduardo Villalobos. Referindo-se à lei nº 5.692, de 1971, que alterou substancialmente o ensino básico brasileiro, diz Villalobos: "Na verdade, o que se procurou foi substituir uma pedagogia inspirada na psicologia de fundamentos filosóficos empiristas (derivados de pesquisas e investigações) por outra, constituída a partir dos estudos da psicologia da inteligência levados a efeito por Jean Piaget, os quais, por sua vez, se prendem a posições filosóficas assumidas por esse pensador genebrino em seus trabalhos de psicologia genética. (...) A restrição fundamental a ser feita (...) consiste em indagar se os indicativos da ciência podem transformar-se num imperativo de um documento jurídico - sobretudo quando esses 'indicativos' se apóiam inequivocamente numa determinada posição filosófica. De qualquer maneira, Piaget é a moda mais recente, o que sempre tem muita influência em nosso país". Esse é um questionamento que me parece extremamente sério.

Os que estão distanciados da pedagogia e da psicologia certamente estranharão que, nestes tempos em que os rumos da teorização, da pesquisa e da aplicação do conhecimento são predominantemente norteados por contribuições de estudiosos nascidos na segunda metade do século passado, o que se diz e o que se faz no Brasil em matéria de educação se apóie principalmente, além do brasileiro Paulo Freire, em dois autores que vieram ao mundo em fins do século 19: o suíço Jean Piaget e o russo Liev Semiónovitch Vigotski. Ambos nasceram em 1896. Por mais respeitáveis que sejam as contribuições de um e outro, não se deve jamais perder de vista que, primeiro, duas árvores não constituem a floresta - a monumental floresta de pesquisas e teorizações de centenas de outros investigadores da educação e do desenvolvimento da criança. Em segundo lugar, ao contrário do que apregoam seus adeptos fanáticos, contamos com mais de meio século de críticas, objeções, reservas e controvérsias a respeito das tradicionais contribuições piagetianas e vigotskianas.

Dificilmente alguém poderia imaginar, até por volta dos anos 60, que nossos piagetianos e vigotskianos ganhariam truculentamente o domínio quase total da educação brasileira, no que se refere à criança, repudiando-se assim o pluralismo, a diversidade, a liberdade de opções teóricas e metodológicas que predominavam até então nos meios escolares do país e que a nova Lei de Diretrizes e Bases consagrou teoricamente em 1996.

Os PCN para o ensino fundamental trazem em cada volume longas listas de responsáveis pela sua elaboração, sem no entanto dizer quem fez o quê. É apenas uma simples listagem de numerosos nomes, como sendo o colegiado que produziu esses parâmetros. Além disso, eles incluem os nomes dos consultores. No conjunto correspondente às quatro primeiras séries, são apenas dois: o espanhol César Coll Salvador e a venezuelana Delia Lerner de Zunino. Reitere-se que o exame das bibliografias dos PCN sugere, de modo geral, que seus autores desconhecem a língua inglesa e ignoram as obras publicadas nesse idioma.

Ressalte-se novamente que só uma análise ampla e aprofundada do conjunto de volumes que compõem os PCN para o ensino fundamental permitirá deslindar em que medida estes são decalcados das mesmas fórmulas adotadas na Espanha ou em países latino-americanos e em que extensão estão amarrados à dogmática construtivista vigotskiana, que, como foi anteriormente acentuado, de nenhum modo refletem o vigoroso e fecundo pluralismo de teorização e pesquisa de natureza pedagógica e psicológica dos últimos 50 anos. Pluralismo que inclui grande número de modelos, teorias, linhas de investigação e desdobramentos de caráter prático na área da educação que nada têm a ver com Piaget ou Vigotski. Ocorre-me agora que é mais ou menos como se na medicina brasileira citássemos só dois autores confiáveis, como se os demais não existissem. Apenas um dentre inúmeros exemplos: o volume dos parâmetros a respeito de língua portuguesa (com ênfase na leitura e na escrita) silencia sobre os autores mais citados nesse campo pela bibliografia internacional. Todos estão ausentes. Os pesquisadores mais citados em M. J. Adams (com mais de 30 citações cada um, pela tremenda contribuição que deram para a compreensão de como se ensina e se aprende a ler e escrever) são: R. Treiman, L. C. Ehri, Seidenberg, J. S. Chall, McClelland, Lieberman e outros. Nenhum desses autores, tampouco Adams, aparece na bibliografia e no texto dos parâmetros referentes à aprendizagem de leitura e escrita.

O exame das bibliografias e dos conteúdos dos demais volumes, referentes a história, geografia, ciências naturais, matemática, etc., revela igualmente a ausência injustificável das principais contribuições da pesquisa empírica e da teorização sobre ensino-aprendizagem nessas áreas, surgidas nas últimas décadas. Nota-se, aliás, que tanto nos conteúdos dos PCN como nas fontes mencionadas predominam, em contrapartida, as teorizações, elucubrações de gabinete e concepções pessoais deste ou daquele autor, com franco prejuízo da literatura de pesquisa e das comprovações empíricas. A familiaridade com as principais obras de referência saídas nas últimas décadas e uma mera consulta por meio da Internet revelariam rapidamente as fragilidades dos parâmetros aqui aludidas.

Não se pode mais silenciar, como vem acontecendo até agora, a respeito dessa triste realidade: as crianças e os jovens brasileiros estão sendo vítimas, nestas últimas décadas, de um monumental equívoco pedagógico. Desde o início dos anos 70, o Brasil embarcou na canoa furada de uma pomposa e arrogante "reforma pedagógica", cujos efeitos danosos se agravaram mais e mais, redundando nisso que aí está: após oito ou mais anos de escolarização básica, alunos que não sabem ler nem escrever, desconhecem a matemática, as ciências, as artes, a história e a geografia sérias... Não sabem nada, enfim, como se comprovou há pouco: na avaliação internacional de que participaram três dezenas de países, muito divulgada pela imprensa, o Brasil ficou em último lugar, no que respeita aos resultados alcançados por nossos estudantes.

A educação no Brasil é vítima de um mal crônico: o das propostas pedagógicas de certos iluminados que, em seus países de origem, nunca foram postas à prova e que foram até rejeitadas pelos sistemas de ensino como utopias, rebeldias românticas ou inexeqüíveis. Em muitos casos, essas propostas não passam de construções puramente teóricas, feitas por quem não tem pé na realidade e desconhece (ou finge desconhecer) o dia-a-dia de uma sala de aula apinhada de alunos, os programas que devem ser cumpridos, os conteúdos - conhecimentos e habilidades - em grande quantidade que os alunos precisam dominar, o tempo exíguo de permanência dos alunos em sala de aula, os materiais didáticos ruins ou inexistentes e assim por diante. Essas propostas acabam sendo "oficializadas" entre nós, e seus criadores são endeusados. Chegam até a ser consultores e mentores de organismos oficiais no Brasil.

Em contrapartida, existe uma comunidade internacional de pesquisadores empíricos em educação e estudiosos renomados no mundo inteiro, que não devem ser confundidos com os "iluminados" a que me referi. Suas investigações são divulgadas em revistas científicas sérias, em congressos e conferências, em publicações diversas que contrastam vivamente com a pseudoliteratura pedagógica que pulula entre nós. Do esforço conjunto desses pesquisadores resultaram obras coletivas confiáveis. Infelizmente, fontes como essas permanecem ignoradas entre nós. Preferimos, e esse é um mau vezo brasileiro, a palpitologia - base de sustentação do que vem sendo imposto aos professores e às escolas no Brasil.

Tudo quanto tem sido publicado a respeito dos males de que padece o ensino fundamental público no Brasil silencia sobre o ponto essencial: o descalabro pedagógico-metodológico que desabou sobre nós nestes últimos 30 anos, particularmente na década passada. Impôs-se, com um autoritarismo estarrecedor, um "modelo único" de ensinar e aprender aos nossos professores, em vez de estimularmos a flexibilidade, a autonomia, a diversidade, a liberdade de escolher e de usar na sala de aula múltiplos procedimentos, idéias e soluções, que pouco ou nada têm a ver com certos figurinos unilaterais impostos aos mestres.

Não estamos sozinhos nesse descalabro pedagógico. Os franceses reagiram em boa hora a esse estado de coisas e os EUA também, como se lê no verdadeiro libelo que é o livro The Conspiracy of Ignorance, de Martin Gross, que trata do malogro das escolas públicas dos Estados Unidos.

Devemos a Cláudio de Moura Castro uma contribuição, publicada na "Veja" em 22 de outubro de 2003, sob o título "As Três Leis do Império Tupiniquim", que esclarece por que nosso ensino público fundamental está na UTI. As três leis, de acordo com Castro, são: "1) Todo fenômeno mundial tem uma explicação tupiniquim diferente. 2) Como a solução tupiniquim é sempre melhor, não é preciso ver o que se faz no resto do mundo. 3) Em caso de dúvidas, consulte-se um autor defunto, jamais o mundo real, pois isso é um perigo para as teorias".

Em alfabetização, prossegue Castro, nossos professores não têm sequer acesso a livros e artigos que explicam como funcionam metodologias comprovadamente eficazes em outros países. Em matéria de formação profissional, consultamos Gramsci, sem saber que "muito do que ele propôs ou já está nos sistemas conhecidos ou não deu certo". Temos ojeriza aos cursos técnicos ou de tecnólogos. Em matéria de aprovação nas escolas, lembra Castro que lá fora (veja-se o exemplo japonês, que é bem expressivo nesse sentido) "nem há repetência em massa, nem os alunos ficam sem aprender".

No que respeita à capacidade de ler dos egressos de nossas escolas, "nem os filhos das nossas elites entendem o que lêem". Aliás, os livros didáticos são execrados, principalmente o livro-texto sabiamente dosado, passo a passo, que orienta o professor para ministrar suas aulas.

Com as honrosas exceções de sempre, a verdade é que faltam a nossos professores do ensino público fundamental quer um domínio abrangente e profundo dos próprios conteúdos que precisam necessariamente ser ensinados e aprendidos, quer um preparo não-tendencioso, não-sectário em relação a um arsenal de habilidades de ensino, de recursos para controle de classe, de planejamento e avaliação realistas, de técnicas eficazes para lidar com problemas pessoais e interpessoais, para orientar e corrigir as tarefas dos alunos e assim por diante. Despeja-se sobre nosso professorado - atual e futuro - um amontoado de instruções pedantes, afirmações de teóricos da educação que nunca fizeram pesquisa empírica nem trabalharam com crianças ou adolescentes em salas de aula reais.

Não é novidade dizer que a imensa rede educacional brasileira apresenta deficiências de todos os tipos, embora esteja mesclada (felizmente!) com bom número de instituições e docentes qualificados, tanto no ensino privado como no público. São, afinal de contas, cerca de 60 milhões de alunos, e está próximo de 2,4 milhões o total de professores nas escolas brasileiras. Mais de 35 milhões do nosso alunado freqüentam escolas nas quais se ministra ensino fundamental. Prosseguem as controvérsias sobre as vantagens e desvantagens da eliminação da avaliação ao fim de cada série e da repetência, o problema da evasão escolar longe está de ter sido resolvido entre nós e assim por diante.

De modo geral, nos últimos anos não há dúvida de que houve sensível expansão quantitativa do ensino no Brasil, de maneira a possibilitar o acesso aos vários níveis de escolarização a um segmento maior de alunos do que no passado. Apesar disso, esse ensino está aquém de proporcionar atendimento adequado a todas as crianças e jovens, correspondente às suas faixas etárias.

À expansão quantitativa, portanto, não correspondeu uma significativa melhoria qualitativa, em resposta tanto às necessidades de cada estudante como aos imperativos de um preparo incomparavelmente maior do que no passado, para a sociedade brasileira como um todo.

Uma sólida base aprendida no âmbito da ciência e da tecnologia é hoje tão vital quanto um rico fundo de cultura geral, um desenvolvimento artístico, cívico, físico e moral inteligente e sadio, uma competência nas habilidades de ouvir, falar e escrever e um não mais acabar de itens críticos para viver e conviver no mundo de hoje - resolver problemas, discriminar o que há de falacioso ou postiço em mensagens que nos atingem, tomar decisões, participar de modo civilizado em discussões, contribuir positivamente para o bem-estar geral.

Tudo indica que podemos e devemos nos empenhar nessas direções. É possível plantar as boas sementes da dignidade e do respeito à vida, das ações construtivas, da não-violência, do amor incondicional ao próximo.

Frente à crua realidade de certas escolas públicas de hoje, nas quais os alunos não mais respeitam os professores, os baderneiros fazem o que bem entendem e as drogas são rotineiramente compradas, vendidas e usadas, a violência campeia.

Sabe-se que há mestres, diretores e funcionários acuados por estudantes agressivos e marginais, de novo tanto dentro como fora da escola. Foi instituído o "pedágio" em algumas escolas públicas e há silêncio a respeito disso. Os desregramentos, os abusos, os palavrões, a sordidez compõem um caldo de cultura de uma espécie de escola paralela do opróbrio e da desfaçatez.

Não se pretende generalizar toda essa enxurrada de afirmações, mas é preciso dizer claramente que parte das escolas públicas enfrenta esses problemas. Portanto, frente a essa triste realidade não há como evitar, ainda que nos acusem de saudosismo, a lembrança daquelas escolas de ontem. Nelas os alunos aprenderam a ser cidadãos, a ser pessoas de bem, assenhorearam-se das ferramentas básicas da leitura, da escrita, do cálculo, da cultura geral e, valendo-se de conhecimentos e habilidades hauridos nas escolas do passado, construíram esta nação, como simples trabalhadores braçais num extremo, ou como presidentes, cientistas, políticos, profissionais atuantes nos múltiplos campos da atividade humana.

Em dezembro do ano passado, remetemos ao "O Estado de S. Paulo" uma carta, parcialmente reproduzida pelo jornal. Gostaríamos de encerrar estas considerações com o texto dessa missiva.

"Em meio à insensatez e à superficialidade que proliferaram a respeito das mazelas da educação básica no país, é gratificante ler um texto tão lúcido, objetivo e coerente como o de Rolf Kuntz (4/12/03). Acerta o autor em cheio no alvo, quando se refere à 'escandalosa tolerância' em relação à má qualidade do ensino e reclama franqueza no tratamento dessa tragédia nacional. Faltou acrescentar, como nos contos policiais, quem é o criminoso: a imposição totalitária de uma pseudopedagogia dogmática e intolerante nestas últimas décadas.

"A verdade é que assistimos na educação formal brasileira a uma derrocada calamitosa, liderada por certos setores de certas universidades e por organismos governamentais, que mandaram às favas as bases científicas do ensino e da aprendizagem e o pluralismo de idéias e procedimentos neste domínio.

"Basta correr os olhos pela enxurrada de publicações e pseudocursos presenciais e a distância que pululam por aí, com o intuito de formar e aperfeiçoar professores, para entender por que, nas três últimas décadas, o ensino fundamental no país piorou tanto. Hoje em dia, há um percentual elevado de crianças que concluem a oitava série mas não sabem ler. Não sabem escrever. Não sabem fazer as quatro operações. Desconhecem rudimentos de geografia, de história, de ciências, de artes. Enquanto isso, apregoa-se às escâncaras um modelo romântico-doutrinário da neo-escola do faz-de-conta, na qual o professor não deve dar aulas nem o aluno precisa aprender o que é essencial. Faz-se galhofa do 'ensino tradicional' e das provas e exames. Manda-se às favas o sadio pluralismo, predominante no passado e comum no mundo inteiro, dos métodos, técnicas e recursos didáticos múltiplos a serviço do ensino. E em nome do quê? Em nome de tolices, fórmulas mágicas, fanfarronices e teorização anacrônica.

"Já é tempo de dar um basta a esse calamitoso estado de coisas, de abandonar a subliteratura pedagógica abundante e predominante entre nós, de buscar na Internet e em livros e periódicos científicos de qualidade o que se sabe com segurança e objetividade acerca de ensinar e aprender, para que possamos voltar a oferecer às crianças e aos jovens uma educação formal séria, consistente, rigorosa, que produza resultados positivos e mensuráveis. Está na hora de abandonarmos essa perniciosa rebeldia romântica alimentada por uma 'antididática' sociopolítica a que se referem Barco de Surghi e Lorenzo Delgado, espécie de onda avassaladora que está tomando conta da educação no Brasil, misturada com primarismo e ingenuidade, que prospera no país desde os anos 70, gerando os resultados catastróficos a que se refere Kuntz em seu notável artigo."

Debate

HUGO NAPOLEÃO DO REGO NETO - Quando fui ministro da Educação, o falecido senador João Calmon me presenteou com o relatório de T. H. Bell, "A Nation at Risk", a respeito do estudo do inglês, considerado uma das línguas-passaporte para a cultura. Por isso instituí naquela época o caráter de eliminatoriedade do português nos vestibulares, tamanha a importância da língua.
A Alemanha provocou duas guerras mundiais, e na segunda delas terminou dividida e destroçada. Mas no final do século passado era muito provavelmente a nação mais rica da Europa. Por quê? Educação. A Coréia, dividida em 1950, passou a ser uma potência econômica. Por quê? Educação. As nações latino-americanas receberam na década de 1960 uma substancial ajuda do programa Aliança para o Progresso, em milhões de dólares, mas não foram muito longe. Por quê? Educação. Os integrantes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), durante a grande crise do petróleo na década de 70, faturaram bilhões e bilhões de dólares e não foram muito além de onde estavam. Por quê? Educação.

MOACYR VAZ GUIMARÃES - Fico cada vez mais perplexo com a diferença entre o que se propõe e a realidade. Ouve-se muito falar em padrão de qualidade no ensino. Mas onde está ele? Há um crime pedagógico sendo cometido em nosso país.
O ensino básico é composto de três segmentos, a educação infantil, o ensino fundamental e o médio. Será que os alunos estão assimilando os conteúdos? E que conteúdos terão dominado para apoiar seu aprendizado subseqüente? Não vejo fundamentos. Basta verificar o nível de conhecimento dos concluintes. Eles não entendem o que lêem.

PFROMM NETTO - Quando Hugo Napoleão menciona os países que atravessaram calamidades, como a Alemanha, o Japão e boa parte das nações européias, convém lembrar que superaram esse estado de coisas porque existia em todos eles uma tradição de bom ensino. Existe um consenso mundial a respeito de coisas que funcionam bem em educação, outras que não funcionam tão bem e há finalmente uma série de idéias que os autores preferem chamar de incursões do romantismo rebelde na área educacional, com tintas muito fortes de natureza político-ideológica.
"A Nation at Risk", lembrado por Napoleão, é uma constatação que com igual ou maior razão se aplica ao caso brasileiro. Somos também um país de risco. É curioso que até hoje esse livro não foi traduzido para o português. Pior ainda: não é citado, é cuidadosamente omitido nas discussões pedagógicas.
Saber, portanto, como disse Moacyr Guimarães, o que os alunos estão de fato assimilando a partir dos fundamentos é a pergunta que precisa ser feita. Que fundamentos são esses se, afinal de contas, o menino não sabe nem escrever o próprio nome?

ROBERT APPY -Pfromm Netto não se referiu à remuneração dos professores. Como um professor do ensino público, recebendo esse salário, pode estar à altura da vocação?

NEY PRADO - O pluralismo das idéias exige uma cultura compatível, que não deve ser fruto de um fato histórico, mas um produto da história. O que somos? Fruto de um processo pendular e cíclico: de um lado o autoritarismo, seja militar, seja civil, que nos legou uma cultura autoritária, e do outro, quando o autoritarismo perde força, caímos na corruptela da democracia que é o populismo. Esse pluralismo das idéias devemos implementá-lo porque é fruto da democracia, mas ainda vai levar muito tempo.

JOSUÉ MUSSALÉM - O Estado brasileiro investe muito mal em educação. Mais: reforça o desapreço pelo ensino, quando tenta eliminar a qualquer custo o desconto de despesas escolares na declaração de ajuste anual da Receita Federal. Não conseguiu esse intento porque as lideranças do Congresso deixaram claro que essa medida, pelo menos naquele momento, não passaria. Vejam a que ponto chegou o pensamento do setor público fiscal brasileiro com relação à educação. Uma pergunta: o que acha da proposta de 100 mil bolsas de estudo do governo federal para universidades privadas?

PFROMM NETTO - Robert Appy coloca o dedo numa ferida ao perguntar quanto ganha o professor. É muito mal remunerado, se compararmos com padrões internacionais. Se não se paga quase nada, não esperem que as melhores cabeças busquem o magistério.
Em relação ao pluralismo a que se refere Ney Prado, na verdade a intenção foi frisar mais um pluralismo no plano do ensino, da aprendizagem, que se opõe na literatura contemporânea mundial, diametralmente, ao chamado fascismo pedagógico ou ao marxismo-leninismo pedagógico, já que a pedra de toque desse pluralismo é multiplicidade de pontos de vista, de modos de ver, de entender e de trabalhar um problema. É nesse sentido, portanto, que se vem advogando no mundo inteiro um professor pluralista, flexível, versátil, capaz de trabalhar com múltiplos instrumentos, idéias, modelos e teorias, fugindo, tanto quanto possível, da tentação de impor uma só maneira de ver e de fazer.
Lembro outro ponto que não ficou claro, o problema de ensino particular versus ensino público. É uma questão carregada de indagações. Na verdade, as famílias estão mais e mais sendo forçadas a tirar os filhos das escolas privadas e pô-los em escolas públicas, em virtude do agravamento do quadro econômico. De maneira que a perspectiva não é apenas de 100 mil bolsas de estudo, mas de muito mais do que isso.

VICENTE MAROTTA RANGEL - Para suavizar um pouco o pessimismo que está na base da sua exposição, quero dizer que conheço casos de jovens que entraram diretamente na Universidade de São Paulo, vindos de escolas públicas do interior. Felizmente existem estudantes capacitados em virtude do bom ensino fundamental recebido.

FÉLIX SAVÉRIO MAJORANA - Entre 1993 e 1996, fui secretário da Habitação e posteriormente, durante 15 meses, estive na Secretaria da Educação em Santo André. Nesse período, aprovei um plano para aumentarmos em 130% o número de creches. Terminado o mandato, logo no começo da legislatura seguinte foi votada uma CPI para que eu respondesse por que razão havia construído tantas creches. Então, se os governantes não têm idéia de onde começa a educação, seu pessimismo está completamente justificado.

EDUARDO SILVA - Sabemos que a medicina, por exemplo, nos últimos 30 anos teve enorme progresso. Por que a educação não avançou? Será que não podemos utilizar a televisão como um meio de ensino? Seria preciso haver professores de televisão, não mais de leitura. As crianças, para mexer no computador ou no aparelho de televisão, não precisam de um manual. Será que não está aí um campo enorme de pesquisa para os educadores? Por que não tirar proveito da eletrônica que hoje toma conta da nossa sociedade?

JOÃO THOMAS DO AMARAL - A legislação educacional, desde a lei nº 4.024, passando pela de nº 5.692 até a atual, na verdade impôs às escolas de ensino fundamental e médio um trabalho burocrático muito grande. Ela mudou a prática burocrática, mas alterou muito pouco a sala de aula. Conclusão: as normas se tornam inviáveis, porque tomam muito tempo do professor. Então fica mais fácil atribuir a nota mínima de aprovação do que obedecer a toda aquela burocracia.

IRANY NOVAH MORAES - Essa história de reserva de vagas para o negro é uma discriminação grosseira. Gostaria que desta reunião saísse uma proposta objetiva: reserva de vaga para o analfabeto, porque ele é que está precisando. Temos de dar bolsa e fazer o que for preciso para os analfabetos, coitadinhos, que estão nascendo agora, e precisam do ensino fundamental.

PFROMM NETTO - Na literatura pedagógica e psicológica, há uns 20 ou 30 anos, surgiu uma expressão que no Brasil é raramente utilizada: criança de risco. As chamadas crianças de risco pertencem, portanto, a essa área na educação difícil de ser trabalhada, porque têm carências múltiplas, inclusive a afetiva. Há toda uma literatura de pesquisa, de investigação concreta sobre esses problemas, que indica caminhos, mostra estratégias mais adequadas. Só que esse conhecimento não é difundido no Brasil. Ignoramos, por assim dizer, a existência do problema ou repetimos truísmos sem buscar a resposta na pesquisa.
Há a invasão de fato de exigências burocráticas, fazendo com que os verdadeiros problemas sejam perdidos de vista.
Muitas vezes me pergunto por que é que no Brasil a educação não dá certo. Enquanto em todos os outros campos nos louvamos com tanta freqüência no que de melhor o cérebro humano produziu, não importa onde, por que na educação achamos que podemos nos descartar de tudo o que os outros pesquisaram, investigaram e fizeram?
Essa perspectiva melancólica se completa com a observação de que as conseqüências do mau ensino, do abandono dos primeiros sete anos de vida e do ensino dos 7 aos 14 precário e deficiente repercutem, evidentemente, não só na vida de cada uma dessas crianças e adolescentes, mas na família, no país. Essas conseqüências batem às portas da graduação e até da pós-graduação universitária.
Precisamos mais e mais de bons professores. Primeiro, mais bem selecionados. Segundo, mais bem remunerados. Terceiro, que gostem de ensinar e sintam a alegria, o prazer de compartilhar com os alunos suas habilidades, seus conhecimentos. E professores que sejam preparados efetivamente para dominar técnicas, procedimentos, maneiras de ensinar e de aprender, que felizmente são muitas.

 

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