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Culta e despedaçada
Descaso, mau uso e ensino deficiente desfiguram língua portuguesa
CECÍLIA PRADA
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Dado o reconhecimento de que as novas gerações estão falando e escrevendo cada vez pior; de que existe no Brasil atualmente grande descaracterização e desvalorização do idioma; de que alguma coisa deve ser feita com a máxima urgência para reverter esse processo enquanto isso é possível... vamos às causas desse descalabro.
Talvez a culpa seja de Olavo Bilac, que lá por volta de 1890 definiu a língua portuguesa como "inculta e bela" - pior ainda, como "esplendor e sepultura". Entende-se o mau humor de um escritor que, ostentando o pomposo título de "príncipe dos poetas", via seu brilhantismo limitado pela pouca visibilidade, como se diz hoje, da literatura brasileira no resto do mundo. Entende-se a sua intenção consciente de exaltar a língua - aliás, Bilac, de espírito muito conservador, foi o "exaltador" oficial e oficiante de muitas outras coisas, como a bandeira, a pátria, o serviço militar. Só que o subconsciente lhe pregou, e a todos nós, uma peça, para usar linguagem de sua época. A pecha de "inculta" e a sombra da "sepultura" são imagens poderosas que pegaram feito visgo em várias gerações de brasileiros e que durante todo o século 20 vieram alimentando um certo descaso coletivo pela língua. Uma tendência a pensar ou mesmo expressar a idéia de "também com essa língua ('inculta', à beira da 'sepultura') que ninguém fala". Há alguns anos ouvi um professor norte-americano de literatura dizer que Guimarães Rosa teria sido certamente o maior escritor latino-americano se não tivesse escrito em português. Como também ouvi um empresário brasileiro manifestar irritação diante da limitação de ter de utilizar "tal língua". Na sua opinião, o inglês deveria ser ensinado diretamente na infância, no Brasil e em outros países pouco desenvolvidos. Nota: não usava de ironia. Pior do que isso: ouvi também em "encontros com escritores" realizados em bibliotecas municipais pessoas que, por terem escrito um livro qualquer e se qualificado como "escritores", julgavam-se autorizadas a dizer em alto e bom som que o que interessa num livro é unicamente o conteúdo, não importando se é bem ou mal escrito, se o português está correto ou não. Nosso cotidiano traz, também, centenas de exemplos desse absoluto descaso com a correção, em textos das mais variadas origens, até nos produtos universitários, nos documentos oficiais, na imprensa, no exercício profissional - já vi uma petição de divórsio. E até mesmo em sites que se propõem divulgar a literatura brasileira. É isso.
Mas os fatos históricos, os dados geográficos do mundo atual, desmentem totalmente a desvalorização do idioma "em que Camões chorou, no exílio amargo, / O gênio sem ventura e o amor sem brilho!" (Bilac redime sua raiva, na chave de ouro do seu soneto). O português é hoje o oitavo idioma mais falado no mundo, o terceiro mais importante do Ocidente - depois do inglês e do espanhol. É usado por cerca de 210 milhões de pessoas, dos quais quase 180 milhões só no Brasil. São oito as nações de língua portuguesa: Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste. São esses os integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), importante entidade, criada em 1996, que aglutina seu patrimônio comum e suas culturas particulares. A eles se somam territórios encravados em outros países, como Macau (na China), Jaipur, Goa, Damão e Diu (na Índia), Málaca (na Malásia), Java (na Indonésia) e uma região do Sri Lanka.
À ambição brasileira de incorporar-se às nações ditas desenvolvidas, à intenção de manter sua soberania e ocupar um posto de liderança na América Latina e mesmo entre os demais países em desenvolvimento, não pode deixar de corresponder, portanto, a mobilização de todos os esforços para a preservação do idioma nacional. A história da humanidade nos mostra repetidamente que a primeira providência tomada pelos povos conquistadores foi sempre a proibição da língua nativa. Dois exemplos bastam: foi o que as tropas de Hitler impuseram, ao invadir a Polônia. Foi o que a Indonésia fez, ao dominar o Timor Leste, em 1975 - fator hoje revertido, felizmente, com a independência desse país e a adoção do português como língua oficial, ao lado do tétum (o principal idioma nativo).
Rico patrimônio
É de uma grande riqueza vocabular a língua que em um momento de mau humor Bilac classificou como "inculta". Tendo derivado, como as outras línguas neolatinas ou românicas, do latim vulgar levado para a península Ibérica pelas legiões romanas em 218 a.C., incorporou desde os primórdios elementos de primitivos dialetos ou línguas locais - nos quais, segundo algumas correntes filológicas, predominaria o céltico. No século 5º, com a invasão dos bárbaros e o declínio do Império Romano, acentuou-se a corrupção do latim, que, no entanto, sobreviveu quase intacto em formas mais cultas. O mesmo aconteceu quando no século 8º a península Ibérica foi invadida pelos mouros, e por eles dominada durante quase 800 anos. Tão grande foi sua influência que os próprios cristãos arabizaram-se, e um bispo de Sevilha chegou a traduzir a Bíblia para o árabe. É enorme a persistência do vocabulário árabe no português, até nossos dias, como nas palavras que incorporaram o artigo original al, por aglutinação: almofada, alfândega, almanaque, alface, alfaiate, etc.
A partir do século 9º (portanto antes da existência do Condado Portucalense, que data de 1095), já havia documentação escrita em vernáculo, como observou o filólogo e dicionarista português Caldas Aulete: "Os primeiros elementos que aparecem em língua vernácula encontram-se nos monumentos epigráficos e nos documentos em pergaminho do século 9º e subseqüentes, todos escondidos no latim rústico. Umas vezes é o português aparecendo por baixo do latim, outras intercalando-se com ele, ou desfigurando-se com desinências romanas; e não poucas se encontra o termo latino com terminações portuguesas".
Desnecessário apontar como palavras de origens mais diversas - com predomínio das de outras línguas românicas, é claro - vieram, séculos afora, enriquecendo nosso vocabulário. Porém, a unidade lingüística do português se conservou intacta, desde que o idioma se estabilizou - isto é, a partir do advento da Casa de Avis, em 1385. Mesmo tendo sofrido 60 anos de anexação à Espanha (1580-1640), ao recuperar a independência Portugal resgatou também a pureza da língua. A manutenção do nosso idioma é considerada pelos lingüistas um fenômeno importante e único, pois ele não se fragmentou em dialetos (como aconteceu na Itália) e conseguiu manter-se até mesmo no imenso território brasileiro, onde se tornou fator primordial da identidade nacional.
Durante o período do império marítimo português foi grande também a influência que a língua teve nas mais longínquas regiões do planeta, como no Ceilão (atual Sri Lanka), na Índia e no Japão. O idioma japonês mostra ainda hoje vestígios dessa influência, que remonta ao século 16 - basta lembrar que arigatô deriva do nosso obrigado; e que tempura deriva de têmporas, termo que designava os antigos dias de jejum determinados pela Igreja Católica e, por extensão, o peixe frito.
Voltando desta nossa breve excursão por tão longínquas eras e plagas, vemos, portanto, que a tão controvertida Lei Aldo Rebelo - um projeto de 1999 que ainda espera por aprovação no Congresso - não tem muito que ver com a preservação da língua, por estar baseada quase exclusivamente na proibição de estrangeirismos, principalmente os de origem inglesa. Compreende-se o afã do deputado no combate ao imperialismo político e cultural do nosso Big Brother do norte. E nem é preciso ser comunista para compartilhá-lo. Mas querer sustar manu militari (serei punida pelo latinismo?) a incorporação de termos advindos principalmente da informática, como acessar, deletar e similares, já é tarefa totalmente inútil, no Brasil pelo menos.
Em outras épocas foi combatida com igual ardor a excessiva influência do francês. Em crônica incluída no livro Idéias de Jeca Tatu, de 1919, o férreo defensor da nacionalidade que foi Monteiro Lobato imaginava que o espírito do escritor português Camilo Castelo Branco ficava perplexo ao materializar-se em São Paulo, pois verificava que nos jornais e revistas, nos anúncios, em tudo predominava o francês - ou, antes, diz Lobato, "o dialeto da Vila Mariana", o bairro elegante da época, onde se falava um misto das duas línguas. Coisas como: "Aos domingos diners concerts chics prix fixe com menus delicados". Equivalentes aos "confie no seu personal bank", "retalhos on sale", "milkshake de morango com marshmallow", de hoje.
Mas a mixórdia vocabular não é o maior problema. É a própria estrutura da língua "brasileira" que vai se deteriorando. Ninguém conhece mais regências verbais e preposicionais, ninguém sabe relacionar um sujeito com um predicado, conjugar um verbo reflexivo. Na maioria dos textos que circulam na Internet a língua usada chega a ser ininteligível. Ninguém mais se esforça para falar ou escrever bem.
A vez dos gramáticos
Em 1994 tive ocasião de entrevistar o professor Napoleão Mendes de Almeida, então com 83 anos - um dos mais renomados gramáticos deste país, professor de português e de latim durante mais de 60 anos, e também um dos mais severos guardiões da língua. Era um senhor de cenho carrancudo, rugas na testa, olhar duro, usava camisa de mangas compridas com abotoaduras, gravata, suspensórios - pensei que havia uns 40 anos não via ninguém usando aquele tipo de suspensórios. Foi logo dizendo, sem peias: "A língua portuguesa é hoje no Brasil descurada, é desestimada, é corrompida, desnacionalizada. E isso porque nosso ensino é simplesmente vergonhoso. A começar pelo ridículo número de aulas".
Criticou acerbamente a substituição do ensino da gramática por vagos estudos de "lingüística" ou "comunicação" nos currículos escolares, a abolição do latim, a mudança de nomenclatura. Na sua opinião, esta última só causara "transtornos no ensino, e nenhuma vantagem". E declarou que foi feita por motivos exclusivamente econômicos: "Tive a oportunidade de ver, na época, que um dos autores dessa reforma já estava com livros em terceira edição em que figurava a nomenclatura que ainda não era conhecida por ninguém, pois até aquela data nem o 'Diário Oficial' ainda a publicara... Esses interesses continuam preponderando no mercado do livro didático, como sabemos".
Exagerando na sua qualidade de "dono da língua", o professor Napoleão sintetizava para mim, naquele momento, evocações esparsas de um número de professores de português que tive - gente que não brincava em serviço, que usava lápis vermelho, que exigia. Com os quais nem sempre me entendi - eu queria voar longe da gramática, longe de qualquer peia, na adolescência. Voei. Mas fui firmemente ancorada nos seus princípios, como todos os do meu tempo. As gerações anteriores à nossa davam exemplo. Até minha mãe e minhas tias, que tinham apenas o primário feito em grupo escolar de interior e só escreveram a vida toda cartas convencionais do tipo "nós todos estamos bem, e vocês?", não cometiam o menor deslize gramatical, erro de concordância ou de regência, de acentuação e mesmo de ortografia, pois faziam questão de se atualizar, após cada reforma.
Hoje... vivemos um vale-tudo, que na verdade não vale nada.
A reversão do processo
Lecionando há 23 anos, com experiência em ensino médio e superior, Wagner Martins Madeira, professor de literatura brasileira na Universidade Mackenzie, acha preocupante o atual predomínio do visual: "Repito o que Vianinha dizia: 'Nem sempre o novo é revolucionário'. A vertigem das imagens no nosso cotidiano acaba com a reflexão, ninguém mais se dá ao luxo de pensar. Para o aluno, a escola é apenas um lugar chato, desinteressante, diante da multiplicidade de outros meios, como vídeos, games, filmes, Internet". De sua experiência com estudantes diz: "O uso do computador tem vantagens e desvantagens. Simplifica demais os processos da escrita, permite erros. Os alunos hoje não sabem mais escrever à mão, nem separar sílabas - chegam a pedir para fazer provas no micro, deixando a ele essa tarefa, ou preferindo manter um buraco no fim da linha, para não errar".
Diz ainda o professor Wagner: "Neste momento, é vital a concentração na recuperação do nosso patrimônio lingüístico, na valorização da nossa literatura. Em outras áreas o ensino já progrediu muito, nas últimas décadas - por exemplo, tivemos a valorização da música popular brasileira, uma iniciativa maior. Na de história, os pesquisadores avançaram bastante, saíram do círculo oficial e de certo maniqueísmo prevalecente há alguns anos. Mas no campo da língua e da literatura, não. Só tivemos retrocesso, com a extinção, na época da ditadura, de disciplinas de ciências humanas, como sociologia, filosofia, com a abolição do ensino de latim e línguas latinas, com a conseqüente desvalorização da literatura". Na sua opinião, foi também nociva a obsessiva euforia do liberô geral que seguiu o fim do período ditatorial, para a qual até mesmo as regras elementares do bem escrever e bem falar deviam ser abolidas, no quadro geral de uma permissividade ampla e compulsiva.
Para compensar a deficiência curricular e incrementar o gosto pela leitura, vários programas estão em curso, já há alguns anos, como o Sala de Leitura, da prefeitura de São Paulo (ver texto abaixo) ou o Casa da Leitura, da Fundação Biblioteca Nacional. Com a restauração da Estação da Luz, o governo estadual instalará também um projeto grandioso, o Estação da Luz da Nossa Língua - conectado com instituições de países lusófonos e que visa a uma reciclagem geral dos processos de ensino e uso do idioma.
No entanto, por mais interessantes e completos que sejam, pelo seu caráter extraordinário, tais programas não podem satisfazer a necessidade impreterível de uma reforma dos currículos escolares, e deixam de lado alguns aspectos fundamentais do nosso ensino, como a degradação sofrida pelo magistério, em todos os níveis, com a estagnação de salários e conseqüente esvaziamento da carreira, e a absoluta não-existência de uma sólida política educacional.
Na Sala de Leitura, uma trincheira
Com uma prática de ensino de quase 40 anos, a professora aposentada Laila Nicolau ainda dedica seu tempo à tarefa de despertar nas novas gerações o gosto pela leitura. Desde 2001, é a responsável pelo programa Sala de Leitura da rede municipal de ensino - uma iniciativa que visa suprir, em ambos os níveis do ensino fundamental, a escassez de aulas de português. Ela ainda se lembra de como em outros tempos os professores, com quatro aulas semanais, tinham tempo de preparar aulas em que a leitura em voz alta ("com interpretação", se dizia) era praticada normalmente, junto com o ensino de gramática, de análise léxica e sintática. Diz ela: "Hoje, a gramática é dada de forma descontextualizada, com mera decoração de regras. Falta trabalhar a língua a partir da vivência da própria criança, corrigindo-a e despertando nela o interesse pelos livros, pela linguagem literária. É isso o que tentamos fazer no horário de 'reciclagem' que temos - apenas 45 minutos, uma vez por semana, que se somam às outras duas horas de português curricular. Apesar do pouco tempo, os resultados têm sido muito gratificantes".
Ainda estudante em 1968, Laila teve oportunidade de ver como o governo militar impôs, de maneira férrea, as reformas que culminaram no reconhecido "desastre" da Lei de Diretrizes e Bases de 1971. Lembra-se de uma freira do Instituto Sedes Sapientiae que foi presa pelo Dops logo após ter feito uma preleção na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), exortando os estudantes a lutarem pela preservação da língua.
"Como é possível a um aluno aprender a escrever, a se expressar bem, se hoje não há mais, ou há pouquíssimos, exercícios de redação?", diz Laila. No programa que dirige, a arte de contar histórias às crianças a partir de livros desperta o interesse delas pela leitura. Dessa forma, elas se familiarizam com os livros, estabelecem um vínculo duradouro com a biblioteca. Infelizmente, em muitas escolas a biblioteca, quando existe, permanece fechada a sete chaves, sob o olhar feroz de bibliotecárias zelosas demais de que não se estrague o objeto livro.
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