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Identidade múltipla
O índio que se tornou padre e oficial do exército brasileiro
LEONARDO SAKAMOTO
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No princípio, eram os índios. Com os colonizadores, chegaram também os missionários - de início da Igreja Católica e mais tarde de várias denominações religiosas -, e seu ideário evangelizador. Depois vieram os militares, com o intuito de proteger a região norte do Brasil e suas tênues fronteiras em meio à floresta amazônica.
Sabe-se que ninguém permanece o mesmo após o contato com uma cultura diferente. No norte do Brasil, a relação entre índios, religiosos e militares ainda carece de um estudo aprofundado, mas não há dúvida de que a assimilação desses elementos externos pelos nativos representa uma grande mudança em suas vidas.
Foi desse caldo cultural que surgiu Josimar Ramos Marinho (foto), um exemplo único, em que essas três vertentes se reúnem. Ele veio ao mundo no dia 28 de outubro de 1968, com o nome de Ehkútó, na aldeia Bukurã Baátá, localizada no norte do estado do Amazonas. Em 1995 foi ordenado padre pela Igreja Católica e, em 1999, tornou-se o primeiro oficial capelão indígena do exército brasileiro, com a patente de 2º tenente capelão R2 no 5º Batalhão de Infantaria da Selva, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Licenciado das forças armadas, Josimar concedeu esta entrevista exclusiva.
Problemas Brasileiros - Quando o senhor descobriu sua vocação religiosa?
Josimar Ramos Marinho - Cultivei a vida vocacional desde a infância, devido ao exemplo de meus pais. Minha mãe, quando adolescente, foi educada num ambiente religioso em Manaus. Meu pai, já falecido, possuía a espiritualidade herdada dos missionários - por ter estudado e trabalhado com padres e falar português, ele exerceu a função de líder do movimento de catequização indígena.
PB - Como foi a experiência de estudar num colégio católico no alto rio Negro?
Josimar - Naquela época, o lugar para cursar os ensinos fundamental e médio era o internato dos padres e freiras salesianos. É claro que qualquer leitura sobre esses internatos irá revelar aspectos positivos, devido à obra missionária educativa e catequética em nome da evangelização, e negativos. Mas acredito que o trabalho missionário visava ao bem dos indígenas. E, caso eu não passasse por esse processo, não teria feito essa trajetória. Havia normas que não eram condizentes com nossa vida - não falar mais o idioma nativo, comer com prato e talher, fazer silêncio, escovar os dentes, tomar banho com roupas, alimentar-se na hora certa, cumprir rigorosamente os horários e tantas outras coisas. A partir daí, senti o forte rompimento com minha origem, fui me afastando, crescendo por outras vias, e somente ia para a aldeia durante o recesso escolar ou feriados. No período em que deveria viver com intensidade minha natureza própria, isso não aconteceu.
PB - Esse choque entre mundos tão diferentes não traz conseqüências?
Josimar - No pós-internato, muitos dos meus parentes não têm mais opções de continuar os estudos. Perambulam pela cidade, sofrendo uma crise de identidade. Sem perspectiva de vida e sem esperança, se entregam ao alcoolismo e à prostituição, usam drogas, formam galeras. É hora de buscar soluções para evitar isso, trabalhando em conjunto com todas as instituições e órgãos públicos.
PB - O senhor estudou teologia em Manaus, onde foi ordenado padre. Nessa época, foi alvo de preconceitos de colegas ou professores por ser indígena?
Josimar - Ingressei no seminário em Manaus, onde fiz os cursos superiores de filosofia e teologia, que são obrigatórios. Submeti-me a uma estrutura de formação fora da minha realidade, em que havia muitas exigências... Defender teses, expor assuntos, manter diálogos nas aulas era difícil, por causa dos colegas, que riam e debochavam dos meus erros de pronúncia. Devido à minha realidade cultural, havia preconceito, por parte de colegas e professores, em relação ao meu comportamento. Acho que isso se devia ao pouco conhecimento antropológico deles. Jamais escondi minha identidade nativa e não a omitiria em nenhuma circunstância. Algumas pessoas diziam que era importante ser padre nativo, mas havia rejeição por parte de outras. Como ser humano, minha reação era de raiva, dava vontade de desistir. Mas respondendo com inteligência e boa vontade é que eu demonstrava minha integridade. Dizer que era indígena de verdade seria imprudência, porque me sentia mesclado - até hoje vivo um pouco a distância do meu povo, devido às influências sofridas. O perigo, na verdade, é não querer ser indígena - isso seria suicídio. A maioria dos jovens nativos tem receio de se identificar com a própria cultura.
PB - Qual a visão que os religiosos brancos têm dos indígenas?
Josimar - Qualquer profissional que venha atuar em nossa região deve vir informado e preparado para trabalhar - aqui não existem mais indígenas nus, cobras e onças andando no meio das pessoas. Gente nua aparece de forma ridícula no carnaval do Rio de Janeiro, nos programas de TV, nas revistas. Dizem, com muita apelação, que é um trabalho de arte, mas não passa de mera exibição e uma forma de ganhar dinheiro fácil. Não é correto generalizar idéias sobre indígenas sem antes conhecê-los. Nós somos instruídos, conscientizados e politizados, por isso nenhum projeto - religioso, político, sanitário ou militar - deve cair de pára-quedas. Nossa preocupação é construir nosso protagonismo, dirigir, coordenar, gerenciar programas que promovam nosso bem-estar. Estamos cansados de ser enganados, protegidos apenas no papel e manipulados ideologicamente. Muitos tentam se apossar de nossas terras, explorar os minérios e a biodiversidade.
PB - Pode dar um exemplo disso?
Josimar - Em Pari Cachoeira, no distrito onde nasci, os militares construíram uma barragem para produzir energia elétrica. Fizeram promessas de que, quando estivesse em funcionamento, ela abasteceria também as comunidades. Isso se revelou uma grande farsa, porque só o quartel foi contemplado. Sabemos que todo dinheiro investido ali veio do contribuinte, e a terra, onde foi construída, é dos indígenas.
PB - É possível uma convivência harmônica entre as antigas tradições religiosas dos povos nativos e a Igreja Católica?
Josimar - No aspecto da fé, o indígena é protagonista na evangelização e na catequese doutrinária, assim como em outros setores sociais, como na liderança política, organização e educação. Na prática, procuramos adaptações de acordo com nossa realidade cultural: ligar a fé ao nosso cotidiano. Ainda não atingimos uma boa união da vida e da fé e, para chegar a esse nível, existem caminhos de trabalho a longo prazo. Nas celebrações, utilizamos elementos culturais de acordo com a liturgia romana; por outro lado, possuímos edições da Bíblia traduzida em idiomas de algumas etnias, assim como os cânticos. No aspecto lingüístico, foram elaborados estudos sistemáticos de idiomas e cartilhas. Colhe-se o fruto do trabalho dos missionários plantado há décadas.
PB - E a relação com os pajés?
Josimar - Na cerimônia de minha ordenação sacerdotal, coube o cumprimento dos pajés, de acordo com nossa tradição nativa. Foi feita uma unção com líquido vital, a entrega de símbolo do poder e autoridade e um fumo de cigarro. Respeitosamente, os anciãos me apoiaram, gerando assim a alegria de conduzirem alguém do clã para o trabalho da Igreja. Para que isso acontecesse, fiz um bom trabalho de conscientização anterior. Na mentalidade indígena, todos do clã devem permanecer juntos em sua aldeia para procriar e dar continuidade à história da etnia. Porém, o estilo de vida que escolhi foi respeitado pelos parentes, e não houve nenhum atrito ou problema grave. Além disso, fui bem aceito pelo meu povo porque antes eles já haviam testemunhado e visto outros parentes indígenas se tornarem sacerdotes.
PB - Como o exército entrou em sua vida?
Josimar - Quando eu tinha 18 anos, durante a formação de seminarista, pedi a dispensa e não cogitei servir ao exército. Mas, em 1999, meu bispo recebeu proposta de liberação de um padre para trabalhar como capelão no 5º Batalhão de Infantaria da Selva do Comando de Fronteira do Rio Negro. A indicação coube a mim, que prontamente aceitei. No ano seguinte, fui incorporado ao 12º Batalhão de Suprimentos, em Manaus, num contingente de cerca de 70 pessoas. A primeira fase do estágio me causou susto, devido à rigidez dos instrutores, à ordem, disciplina e hierarquia a serem observadas. Mas coloquei-me totalmente à disposição em todas as instruções para aprender a ser militar: participar das formaturas, treinamento físico - fiz tudo com prazer e amor à pátria.
PB - Chegou a fazer o curso de sobrevivência na selva?
Josimar - O estágio de vida na selva serviu apenas como passeio, porque, nascido dentro da floresta, eu já tinha experiência de confeccionar e morar no tapiri, de caçar e pescar. Sobreviver lá estava no meu sangue.
PB - Teve alguma experiência ruim enquanto estava incorporado?
Josimar - Sim, com relação a discriminação e racismo. Havia companheiros de farda pouco inteligentes, que comentavam que o indígena era feio, preguiçoso, alcoólatra, e que padre era ladrão de igreja. Um fato que presenciei numa missão de um dos pelotões foi o de um militar dizer que a pior coisa do mundo era conversar com nativo, ainda mais quando este estivesse alcoolizado. Então, o que é que esse militar vem fazer na terra indígena? Seria melhor que pessoas desse tipo ficassem em suas terras, porque aqui elas não são necessárias. Somos pessoas belas e inteligentes, assim como nossa mãe natureza, por isso nos amamos e amamos o que Deus nos presenteou neste mundo. A maioria dos militares vêm com o único interesse de ganhar dinheiro, e por isso cometem atos violentos no sentido moral e desrespeitam a população nativa. Muitas vezes, os casos não são divulgados, e eles não sofrem sanções disciplinares. Por outro lado, convivi com militares competentes e muito inteligentes, dos quais tive o apoio necessário - dificilmente recebia um "não" em relação ao meu plano de assistência religiosa. Nos encontros com lideranças nativas e nas reuniões com as comunidades, promovidas pela Igreja e pelo exército, sempre representei ambas as instituições dentro das prerrogativas a mim atribuídas.
PB - Ter um filho, pai ou marido militar é um símbolo de status?
Josimar - Aqui vale reproduzir o depoimento que ouvi de um ex-soldado indígena: "Na área da Cabeça do Cachorro [fronteira do estado do Amazonas com a Colômbia], nós, indígenas, somos 95% da população. Fomos forçados a servir, com promessas de bom salário, habitação, saúde para as famílias e tantas outras coisas que nunca se tornaram realidade. Assim, tivemos de sair de nossas aldeias e abandonar os estudos. A ideologia imposta pelo exército brasileiro é muito forte para um indígena ingênuo, pouco instruído, e ilude completamente: defender a pátria até morrer - como foi incutido em nossa mente sob violenta pressão psicológica -, trabalhos forçados, punições severas, gritos humilhantes, disciplina rigorosa, treinamentos perigosos, sem respeito à pessoa humana do indígena, o rigor no respeito ao superior hierárquico e a obediência completa com o 'sim, senhor' e 'não, senhor', que não permitia nenhum tipo de diálogo, apenas obedecer cegamente para evitar punições injustas. Alguns chegam a ser desertores por causa dos horrores que passaram no exército. Todas essas coisas contradizem a vida natural do indígena. Porém, o exército é emprego para muita gente - para aqueles que fazem carreira deve ser um bom negócio para acumular bens. Para mim não foi nada disso. Penso que a instituição militar deve se humanizar mais. Tive status, salário, mas foi apenas passageiro. Enquanto permaneci nas fileiras do exército, todo o esforço era válido, mas infelizmente isso não tem nenhuma utilidade na vida civil. O mais triste é que fui completamente prejudicado na minha identidade cultural, porque na minha aldeia vivem pessoas muito livres e participativas, sem nenhuma opressão. Não é um desabafo magoado, mas uma leitura crítica, agora, com a paz no coração".
PB - Por que a maioria dos indígenas não consegue fazer carreira no exército?
Josimar - Muitos são desligados na hora de se estabilizar, após servirem nove anos, e têm de recomeçar tudo na vida civil. Esse procedimento se deve ao decreto do ex-presidente da República, o excelentíssimo senhor Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo, historiador e intelectual que governou nosso país. No período em que deveriam estudar e se estruturar para a vida, eles doaram tudo pela pátria. A indenização que recebem pelo tempo de serviço mal dá para alimentar uma família por um mês. Não há nenhuma chance de um indígena fazer carreira militar - talvez um ou outro chegue até o posto de sargento -, devido à falta de condições. Com certeza, o exército também perde, pelo fato de deixar sair o militar indígena, que conhece a floresta amazônica como a palma da mão.
PB - Você nasceu índio. Ordenou-se padre. Tornou-se tenente do exército. Como conciliou esses três mundos diferentes?
Josimar - Procurei sempre integrar as dimensões, presentes em mim, de indígena, padre e militar. Vivi e continuarei vivendo essas grandezas sem deixar morrer nenhuma. Sou indígena puro, escolhi uma disciplina de vida sacerdotal, servi ao exército com doação, continuo feliz e mais autêntico com meu trabalho de conscientização e educação aos jovens e cumprindo a boa evangelização.
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