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Brechas no muro

Estudantes recorrem a cursos comunitários para entrar na faculdade

RUTH COSTAS


Cursinho do Cacs / Foto: Ruth Costas

Longe vai o tempo em que o amazonense Alberto Lopes, de 36 anos, passava as tardes consumindo a vida e a lucidez nos bares do morro Dona Marta, onde mora, na zona sul do Rio de Janeiro. "Hoje estudar é meu vício", diz, com um sorriso orgulhoso. De segunda a sábado ele desce as ladeiras da favela para assistir às aulas de um cursinho pré-vestibular popular, o Invest, que fica num colégio particular no bairro de Botafogo. As salas limpas e bem iluminadas em nada lembram as escolas precárias nas quais Alberto e a maioria de seus jovens colegas cursaram o ensino básico. Os professores não recebem para dar aulas, e a mensalidade, que não chega a R$ 30, é muito menor que a média de R$ 500 cobrada pelos pré-vestibulares comerciais. Voltar a estudar ajudou o migrante a superar o alcoolismo e fazer novos planos para o futuro: ele quer entrar no curso de letras em uma das universidades públicas do Rio de Janeiro.

Criados por estudantes, organizações não-governamentais e movimentos negros, os cursinhos pré-vestibulares comunitários são uma esperança para os jovens de menor renda que querem ingressar numa universidade. Menos polêmicos que as políticas de cotas, eles têm conseguido bons resultados em sua cruzada para ampliar o acesso ao ensino superior entre aqueles que estudaram em escolas públicas e não têm condições de pagar um cursinho comercial. Segundo o Movimento sem Universidade (MSU), já existem cerca de mil núcleos e entidades que oferecem cursos pré-vestibulares no Brasil. Neles estão matriculadas aproximadamente 100 mil pessoas, em sua maioria jovens, mas há também adultos motivados a retomar os estudos, que tinham abandonado por falta de estímulo ou necessidade de trabalhar.

A iniciativa de criar o Invest, que atende cerca de 120 estudantes de todos os cantos da cidade, veio de ex-alunos do Colégio Santo Inácio. As instalações - sala de aula, luz e água - foram cedidas pelo colégio, e a coordenação e as aulas ficaram a cargo de voluntários, universitários de classe média e alta. "O objetivo do projeto é agir em duas frentes: ao mesmo tempo em que ajudamos estudantes de baixa renda a ter acesso ao ensino superior, ampliamos o contato dos jovens da zona sul, a mais rica do Rio de Janeiro, com a realidade das periferias e bairros pobres", diz Fábio Campos, coordenador do Invest.

A alguns quilômetros dali, no Complexo da Maré, um conjunto de 16 favelas onde moram 130 mil pessoas, o cursinho do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) colocou, no ano passado, 104 estudantes em universidades públicas, o que significa um índice de aprovação de 40%, considerando apenas os que prestaram vestibular. Tocado pelos membros da própria comunidade e financiado por meio de parcerias com instituições e empresas como a Light, a Minasgás, a ONG Care e a Fundação Ford, o Ceasm está conseguindo reverter as perspectivas dos jovens da região. Desde que o projeto foi lançado, em 1998, a porcentagem de moradores da Maré com curso superior subiu de 0,57% para 1,64%. Ainda é pouco, mas já é um primeiro passo.

Um dos idealizadores do Ceasm é Jailson Souza e Silva, um ex-morador da Maré que se formou em geografia e resolveu seguir a carreira acadêmica. "Fui a primeira pessoa de minha casa a ter nível universitário", conta. Jailson, que hoje é professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), lançou recentemente o livro Por Que Uns e Não Outros: Caminhadas de Jovens Pobres para a Universidade, no qual analisa a trajetória de 11 estudantes de baixa renda que, como ele, conseguiram entrar num curso de graduação. "Não somos gênios, apenas encontramos algumas condições favoráveis para continuar os estudos. Muitos dos que ingressaram na universidade contam, por exemplo, com o apoio da família", conclui.

A Educação para Negros e Carentes (Educafro), ONG coordenada pelo frade franciscano Davi dos Santos, em 2003 ajudou cerca de 1,5 mil estudantes de baixa renda a entrarem no ensino superior. Neste ano a procura pelo cursinho da organização, que é uma das maiores redes de pré-vestibular do país, aumentou muito. Só no estado de São Paulo, a quantidade de unidades da Educafro subiu de 90 para 161. No total, no eixo Rio/São Paulo, já são cerca de 12 mil alunos. As unidades (ou núcleos) funcionam com autonomia, em espaços cedidos por igrejas, sindicatos e associações de bairro, as mensalidades não ultrapassam 10% do valor do salário mínimo e os professores, muitos dos quais ex-alunos, só recebem uma ajuda de custo para o transporte. Além de auxiliar o ingresso de jovens em instituições de ensino público, a ONG também faz parcerias com faculdades e universidades particulares, que se comprometem a fornecer bolsas para alunos do pré-vestibular. Segundo a Educafro, o número de bolsistas chega a 4 mil. É graças a uma dessas parcerias que Sérgio Ricardo, de 28 anos, está conseguindo fazer o curso de sistemas de informação na Universidade Santo Amaro (Unisa). Ex-aluno da Educafro, ele hoje ensina geometria na unidade de Carapicuíba. "Também aprendemos aqui sobre a importância de exigir nossos direitos e ajudar o próximo", diz. Além das disciplinas tradicionais, os alunos recebem aulas de cultura e cidadania, onde discutem questões como direitos humanos, preconceito e violência. "Nosso objetivo não é só fazer jovens sem renda passarem no vestibular, é formar cidadãos e denunciar a elitização do ensino", afirma frei Davi.

Um lugar ao sol

O aumento da procura por cursinhos pré-vestibulares comunitários ocorre porque o acesso à universidade, cada vez mais, é visto por muitos jovens de baixa renda como uma alavanca para a ascensão social, uma chance de encontrar um lugar ao sol na sociedade. Segundo uma pesquisa da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, cada ano de estudo aumenta o salário de um trabalhador em 11,25% (em média). O problema é que a universalização do ensino médio, que ocorreu na última década, não foi acompanhada por uma expansão significativa de vagas nas universidades públicas. Os exames que garantem o ingresso numa faculdade ficaram extremamente concorridos, e os que mais sofreram foram os estudantes de baixa renda, já que em geral estão menos preparados e não conseguem pagar nem as mensalidades de um cursinho preparatório particular nem as de uma universidade privada. "O acesso ao ensino superior hoje é um privilégio dos ricos" conclui Sérgio José Custódio, coordenador do MSU.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente 60% dos estudantes das universidades públicas pertencem à camada dos 20% mais ricos da população, enquanto apenas 3,45% fazem parte da parcela dos 20% mais pobres. E nas instituições particulares a situação não é diferente.

Os cursinhos comunitários não são, de forma alguma, a solução para um quadro de exclusão tão acentuado, e sim um paliativo. "O melhor seria que um dia todos tivessem acesso ao ensino superior, e não precisássemos mais existir", diz Carlos de Castro, um dos diretores do curso preparatório do Centro Acadêmico de Ciências Sociais (Cacs), que utiliza as instalações da PUC de São Paulo. Há consenso entre os organizadores dos pré-vestibulares, educadores e sociólogos de que o melhor seria investir na qualidade das escolas públicas e ampliar a oferta de vagas nas instituições públicas de ensino superior.

Mas, enquanto o governo não encontra uma solução para o problema, o cursinho popular é um recurso interessante. Primeiro, porque aumenta as chances dos jovens carentes na disputa por uma vaga no ensino superior - vale lembrar que mesmo os egressos de escolas particulares, onde as condições de ensino são melhores, em geral têm de fazer um curso pré-vestibular para entrar na universidade. Depois, porque muitos cursinhos estendem sua atuação para além das aulas de química e matemática. Eles são um espaço no qual os estudantes com menos renda se reúnem para pressionar o governo e lutar por medidas que ampliem o acesso ao ensino superior e, com isso, o índice de mobilidade social. Os ex-alunos são também uma peça-chave do movimento por trás desses cursinhos. A idéia é que, depois de passar no vestibular, eles trabalhem dentro da universidade para torná-la mais aberta.

Para o sociólogo Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), os pré-vestibulares populares são uma alternativa mais conveniente que as cotas para estudantes de escolas públicas ou afrodescendentes, recentemente adotadas em algumas instituições de ensino. Segundo ele, o maior mérito desses cursinhos é diminuir as deficiências de alunos que estudaram em escolas públicas. "Com as cotas, alguns estudantes podem acabar entrando na universidade mais despreparados, o que no futuro talvez faça com que sejam estigmatizados e até aumente a evasão", diz.

O apoio às cotas - e especialmente aquelas que têm por base um critério racial - não é unânime entre esses pré-vestibulares. "Tenho alunos que são pobres, moram em favelas, mas não são afrodescendentes. Eles sairiam muito desfavorecidos", explica Fábio Campos, do Invest. Alguns coordenadores, no entanto, as defendem com unhas e dentes. Frei Davi, da Educafro, lembra o caso dos alunos de baixa renda que conseguiram bolsa na PUC do Rio de Janeiro para negar que o sistema possa trazer os problemas apontados pelo sociólogo: "No vestibular, muitos não se saíram bem por causa das deficiências que traziam do ensino médio, mas hoje o desempenho deles é melhor do que o de outros alunos". Para manter a bolsa, os estudantes devem ter boas notas, e por isso se dedicam mais e conseguem superar o desnível que os separa dos demais.

A luta do movimento ligado aos cursinhos pela isenção da taxa de inscrição no vestibular, que começou em 2000, foi uma das que obtiveram resultados positivos. A taxa é o primeiro instrumento de exclusão econômica, já que pagar de R$ 70 a R$ 90 para inscrever-se no exame é inviável para jovens que muitas vezes não ganham mais que um salário mínimo. Segundo coordenadores da Educafro, a ONG teve de abrir cerca de 250 processos na Justiça contra a Universidade de São Paulo (USP) para pressioná-la a conceder o benefício. Neste ano serão autorizadas 60 mil isenções.

Outra bandeira de alguns cursinhos é a mudança no processo de seleção dos estudantes. O vestibular atual baseia-se no critério meritocrático e tem como finalidade premiar os melhores alunos. As maiores críticas a esse sistema partem do princípio de que ele avalia prioritariamente um determinado tipo de conhecimento - aquele que o aluno decorou ou aprendeu nos bancos escolares. "O exame deixa de considerar aptidões que podem ser importantes para a sociedade, como o espírito de liderança, criatividade e engajamento social", diz o educador João Galvão Bacchetto, que há algum tempo estuda os pré-vestibulares populares de São Paulo. Outras críticas ressaltam que o nível de conhecimento cobrado em todas as disciplinas é exageradamente elevado. Um exemplo muito usado pelos coordenadores dos pré-vestibulares comunitários para provar o argumento é que, se estudantes de medicina fossem submetidos ao mesmo exame que prestaram para ingressar na faculdade um ano depois, provavelmente seriam reprovados - uma evidência de que grande parte das informações cobradas nas provas seria descartável.

Diversidade na universidade

Os resultados obtidos pelos pré-vestibulares chamaram a atenção do governo. Em 2002, o Ministério da Educação (MEC) fez uma parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para lançar o programa Diversidade na Universidade, que prevê um fundo de até US$ 6 milhões para financiar o que é definido como projetos inovadores de curso (PICs). De lá para cá já foram beneficiados cerca de 33 pré-vestibulares e 7 mil pessoas, e para este ano devem ser selecionados mais 72 cursos. O projeto tem um viés racial. Seu objetivo é promover a inclusão de grupos de etnias socialmente desfavorecidas. Por isso, para receber o financiamento, os cursinhos devem ter pelo menos 51% de alunos afrodescendentes ou indígenas.

Um dos pré-vestibulares que já está sendo beneficiado pelo programa é o Oficina da Cidadania, em Salvador. Metade do dinheiro é repassada para os estudantes, que o utilizam para o transporte. Segundo Penildon Silva Filho, um dos coordenadores, essa iniciativa foi crucial para garantir a freqüência de alguns jovens às aulas.

Outro projeto bem recebido pelos cursinhos é o Universidade para Todos, uma tentativa de utilizar a estrutura das centenas de universidades particulares espalhadas país afora para resolver o problema do acesso de jovens pobres ao ensino superior. Segundo o projeto, que ainda está em tramitação no Congresso, as universidades com fins lucrativos que reservassem 10% de suas vagas para bolsas a alunos de baixa renda receberiam em troca isenções fiscais. Já as instituições de ensino filantrópicas, para manter sua imunidade tributária, teriam de alcançar o total de ao menos 20% de alunos bolsistas. O programa gerou alguma polêmica e foi comparado a uma "compra de vagas": diante da dificuldade de obter recursos para investir em universidades públicas, o Estado preferiria simplesmente terceirizar sua responsabilidade na educação dos brasileiros. Além disso, as instituições filantrópicas afirmam que a receita que poderiam utilizar para conceder bolsas já está sendo usada em ações assistencialistas.

As pedras no caminho

Daniela Oliveira tem 19 anos e quer fazer pedagogia. Na falta de mesa, ela apóia o caderno no colo enquanto assiste, na pequena sala improvisada do sindicato dos trabalhadores dos correios, à aula de matemática de Fernando Costa - eletricista por profissão, professor por convicção. É aluna da unidade da Educafro na Vila Leopoldina, bairro de São Paulo, onde gasta, estudando equações de segundo grau, as preciosas horas que teria para descansar da penosa rotina de trabalho, trânsito e ônibus cheios. Aqueles que, como Daniela, só têm o caminho dos cursinhos comunitários para chegar até a universidade encontram pela frente uma série de obstáculos. O primeiro é que os pré-vestibulares não contam com a mesma infra-estrutura dos cursos preparatórios comerciais. Em alguns núcleos faltam materiais, mesas e até professores. "No momento, parece que estamos sem ninguém para ensinar biologia", conta Daniela. Muitos dos que ensinam na Educafro são pessoas carentes, que se desdobram para dar sua contribuição mas têm pouco tempo para dedicar à preparação da aula e do material didático. Além disso, os alunos têm de estudar muito para compensar algumas lacunas do ensino básico, o que não é nada fácil para quem precisa trabalhar para colocar feijão na mesa.

Algumas vezes a busca por mais infra-estrutura pode se tornar uma faca de dois gumes. Um caso ilustrativo é o do cursinho da Poli, criado em 1987 pelo Grêmio da Escola Politécnica da USP. Na época em que ficava na Cidade Universitária, já era um dos mais procurados entre os pré-vestibulares populares. Em 1997, a sede mudou para uma casa, mas as instalações não permitiam dar conta de toda a demanda. Cerca de 10 mil pessoas chegaram a disputar 850 vagas. "Acabávamos atendendo a elite da escola pública. Já havia gente dizendo que era mais difícil entrar no cursinho que na USP", diz Fábio Sato, um dos idealizadores. Em 2000, as instalações foram transferidas para um prédio bem maior e, para pagar aluguel, água, luz e o salário dos professores, foi preciso elevar os preços. Hoje eles variam entre R$ 170 (aos sábados) e R$ 265 (matutino), valores completamente fora dos padrões dos pré-vestibulares comunitários. Embora ofereça bolsas para os mais pobres e tenha feito parcerias com algumas instituições para receber ex-presidiários, meninos de rua e índios, a verdade é que o cursinho enfrenta uma crise de identidade. Atualmente só estão preenchidas 6 mil vagas das 13 mil que ele pode oferecer, e grande parte dos alunos pertence à classe C. Fábio Sato não sabe explicar o motivo, mas os alunos afirmam que o problema é mesmo a mensalidade. As instalações são muito melhores que as de alguns núcleos de cursos comunitários, mas o preço a pagar desvirtua o projeto original.

E essas não são todas as dificuldades. Superada a barreira do vestibular, os estudantes carentes têm de enfrentar um desafio que Nadja Soresine, estudante do primeiro ano de medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), conhece bem: sem receber nenhum tipo de apoio, manter-se num curso de graduação pode ser muito difícil. Nadja realizou o sonho de entrar em medicina após quatro anos de estudos no pré-vestibular do Ceasm. O problema é que, como há aulas em período integral, ela não pode trabalhar. A renda da família resume-se aos R$ 300 que a mãe ganha como vendedora. "Às vezes não posso ir à faculdade porque não tenho dinheiro para o ônibus", diz. Como também não tem como pagar pelo material didático, seu desempenho acadêmico acaba ficando comprometido. Nadja diz que já cansou de pedir uma bolsa à escola, mas ainda não obteve resposta positiva. Como a ajuda financeira fornecida pelo governo e pelas universidades é insuficiente, o problema se estende a outros estudantes que vivem a mesma situação.

 

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