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Matérias da edição

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Ficção Inédita
Ali pelos lados da Boca

Marçal Aquino

Para Ariosto Augusto de Oliveira

1- HERMES
Hermes, o homem para quem trabalhei numa época, acreditava que algumas mulheres trazem sorte para o sujeito que está com elas. Ele era forte no jogo do bicho na Zona Sul. Mas atravessava uma maré medonha naquele momento. Um rival andava atrapalhando os negócios e a polícia, de repente, tinha resolvido endurecer e vivia estourando os pontos de jogo. Os programas da televisão estavam adorando aquilo, punham até helicóptero para acompanhar os estragos. Era a primeira vez que eu via Hermes na defensiva, alheio à guerra que acontecia nas ruas. Ele só tinha cabeça para uma coisa: uma mulher chamada Edite.
Era uma loira magra, bonita, uns trinta anos mais nova que Hermes. A história de amor dos dois havia terminado fazia pouco tempo, e ele atribuía suas desgraças a isso. Tentara de tudo para reatar com a mulher, mas Edite não queria nem ouvir falar no assunto. Raça ruim.
Uma noite, eu estava no escritório quando os rapazes trouxeram um gerente de ponto de jogo, acusado de estar passando informações para o inimigo. Afundado numa poltrona, Hermes enchia a cara de uísque, como acontecia todas as noites, e ouvia boleros num pequeno aparelho de CD. Passava longos períodos em silêncio, só abria a boca para ingerir mais uísque e para lamentar a má sorte. E a falta que a mulher fazia.
O gerente era um cearense baixinho e barrigudo e tremia muito quando os rapazes o empurraram para dentro do escritório. Sabia o que esperava por ele.
Hermes serviu-se de outra dose e levantou-se da poltrona. Achei que o cearense ia se borrar a qualquer instante.
- O que você tem pra me dizer?
- Estão me acusando de armação - o gerente disse. - Mas é tudo mentira, eu não faria uma coisa dessas. Devo tudo que tenho ao senhor.
Hermes pôs a mão no ombro do homem.
- E por que você acha que estão te acusando?
O medo desafinou a voz do gerente: - O senhor sabe como é, tem sempre alguém querendo puxar o tapete da gente.
- Eu te conheço faz tempo. Você não faria uma coisa dessas comigo, não é?
O gerente segurou as mãos de Hermes. Estava a ponto de chorar.
- O senhor sabe que não. Isso é coisa de gente que quer me derrubar.
Hermes livrou as mãos e se afastou para ocupar seu lugar atrás da mesa enorme do escritório. E então ficou olhando com cara de cão perdido para um porta-retrato em que Edite aparecia sorrindo. Bons tempos.
Os rapazes permaneciam em pé, de braços cruzados. À frente dos dois, o gerente esperava, ainda trêmulo. Hermes bebeu um gole demorado e pousou o copo sobre a mesa. Continuava hipnotizado pela foto. Aquilo durou um tempão. Até que o CD chegou ao final e ele me olhou. Eu me levantei e troquei o disco. Mais boleros. Quando voltei para o meu lugar, Hermes falou, sem tirar os olhos de Edite.
- Podem ir.
Os rapazes se entreolharam. O gerente franziu a testa. Um dos rapazes se adiantou.
- E o que a gente faz com esse safado?
- Deixem ele em paz - Hermes disse.
O rapaz cruzou o olhar com o meu, sem acreditar no que tinha ouvido. O gerente debruçou-se sobre a mesa e tornou a segurar as mãos de Hermes e passou a beijá-las. Como se tivesse alcançado uma graça. E talvez tivesse mesmo. Em ocasiões parecidas com aquela, eu havia presenciado desfechos bem diferentes.
- Como é que pode? - o rapaz resmungou.
Contrariado com o que o gerente fazia, Hermes puxou as mãos.
- Agora, por favor, me deixem em paz.
Os rapazes saíram do escritório, ambos com cara de quem não entendia direito o que estava acontecendo. O gerente os seguiu, aflito para cair fora dali. Deslizava a uns dois palmos do chão. Eu acendi um cigarro e fiquei quieto no meu canto, observando Hermes, que continuou bebendo em silêncio. Sofria sem nenhum pudor. As olheiras o deixavam ainda mais abatido. Parecia ter envelhecido anos nas últimas semanas. Eu gostava dele. Hermes havia me ajudado muito num tempo em que as coisas saíram errado pro meu lado. Por isso, quando ele esvaziou a garrafa e resmungou que estava perdido sem aquela mulher, achei que era hora de fazer alguma coisa.



2 - EDITE
Os inferninhos da Boca recebiam sua fauna costumeira. Engravatados se misturavam a desocupados e pequenos malandros. Rufiões circulavam em meio a mulheres desbotadas, que desciam dos táxis na porta das boates. Fazia anos que eu não freqüentava o pedaço, mas tudo parecia igual. Apenas um pouco mais decadente e sujo. Eu sabia que Edite tinha voltado para a mesma vida que levava no tempo em que conheceu Hermes. Encontrei-a numa boate da Nestor Pestana chamada La Luna. Ela conversava com um japonês gordo e me olhou com curiosidade quando me aproximei da mesa.
O japonês não gostou nem um pouco quando pedi licença para falar com Edite. E continuou me medindo com cara de mau mesmo depois que ela se levantou, avisando que seria um papo rápido e que logo estaria de volta. Encostei-me no balcão e pedi cerveja. Edite parou ao meu lado, com um princípio de sorriso nos lábios. Estava mais magra, bronzeada, e usava um vestido curto, de alcinhas. Parecia muito feliz por estar de volta ao seu hábitat.
- O Hermes está sofrendo muito - eu disse.
- Não posso fazer nada a respeito.
- Pense bem, Edite. Ele te deu uma vida de rainha.
Ela riu.
- Uma ova. Ele me dava uma vida de escrava, isso sim.
Hermes havia montado um apartamento para ela. O problema é que fazia marcação cerrada. Edite só podia sair de casa se avisasse onde e com quem ia. Eu conhecia bem o quadro.
- E isso aqui é melhor? - eu perguntei e indiquei o ambiente enfumaçado e ruidoso.
O japonês continuava de olho em nós, com cara de contrariado. Uma mulata se aproximou de sua mesa, mas ele a rejeitou de imediato.
- O que o Hermes não entende é que eu sou livre pra fazer o que quiser. Ele é muito ciumento, não dá certo comigo.
- Você não acredita que as pessoas podem mudar?
- Conversa fiada. É sempre a mesma coisa, o Hermes só promete. Eu não agüento ele me vigiando o tempo inteiro.
Eu bebi um gole de cerveja e fiz uma careta. Praticamente sem gelo.
- O Hermes sempre deu tudo pra você. Ele pagou aquela operação da sua mãe, lembra? Você acha que ele vai ficar feliz se souber que você voltou pra essa vida?
- Ah, isso é problema dele.
- Ele não sabe que eu vim te procurar. O Hermes acha que você dá sorte pra ele.
Edite riu outra vez.
- Eu já conheço essa conversa. É bobagem. Ele que trate de viver a vida dele, que eu vivo a minha e pronto.
- Pense direito, Edite. Ele gosta de você de verdade.
- E o que eu posso fazer? Eu não gosto mais dele.
O japonês fez um gesto para Edite. Ela olhou para mim, impaciente.
- Acabou?
Eu sabia que ela era dura na queda. Mas sabia também que Hermes estava disposto a qualquer coisa para tê-la de volta. Então resolvi apelar.

3 - HERMES & EDITE
Estávamos numa festa de batizado, um churrasco improvisado nos fundos de uma casa modesta. Hermes e Edite eram os padrinhos, e o dono da casa parecia não saber o que fazer para retribuir aquela honraria. Ficava o tempo todo próximo à mesa que o casal ocupava, perguntando se estavam sendo bem atendidos. Todos pareciam felizes.
Vi quando um dos rapazes chegou à festa e falou alguma coisa no ouvido de Hermes. Ele se levantou da mesa, pegou seu copo e propôs um brinde. (Mais tarde, eu soube: o rapaz trouxera a notícia de que o bicheiro rival havia sido morto na manhã daquele dia.)
Hermes brindou e sorriu para Edite. Ela estava de volta fazia uma semana. Teve uma hora em que Edite saiu da mesa para ir ao banheiro e fez um sinal para que eu a acompanhasse. Conversamos no corredor da casa.
- Não sei, não - ela disse, - ele parece melhor do que nunca.
- Ah, é porque a sorte voltou pra ele.
- Quanto tempo você falou que ele tem?
- Os médicos não sabem direito - eu disse, repetindo a história que contara na boate. - Mas é pouco tempo, ele tá muito doente. Não custa nada você dar essa alegria pra ele, né?

Marçal Aquino é jornalista, roteirista de cinema e autor de Faroestes (Editora Ciência do Acidente)