por Dráusio Barreto
No mês em que São Paulo comemora seus 450 anos, o procurador de Justiça e ex-presidente da Cetesb, Dráusio Barreto, fala de violência e qualidade de vida na maior cidade do Brasil
Cuidado onde pisa "Existem em São Paulo quatrocentos locais com bandeiras vermelhas indicando áreas contaminadas. Regiões nas quais ninguém poderia morar. Porém, a descoberta desses locais foi posterior à sua ocupação. É bem provável que muitas outras áreas existam. O homem ocupou espaços na cidade, na época da industrialização, sem conhecer exatamente o que aconteceria com o solo, imaginando que ele fosse impermeável e pudesse receber toda e qualquer carga química sem acarretar problemas à saúde das pessoas. Não se tem um diagnóstico disso, não se sabe onde existem coisas enterradas, vai-se descobrindo por acidente, na medida em que pessoas vão ficando doentes. O zoneamento mudou, onde era área industrial virou área comercial ou residencial, construíram-se escolas, hospitais, creches. Em Osasco, por exemplo, a CDHU ergueu um conjunto de casas populares numa região onde, soube-se depois, se tratava de um aterro. O episódio é até curioso: os moradores dessas residências descobriram que dos ralos dos banheiros saía fogo, e as pessoas começaram a aquecer sua comida nos ralos. Elas achavam que aquilo era uma economia de gás. Até que um dia alguém se machucou, chamou-se a polícia, os bombeiros etc., e se viu que era mais uma área contaminada por resíduos químicos. Nesse caso, todas as pessoas foram removidas e o governo não permitiu que novas unidades fossem ocupadas, apesar de já estarem prontas. Trata-se de um desafio para esse novo século. Mesmo países que têm muito dinheiro estão ainda lidando com o problema. Na Alemanha, por exemplo, a porção ocidental identificou o mesmo problema na porção oriental, mais de 40 mil sítios contaminados. Só que eles têm dinheiro para descontaminar os locais, e nós não. Aqui o conceito é o do poluidor pagador, ou seja, quem polui despolui. Só que quando você não sabe quem poluiu - ou até sabe quem foi, mas essa empresa não existe mais - a conta vai para o poder público, que, por sua vez, não tem sequer rubrica em orçamento para tratar desse assunto."
Guerra de números "Nós produzimos em nossa cidade, perversamente, números relacionados à violência piores que os de locais conflagrados por guerras. A Guerra do Vietnã em sete anos produziu 50 mil mortos. Em São Paulo, têm-se 10 mil mortos por ano, sem ninguém ter nos anunciado que estamos em guerra. Quando olhamos a questão numérica, perdemos a dimensão do que está acontecendo; passamos a perseguir estatísticas. É óbvio que temos de perseguir a redução, mas a estatística não nos satisfaz como explicação do enfretamento da violência urbana e das melhores possibilidades de abordagem e prevenção do crime. Não basta olharmos a questão somente por meio da atuação das instituições policiais que fazem a prevenção ou a repressão ao crime. Não se pode deixar de perceber a falência do sistema penitenciário, que é um realimentador permanente do problema. Os presídios servem apenas como um depósito temporário de homens que retornam à vida em sociedade em algum momento - porque eles têm de retornar: nós não temos prisão perpétua -, e voltam mais violentos e agressivos do que quando foram remetidos ao sistema penitenciário - já com deformações muito sérias de conduta. O Judiciário acaba fazendo uma administração de vagas no sistema penitenciário; nosso legislador vai contemplando cada vez mais o cumprimento menor dessas penas. Ninguém cumpre pena no nosso país. Quem é condenado por roubo a cinco anos e quatro meses de prisão jamais ficará esse período, que seria o tamanho da reprimenda social àquela conduta. Existe um instituto, que é o da Lei de Execução Penal, que faz com que se administre a falta de vagas no sistema penitenciário. Cada vez que nós temos mais gente sendo remetida ao sistema penitenciário, mais mecanismos legais liberatórios são colocados à disposição dos sentenciados para que esse giro de presos se estabeleça e crie as vagas necessárias para o sistema."
Qualidade do ar "Em São Paulo, 90% da poluição na região metropolitana é oriunda dos nossos veículos. Houve um avanço importante nisso dentro de um programa chamado Proconve (Programa de Controle de Emissão de Poluição por Veículos). No entanto, ele está exaurido no que compete à implantação de apetrechos nos motores dos veículos que reduzam a emissão de gases. Nós continuamos tendo, freqüentemente, desconformidades na qualidade do ar de São Paulo. O grande desafio da melhor qualidade do ar em São Paulo passa, hoje, por um programa que vem sendo debatido já há bastante tempo, o de inspeção veicular. Não há como fugir disso por mais aborrecido que seja para os proprietários de veículos. Hoje, um carro que sai da indústria com catalisador polui quarenta vezes menos que os carros que não possuem esse recurso. Ou seja, um carro antigo equivale a quarenta carros novos em termos de emissão de poluentes. Como o catalisador é um componente relativamente caro, quando ele vence - isso a cada 40 mil ou 50 mil quilômetros - as pessoas simplesmente não colocam outro. Também porque os mecânicos dizem que isso não afeta o desempenho do carro. Isso faz com que esse automóvel, antes dentro das normas do Proconve, passe a poluir como os carros antigos. E nós temos a segunda maior frota urbana do mundo, um veículo para cada dois habitantes, num total de 5 milhões na cidade e 8 milhões na região metropolitana. Além disso, trata-se de uma frota que circula muito. Os veículos dos municípios vizinhos vêm para São Paulo. Ou seja, essa frota de 5 milhões de carros, na verdade, é maior do que a efetivamente registrada."
Águas paradas "Andamos muito pouco nessa questão. É só cruzar a cidade e olhar para o rios Pinheiros e Tietê para comprovar que nós ainda temos problemas sérios de controle do lançamento de esgotos nos nossos corpos d'água. Além da ocupação absolutamente irregular da área de proteção de mananciais - eu até brinco dizendo que a falta de água em São Paulo não pode ser atribuída a São Pedro, isso é injusto. Mas o mais importante é que essa ocupação impede a recarga dos nossos mananciais. Hoje moram 1,7 milhão de pessoas em áreas de proteção de mananciais. Como remover esse contingente? Ninguém conseguiu encontrar uma saída. Deveria estar-se evitando que esse número aumentasse, porém nem isso está acontecendo. Nesse caso, a questão ambiental conflita com a miséria, e conflita, às vezes, com uma ineficiência do sistema judicial do nosso país. Há indivíduos inescrupulosos que criam esses loteamentos e os vendem. O que afeta, normalmente, a população de mais baixa renda, consolidando esses espaços como locais de onde não há meios de remoção dessas pessoas. Há cinco ou seis anos, tentou-se retirar famílias em São Bernardo, num lugar chamado Jardim Falcão. Nós pudemos ver na imprensa os tratores passando sobre casas e as pessoas desesperadas. Essa foi a única vez que o poder público conseguiu fazer algo nesse sentido, mas a experiência foi tão violenta que não se pensa em repetir a ação, a despeito das múltiplas reintegrações de posse que o Estado tem para realizar - na verdade são bairros inteiros."
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